— Sério? — Mas mal se importava. O olhar dele atravessava o espaço como se falasse com algo invisível para a sombra — Você tem a exata possibilidade de me matar na mesma probabilidade de me acertar! Então por que não faz?

    — Você… está louco… — a voz vacilou, entre o medo e a incredulidade.

    Aquele guardião tinha uma confiança impossível de se superar.

    Era uma parede de chumbo com pernas e olhos — imóvel, inquebrável, como se o próprio medo desistisse antes de alcançá-lo.

    — Estou! — o sorriso conformado tomou-lhe os lábios, mas era um sorriso sem vida, como o reflexo de um corpo boiando num lago escuro. Até as cobras mais escamosas e frias sentiriam lástima de si — A loucura — continuou — é só um atestado de consciência.

    Ele deu um passo à frente.

    — Antes da melancolia e do medo, o que é loucura? — perguntou, não como quem busca resposta, mas como quem já se acostumou a viver dentro da pergunta. Seus olhos, fundos, vibravam com um brilho febril — Diga-me… o que é ver demais e continuar lúcido? O que é olhar o mundo até o osso e ainda chamá-lo de lar?

    — O… quê?

    E em um silabar de letras, um eco se dissolveu no ar, como se as palavras fossem lâminas cortando o próprio tempo.

    Um som grave, quase orgânico, se espalhou… uma enxurrada bruta que distorcia o ambiente, fazendo as sombras se moverem como respirações.

    Era um ataque oculto entre letras.

    Um mero pulsar, que escondia a verdade por trás de suas vis intenções.

    Nada ali era dito por acaso…

    — Isso… — sussurrou, e o espaço respondeu, vibrando.

    Mas por estar em todos os cantos, a sombra só precisou transferir sua mente, deslizando entre frestas, rachaduras, reflexos, até reconstruir-se dentro do corpo que agora formava.

    Não havia carne nem forma definida, apenas a sensação de algo que não deveria existir ocupando lugar no real.

    Mas… o que realmente era?

    Um homem?

    Um delírio?

    Ou a materialização da própria pergunta que o mundo evita responder?

    — Viu? — a voz agora vinha de trás dele, calma, quase doce — Isso… é aproveitar momentos… instantes… a eternidade comprimida em um único respiro.

    Ele desceu até estar de pés ao chão, como se a gravidade o aceitasse com relutância. Seus olhos, duas fendas de um brilho impossível, encararam o outro com ternura, mas uma ternura que feria.

    — O medo é o luxo dos vivos. Eu, no entanto, aprendi a rir do vazio… — inclinou a cabeça, o som de ossos estalando misturado ao vento — E você? Ainda acredita que está acordado?

    — Eu… — Não aprendia. Burro.

    Assim que os lábios do velho comprimiram a transpiração na boca, o ar pareceu girar em torno de si mesmo.

    Uma ventania brutal se ergueu, arrancando árvores, pedras e pó.

    Tudo foi lançado em direção à criatura, que se curvou sobre si, tentáculos brotando do chão para se proteger.

    — Grrr…

    Mas a fera já estava solta.

    E correndo igual cachorro louco…

    A sombra não percebeu.

    Seus tentáculos batiam no chão como chicotes, abrindo crateras, e cada passo deixava marcas fumegantes.

    A mata ao redor se contorcia, árvores dobrando-se como se rezassem para não serem atingidas.

    O vento rugia junto… não um vento natural, mas um sopro, doente, como se o próprio ar estivesse em frenesi.

    — Você é muito burro! — o velho o chutou, o golpe o fez girar no ar como um boneco — Até quando vai cair na minha?!

    Mas o ser não caiu.

    Ele se desfez… a forma se dissolveu como tinta derramada, virando uma escuridão líquida que respingou e se arrastou pelo chão.

    — Ahn…?

    Um riso distorcido explodiu, ecoando de todos os lados.

    — Hahahahaha! — a sombra se condensou de novo, e, num piscar, assumiu a forma absurda de um esquilo, pequeno, mas ligado por um fino fio negro à densa treva que ondulava atrás dele — Você não pode me acertar com socos e chutes!

    — Hm… — ele coçou a barba, semicerrando os olhos — O que você é, afinal? Isso é sua manifestação de caos?

    Não poderia.

    Sabia.

    No mundo metafísico, nada existia de forma plena… tudo era tradução, uma simulação da presença.

    Qualquer manifestação de uma entidade se reduzia a um eco: a tentativa do imaterial de vestir a forma, de fingir ser tangível.

    Era a alma brincando de corpo.

    A sombra tentando se convencer de que tem peso.

    Então, aquilo só poderia ser… uma interação simulativa, um reflexo da vontade projetada no tecido da realidade.

    Negava essa necessidade e, ao fazê-lo, tornava-se intangível.

    Não carne.

    Não espírito.

    Mas a ilusão de ambos, sustentada por um pensamento tão intenso que ganhava corpo apenas enquanto fosse observado.

    E ele compreendeu: o que via não era o monstro.

    Era o pensamento do monstro sobre si.

    — Não vou dizer!

    — Justo! — respondeu com uma naturalidade que desafiava a lógica.

    Girou o pé contra o solo e se agachou, levantando uma cortina de poeira.

    — Hã?! — o esquilo deu um salto, confuso.

    O ar estourou como um trovão, e por um instante o mundo pareceu inverter-se o chão respirando, o céu se contraindo.

    — Yesod…

    — Dessa vez não! — rugiu, prevenindo-se.

    Num salto quase felino, subiu a árvore mais próxima, os tentáculos se desprendendo do seu redor e espalhando-se por toda a região como raízes famintas.

    Para garantir que não fosse finalizado.

    Esse era seu segredo…

    Enquanto houvesse raízes… poderia nascer.

    E renascer.

    — Ekolokatsya!

    O ar tremeu.

    Uma onda sonora percorreu o espaço, reverberando em todas as direções, mapeando cada corpo, cada sopro, cada partícula num raio de quinhentos metros.

    Nada escapava ao som. Nem o silêncio.

    O miserável mal entendeu o que acontecia. Só percebeu ter sido marcado quando ouviu, suave, quase piedoso… um suspiro.

    — Atzmut…

    Um passo para trás do velho.

    Seu espectro se movendo antes que o chão se abrisse em fendas, um tentáculo emergiu, tentando alcançá-lo, mas apenas sorriu.

    Um sorriso calmo, quase divino e enlouquente.

    E então, ergueu a voz uma última vez:

    — Hadarkol Elohim!

    O mundo se dobrou.

    O som explodiu… não ruído, mas reversão.

    Tudo naquele raio foi tragado, reduzido a zero, ao silêncio absoluto da criação antes da criação.

    Não havia defesa possível.

    A vibração atravessava matéria, alma, e conceito; não precisava entrar pelos tímpanos, pois já existia além da forma.

    Por um instante, o universo pareceu se lembrar de como era não existir. E entre as gargalhadas de um velho bêbado agora havia uma fenda no intermédio e uma dúvida… o que era aquilo?

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