Índice de Capítulo

    O som do gelo se erguendo cortou o ar da manhã com estalos secos mas intensos.
    Quatro pilares longos brotaram do chão e entre dois deles duas muralhas de gelo começaram a se fechar contra os pilares, formando um corredor estreito, irregular, translúcido. A luz atravessava as paredes congeladas e projetava reflexos azulados sobre o chão que estava congelado.

    — Isso é uma péssima ideia. — Lys murmurou, a voz saindo entrecortada pelo esforço de manter a estrutura. — Eu não sei se consigo manter.

    — Então descubra ué. — respondeu Ian, sem desviar o olhar de Aisha. — Hoje, o objetivo é aprender a lidar sob pressão quando o mundo está desabando contra você.

    Aisha inspirou fundo, começando a se concentrar. O ar frio queimava os pulmões mas depois dos últimos dias de treino isso já não incomodava tanto.. O espaço entre as paredes era estreito se ela abrisse os braços completamente, tocaria os dois lados sem dificuldade. O chão de gelo escorregava levemente, e cada movimento fazia ecoar o som metálico de suas botas.

    — Esse corredor vai afunilar? — perguntou ela, ajustando a postura.

    — Talvez sim… Talvez não — Ian apoiou a mão na bainha, sem desembainhar a espada de treino — Descubra por você mesma, talvez as paredes encolham, ou o teto desabe — ele deu de ombros enquanto passava a mão na cabeça —quem sabe? você vai ter que se arriscar.

    Ela forçou um sorriso. — E você acha que isso é justo?

    — Não. — ele respondeu, calmo. — Mas “justo” não é algo que o inimigo costuma ser.

    O primeiro embate veio sem aviso. Ian avançou, a bainha cortando o ar com força controlada. Aisha desviou por instinto para o lado, fazendo o ombro bater em cheio contra a parede de gelo. O impacto reverberou pelo corredor, e um floco de neve se desprendeu do teto.

    — Força demais. — Ian disse, andando em círculo. — Quando o espaço é pequeno, a noção de espaço deixa de ser opcional, força demais te mata, velocidade demais te mata se você não souber onde está pisando.

    — E o que salva? — ela perguntou, girando de lado.

    — Imaginação e criatividade.

    Aisha tentou recuar, mas agora haviam paredes de gelo na suas costas e atrás de Ian, o frio nas costas gelou a pele mesmo através da roupa. O segundo golpe veio de baixo, uma joelhada seca mirando o seu rosto, ela apenas desviou por centímetros, sentindo o vento do impacto. O som seco ecoou no corredor, seguido pela voz de Lys, distante:

    — Ian, se você acertar outro dos meus pilares, eu não vou conseguir manter a estrutura firme!

    Ele sorriu, sem tirar os olhos de Aisha. — Concentre-se. Pare de focar na quantidade de mana e preste atenção na estrutura do gelo. O inimigo não espera você achar uma saída bonita.

    A luta continuou, cada movimento as paredes de gelo se aproximavam deixando o ambiente cada vez mais restrito. O espaço se afunilava até começar a obrigá-los a lutar de lado, quase ombro a ombro, cada golpe de Aisha ficando mais lento e mais fraco. O som da respiração deles se misturava ao do gelo estalando com o peso da mana de Lys.

    Aisha tentou um avanço, lançando um chute mirando o centro de gravidade de Ian, mas ele simplesmente saltou travando as costas na parede enquanto as pernas empurravam a parede oposta, aproveitando o impulso do golpe vazio dela para desequilibrá-la. Ela caiu de lado, apoiando o braço contra o gelo. ficando com a cabeça desprotegida bem embaixo da espada de Ian.

    Ele parou.
    — E agora?

    Ela respirava rápido. — Agora… eu morreria.

    — Errado. — Ele deslizou pela parede até parar próximo a ela, estendendo a mão. — Agora você pensa.

    Ela olhou a mão dele, hesitou, depois a aceitou. Quando se levantou, ele concluiu:
    — Você tem muito potencial, mas precisa começar a pensar um pouco mais fora do padrão.

    O gelo ao redor começou a rachar, do lado de fora Lys estava exausta, já havia perdido boa parte do controle mas ainda mantinha as paredes de gelo de pé por pura teimosia. Mas tudo tem um limite, e no caso de Lys foi uma respiração errada e as paredes se desfizeram em fragmentos que caíam como blocos de gelo, já começando a derreter.

    Lys caiu de joelhos, ofegante.

    — Se quiser continuar esse tipo de treino, ao menos me deixe comer algo antes!

    — Claro. Mais do que justo. — Ian cruzou os braços, fingindo ponderar — Isso se o mundo fosse justo.

    Aisha limpou o suor da testa, ainda sentindo o frio nos músculos.
    — Então esse era o ponto do treino? Ficar sem saída?

    — Não. — respondeu ele. — O ponto era descobrir que sempre existe uma, mesmo quando você acha que não.

    Antes que ela pudesse responder, o som de passos apressados cortou o ar. Um dos batedores descia o morro, carregando um tubo metálico nas mãos. Parou diante deles, ofegante.

    — Rainha! Guardião! Mensagem urgente de Altheria. Transmitida pelo canal Arc.

    Lys pegou o cilindro, girou o lacre e desenrolou o pergaminho. Os símbolos de mana ainda brilhavam, pulsando como se estivessem vivos. Ela leu rápido, o olhar endurecendo aos poucos.

    Ian se aproximou, tentando decifrar a expressão dela.
    — Notícias ruins?

    Ela dobrou o papel e entregou para ele, que após ler o guardou no casaco.

    — O que houve? — Aisha perguntou se aproximando dos dois.
    — Thalien. — Lys respondeu, breve. — Houve uma explosão em Altheria. Ainda estão investigando.

    Aisha o olhou, atenta. — Ela disse o que causou?

    — Não. — Ian respondeu, a voz firme, mas fria.

    — E se ela não escreveu, é porque ainda não tem certeza. — Lys completou de forma automática.

    O silêncio que se seguiu foi pesado. Ian virou-se para os dois pilares quebrados, depois para Aisha.

    — Treino encerrado. Prepare o seu equipamento. Se Thalien escolheu nos avisar mesmo com a situação em Cervalhion estando tensa… É bom nós também nos prepararmos.

    Lys respirou fundo concordando com um aceno, apesar a sua expressão quase não ter mudado, Ian notou a preocupação em seu rosto, mas para Ian dizer que tudo ficaria bem apenas para conforta-la seria no mínimo desonesto.

    A caminhada até a caravana foi breve. O vento ainda carregava o cheiro de fumaça das fogueiras, mas o acampamento já se agitava em preparação para a partida. As carruagens estavam alinhadas em meia-lua, os cavalos inquietos, os criados recolhendo os últimos mantimentos.

    Alguns nobres conversavam à sombra das carruagens, trocando sorrisos tensos. Ian e Lys passaram por eles sem parar.

    Ao entrarem na carruagem, o barulho do lado de fora foi abafado, restou apenas o rangido das rodas e o som distante dos soldados gritando ordens.

    Lys sentou-se de frente para Ian, ajeitando o manto azul. Um pequeno baú repousava ao lado dela. Com a precisão metódica de quem já fizera aquilo mil vezes, abriu-o e retirou três cristais translúcidos, o véu de mana oscilando entre azul e prata.

    — Aqui. — disse ela, entregando os cristais a Ian. — São estabilizadores. Use um se o ar começar a distorcer.

    — Distorcer? — Ele arqueou a sobrancelha, analisando os cristais. — Espero que isso não seja uma previsão.

    — Em campo, sempre é. — respondeu ela, seca, e puxou do fundo do baú uma placa de metal fina, coberta de runas que pulsavam em tom pálido.

    Ian se inclinou um pouco para observar. — O que é isso?

    — Um Arcadium. — explicou, apoiando-o sobre o colo. — Canal de transmissão direta com o conselho. Tudo que escrevo aqui aparece na mesa, em frente ao trono.

    — Comunicação à distância? — Ian cruzou os braços, intrigado. — e sem uma âncora viva?

    Lys sorriu de leve. — O selo do trono reconhece a linhagem Seryn. e usa o próprio trono como uma ancora.

    — Hm. — Ele passou os dedos pelas bordas entalhadas. — Muitas runas aqui eu não conheço.

    — Você não é o único. — disse ela, pegando uma pena encantada e começando a escrever. — Boa parte foi adaptada das runas criadas antes da fundação de Altheria.

    Ian observava em silêncio enquanto os símbolos ganhavam forma. O som era suave, mana condensada riscando o metal, deixando rastros de luz.
    Ela escrevia rápido, a caligrafia elegante e firme.

    Relatório preliminar: mensagem recebida de Altheria. Possível explosão arcana no distrito leste. Solicitamos status atualizado. — Lysvallis, Rainha de Altheria.

    Quando terminou, ela passou a mão sobre as runas finais. Um brilho percorreu o Arcadium e sumiu.

    Silêncio.
    Por um momento, nada aconteceu. Então o metal vibrou, e novas runas começaram a surgir sozinhas, linhas fluidas se formando em resposta mas pouco nitidas.

    Lys e Ian trocaram um olhar.
    — Retorno rápido. — ele comentou. — Isso nunca é bom sinal.

    — Concordo. — respondeu ela, a voz baixa — por sorte ainda estamos dentro do alcance.

    As letras se fixaram, o tom azul tornando-se firme. Lys começou a ler em voz alta:

    Relatório da Alta Torre Neria. Explosão confirmada em Altheria, distrito leste da periferia. Origem: ruinas abandonadas Eryndral. Danos controlados. Contagem atual de vítimas identificadas: 187. Vários feridos. foi confirmado que um explorador Rallen Vorenn, voltou a vida após ferimentos fatais, caso ainda em analise. Nenhuma ameaça ativa. Sem necessidade de assistência — Assinado por, Malrik Vorrak. Thalien Soren.

    O nome ecoou na carruagem, pesado.
    Ian manteve o olhar firme, mas o músculo em seu maxilar se contraiu por um instante.

    — Rallen… — murmurou. — ele explorava as antigas ruinas?

    — Isso mesmo. — confirmou Lys, relendo o trecho. — Thalien afirma que a situação está sob controle. Ela insiste que não cancelemos a caravana.

    Ian se recostou no banco, o olhar voltado para a janela. A luz do sol já iluminava as montanhas.

    — “voltou a vida após ferimentos fatais”… — repetiu em tom pensativo. — É a maneira elegante de dizer que algo absurdo aconteceu.

    — E Thalien não desperdiçaria palavras para tranquilizar à toa. Ela está preocupada. — Lys fechou o Arcadium com cuidado, guardando-o de volta no baú. — Já ouviu falar de algo assim? — ela perguntou, observando-o.

    Ian desviou o olhar da janela e a encarou.
    — Não. — respondeu, firme. — Mas essa situação no tem nada de comum, vamos ter que resolver a situação em Cervalhion rapidamente.

    Lys assentiu, silenciosa. O rangido das rodas retomou o protagonismo.
    Por um instante, nenhum dos dois falou. O frio pareceu se intensificar dentro da carruagem.

    Lys quebrou o silêncio, o tom mais baixo:
    — Vou dizer a Thalien que continuaremos a viagem, mas que precisamos de tudo o que souber sobre Rallen e o incidente.

    — Que bom que pensamos igual — Ian respondeu com um olhar curioso. sorrindo de canto — aprendi a não confiar em acidentes.

    Lys pousou a pena sobre o Arcadium novamente. O brilho retornou, e as runas começaram a traçar a nova mensagem.

    Do lado de fora, o som dos cavalos ecoava, e a caravana enfim começou a se mover, descendo lentamente a estrada. Apenas uma vila e cinco dias de viagem, eram tudo o separava eles de Cervalhion.

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