Capítulo 55: Uma surpresa canídea (1)
“Wouleviel por muitas vezes sentiu fome. Cruzaram gado: porcos, galinhas, bois e ovelhas, trigo e cevada. Graças à Ocas Ciled, entenderam antes de muitos os princípios da hereditariedade. Mas Kierlrun foi diferente: cruzou e criou máquinas de terror.”
Izandi, a Oniromante

Ezekel se lembrava claramente de como fora a chegada da carruagem do irmão em Mão da Queda. A princípio, imaginou que viria draconeando em Lorelay. Dragões-reais tinham um curto tempo onde ficavam enfurecidos e instáveis após porem ovos, mas isto fora no inverno. A primavera já havia descido por completo na cidade dos Cyreck, com nuvens cinzas, escuras e brancas serpenteando pelo céu azul brilhante. No entanto, rei Rikard Godwill veio de carruagem, uma casa-móvel de doze rodas. Não trouxe membros de sua corte, sua esposa feiticeira ou seus filhos, mas três dos cavaleiros de sua guarda real.
— Seja bem-vindo, irmão, Vossa Majestade — e prestou uma longa mesura. Rikard levantou a mão direita e retribuiu um olhar seco para Ezekel.
— Evitemos as formalidades por agora, Ezekel. — Sentou-se no sofá. Estavam em uma grande sala de paredes vermelhas que pareciam veludo. Estantes, armários e pinturas de padrarias e praias jaziam nelas, e à frente de uma grande janela, havia uma mesa longa onde Ezekel estava sentado. — Como vai Ofina?
Ezekel enrubesceu e engoliu em seco a taça de vinho tinto.
— De ânimo contagiante, como sempre. — “Excessivamente satisfeita, penso eu.”
— Isso é bom. Isso é bom… — Olhou para a cidade pela janela. A mansão Cyreck residia sobre uma das colinas internas da grande cidade fortaleza. Nascendo timidamente entre as colinas, o sol primaveril tingiu o loiro forte da barba do rei Godwill. — Os Ceis serviram-no bem?
Ezekel suspirou e estremeceu.
— Nada ocorreu desde o ataque há quatro meses — ergueu os ombros. — Mas serviram-me excepcionalmente bem, irmão.
Uma sobrancelha de Rikard saltou.
— Ótimo.
O Godwill mais velho desabotoou o gibão de veludo e afrouxou as golas da camisa de algodão, então respirou fundo como se tivesse ele feito o percurso, invés dos cavalos. Está com olheiras, percebeu Ezekel, e olhos cansados.
— Também estou ansioso — reconfortou o mais novo, com dedos tamborilando a mesa. “Uma decisão mal tomada e soldados não atravessam fronteiras”, pensou amargamente.
— Eu não. Estou calmo como sempre fui a esse aspecto — respondeu o de voz grossa.
— Então o que te faz tão mal, irmão? — “Desde quando consigo ser tão incisivo?”
— Problemas matrimoniais.
— Algo de errado com a senhora Isolde?
Rikard se levantou e, com passos lentos, foi ao jarro de vinho mais próximo. Despejou-o numa taça chanfrada e bebeu um único gole. Aquilo pareceu alienígena ao mais novo.
— Ela está perfeitamente bem. — Cravou os olhos azuis escuros no caçula. — Nossos filhos também, Ezekel. O problema reside em casamentos alheios. Lhe contarei os problemas de nossa terra quando terminarmos o conselho.
Ezekel estaria mentindo se dissesse que estava bem com isso. Greanalg também era importante para ele… Talvez até mais do que a Cidade de Diamante. “A Cidade está melhor agora”, pensara. Entregara à Cei Sefriri uma lista de coisas à fazer. Agora que a primavera voltara, as fábricas de metal e vapor voltariam a funcionar com a intensidade proporcional aos artífices de Ocas Ciled voltariam ao trabalho. “Pão e sapatos”, se lembrou. As pessoas ainda o agradeciam nas ruas.
Mas não fora na Cidade de Diamante onde cresceu. Não fora na Cidade de Diamante onde encontrara a metade da sua alma. E não era na Cidade de Diamante onde queria criar seus filhos.
— E então? — perguntou, após tomar muita coragem. — O que veio me avisar, irmão? — questionou na linguagem dos Godwill.
Rikard levantou a sobrancelha esquerda e deixou a taça mal bebida no ombro do sofá.
— A Casa Mynson e a Casa Godwill são aliados há mais de mil anos — começou, na melódica soma de chiados da língua secreta. — No entanto, rei Alelse Myson não virá.
Ezekel estremeceu. Não seria isso um aliado a menos? “Não, o Conselho sequer acontecerá! Faz parte do tratado, todos os cinco reis…”
— Invés disso, sua esposa virá. A rainha Kya Mynsom virá no seu lugar. Ela é tão astuta e aliada nossa quanto o senhor seu esposo.
O príncipe Godwill suspirou e descansou as costas na cadeira. “Ao menos isso.”
— Quanto aos Troikg…
— Ainda há sobreviventes dos Troikg capazes de chegar aqui? Pensei que todos tinham morrido de doença, após a guerra civil.
— Uma única. O pai enfim sucumbiu à doença. — Cobriu a boca com a mão, então olhou para as botas. — Lycia Troikg, herdeira direita do pai Asghal Troikg, morto tanto por doença quanto guerra fratricida, e ela estará aqui. No entanto, ela possui oito anos.
“Oito anos?!”
— A chamam de Pequena Rainha em Greatedan — continuou Rikard.
A mente de Ezekel entrou em tumulto. Tinha pouco menos do que a idade de um adulto, mas, ainda que nunca falando em voz alta, desprezava o dia em que Rikard o pôs como id Baene. Ainda era muito novo. “Ainda sou… Pobrezinha”, pensara. “Quanto peso foi posto em suas costas?” No seu coração, decidiu dar um lugar acalentador à Pequena Rainha. No entanto, não havia lugar para isso. “Eu tenho coragem”, disse para si. Realmente tinha? Que coragem permitiria maldade a uma menina de oito anos?
— Devo considerar isso como um a menos?
— Não sei — respondeu com ira na voz. — Ela foi coroada este mês.
“Escondida por oito anos.” Ezekel conhecia elementalmente a conturbada existência de Greatedann. Era uma terra não de ducados e principados, mas de marcas e muitas marcas. Ainda adoravam deuses antigos, velhos e desconhecidos; rezavam com carcaças de animais e menires altos como torres. Não faziam casamentos sagrados, mas os pais escolhiam os noivos de suas filhas em combate. “Torneios”, lembrara-se. Natharel participara de um desses, lembrava-se.
Ainda assim, os greatenses eram senhores da guerra excelentes com seus palafréns ruivos e raivosos.
— Aos outros dois, o príncipe Howan Bloemennen virá no lugar do pai, que segue doente. — Fez um sorriso sombrio ao lembrar-se de Rheider Bloemennen. No entanto, o sorriso morreu imediatamente ao se lembrar do próximo: — Por Kierlrún, virá… — Cerrou os dentes furiosamente. — Virá um subordinado de Randi Veerle Wehreisen-Hart. Não se deixe enganar por ela, Ezekel. Aquela criatura não é humana, é uma parricida, matricida e fratricida. Ela não virá em pessoa, representando seu avô mantido vivo por bruxaria. Mas um subordinado dessa criatura é diabo igual à mestra. Temos uma aliada perspicaz, um jovem incontrolado, uma criança e um servo da criatura.
Rikard se levantou. Ignorou como Ezekel tinha o coração saltando pelo peito e cerrava os dentes olhando para as botas.
— Temos cinquenta mil homens preparados para cruzar a fronteira. Cinquenta, não dez, cinco ou cem.
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