Índice de Capítulo

    A luz do fim da tarde atravessava os vitrais altos da sala do trono de Cervalhion.

    Tingindo o chão de pedra com tons dourados e vermelhos, na plataforma elevada ao fundo, três tronos aguardavam seus ocupantes.

    O maior, de ouro envelhecido e veludo rubro, estava ocupado por Aedin Valcor, enquanto os dois tronos menores, o da rainha e o do herdeiro permaneciam vazios, recobertos pelo véu cerimonial acinzentado sinal silencioso da ausência temporária, mas carregado de significado para os presentes.

    Aedin apoiava um cotovelo no braço do trono, o olhar atento e calculista, enquanto os nobres tomavam seus lugares em quatro fileiras diante dele.

    Do lado de fora, o som distante de cascos e o martelar dos ferreiros reais soavam como lembretes constantes. Cervalhion permanecia uma cidade em guerra, mesmo protegida por suas muralhas ancestrais. O general Marcos Vales, homem corpulento de expressão endurecida, foi o primeiro a falar, sua voz grave rompendo a tensão silenciosa:

    — Majestade, as defesas a leste estão sucumbindo. As bestas avançam com uma rapidez que supera nossa capacidade de reagrupar as tropas. Nas últimas duas semanas, três grandes bestas, foram avistadas. Uma foi abatida, mas as outras duas permanecem ameaçando o vale de Thiren.

    — Quais são as baixas? — Aedin perguntou, firme, mas tranquilo.

    — Sessenta e três mortos e mais de quarenta feridos. — respondeu Marcos. — As patrulhas recuaram para o forte do fogo.

    Um murmúrio de preocupação percorreu o salão. Alguns nobres trocavam olhares tensos; outros pareciam mais interessados em medir a reação do rei do que a gravidade da notícia.

    Aedin recostou-se levemente, cruzou as mãos.

    — E o marechal local?

    — Falhou em manter a linha. — respondeu o conselheiro militar. — Ele relata que o avanço das bestas é “anormal” e que a densidade de mana aumentou de forma inesperada nas últimas noites.

    O rei assentiu lentamente.

    — Então, o leste está perdendo terreno.

    — De forma crítica, Majestade. — confirmou Marcos. — Se não reforçarmos logo, perderemos toda a fronteira antes do próximo ciclo de lua.

    À direita, um lorde, conhecido por sua língua afiada, deu um passo à frente, a irritação evidente em suas feições.

    — Com o devido respeito, Majestade, esta não é uma situação nova. Quando Altheria enfrentou algo parecido, eles pediram ajuda a Cervalhion. É qual foi a decisão?Ignoramos o pedido! — Ele se virou Lançando um olhar enviesado aos outros nobres, antes de prosseguir — muitos aqui acreditavam que eles cairiam sozinhos, seriam massacrados, e no entanto não apenas sobreviveram como agora eles enviaram representantes… e até um Guardião. Um Guardião, Majestade! Para ajudar a conter as bestas.

    O silêncio que se seguiu foi pesado, como se o próprio salão prendesse a respiração. O nome dos Guardiões ainda carregava peso quase mítico e a simples menção de um deles dentro das fronteiras despertava medo e admiração em igual medida.

    Aedin o observou por um momento, sem raiva.

    — Lorde Rennar Olsven… está dizendo que deveríamos ter enviado nossos exércitos a Altheria? — perguntou, a voz firme. — e deixar nosso território desguarnecido?

    Rennar hesitou por um momento .— Só digo que… não podemos agir como se não houvesse consequências para as nossas decisões. E agora iremos permitir um Guardião de Altheria caminhe por estas terras, Majestade isso é arriscado demais.

    O rei manteve o olhar, depois desviou para o mapa pendurado na parede da sala do trono.

    — Consequências existem em tudo, Lorde Renner estou ciente dos riscos.

    Aedin inclinou-se para frente, a voz calma, porém firme.

    — Preparem os relatórios das defesas e dos reforços disponíveis. Amanhã, ao nascer do sol, quero um plano para recuperar o leste.

    — Sozinhos não teremos força suficiente — alertou o general. — Não sem apoio externo.

    Os olhos do rei se fixaram nos dele.

    — Então teremos que ser criativos general, ou pretende que o seu Rei vá até o fronte resolver isso pessoalmente?

    O Clima do salão ficava cada vez mais denso; o calor das tochas parecia disputar com o frio que entrava pelas frestas das janelas.

    O rei vasculhou os olhares de todos os presentes, um a um, até o último nobre que ousava sustentar seu olhar.

    — Cervalhion não recuará — declarou, finalmente. — Nem agora, nem jamais.

    As palavras ecoaram como um decreto.

    Por um momento, até os mais teimosos pareceram desistir do assunto, mas apenas por tempo o suficiente para o som das vozes voltar a preencher o espaço assim que a postura firme de Aedin se dissipou.

    Bastou um dos nobres romper o receio para a desconfiança se espalhar como fogo em palha seca.

    — Com todo respeito, Majestade, concordo com o conselheiro, o verdadeiro perigo não está no leste. — disse um Lorde, magro, de traços afiados. — Está vindo do norte.

    Aedin o encarou com a mesma feição calma de sempre.

    — Explique-se, Lorde Drastin. — ordenou, num tom calmo, mas incisivo.

    Vael Drastin engoliu em seco, mantendo a postura.

    — Altheria enviando um Guardião… não é um gesto de boa vontade, Majestade. É um movimento político. — Ele fez uma pausa, buscando apoio nos outros nobres. — Um Guardião em Cervalhion significa influência direta sobre nossas defesas. E, consequentemente, sobre nossas decisões.

    O comentário provocou murmúrios imediatos. Alguns assentiram com a cabeça, outros olharam ao redor como se esperassem ver alguma hostilidade de Aedin.

    — E se for isso mesmo? — disse outro nobre, voz aguda. — E se Altheria estiver se aproveitando do caos para firmar domínio sobre nossas fronteiras?

    — O mesmo vale para Elandor! — acrescentou alguém do fundo. — Eles já enviaram uma Guardiã e soldados para “ajudar” nossas guarnições. Hoje é ajuda. Amanhã, vai virar uma ocupação!

    As vozes passaram a se sobrepor, o ar tornando-se pesado.

    Aedin permaneceu imóvel por segundos, até que a sua voz cortou a discussão que escalava.

    — Então é medo o que governa esta sala — disse, por fim. A voz baixa, porém cortante. Fazendo os nobres retomarem a postura — Medo de aliados, medo de ajuda, medo de perder o que vocês possuem.

    Aedin se inclinou para frente com os cotovelos apoiados no joelho

    — Desde quando os poderoso nobres guerreiros de Cervalhion se reduziram a isso?

    As palavras caíram com peso. Poucos tiveram coragem de encarar o rei.

    Ele se levantou do trono o som das botas nos degraus de pedra ecoou por todo o salão.

    — Elandor enviou uma Guardiã para proteger civis. Não houve imposição, nem exigência. Vocês duvidaram das intenções deles? — o olhar do rei varreu a sala. — Não.

    Deu um passo à frente, a luz refletindo na insígnia real presa ao ombro.

    — Então, por que questionar Altheria? Porque o Guardião é do norte? Ou porque é forte demais para transformar vocês em um bando de medrosos?

    Um desconfortável murmúrio percorreu o salão. O General Marcos abaixou os olhos em respeito e por prudência.

    Aedin parou a poucos degraus do pé da escadaria.

    — Cervalhion não se manterá em pé desconfiando de quem estende a mão. — A voz dele tornou-se mais grave — Se os Guardiões estão em movimento, é porque algo está mudando na Barreira. E isso, senhores, é maior do que o orgulho de qualquer casa nobre.

    Por um momento, só se ouviu o estalo distante do brasão metálico dos estandartes das casas batendo na parede, balançando com o vento que entrava pelas janelas.

    Até que uma voz velha e grave, ergueu-se:

    — Majestade… — era Lorde Harn Velstor, o conselheiro mais antigo. — Se for verdade que o Guardião do Norte é o mesmo dos relatos antigos… o original… a nova geração não teria como contê-lo se ele decidisse agir contra nós.

    Aedin o encarou longos segundos. A menção ao título “original” parecia pesar.

    O rei não reagiu com medo ou dúvida, apenas recostou o peso em uma das pernas, cruzando os braços.

    — Se ele é o mesmo… — disse lentamente — então é um homem que salvou mais vidas do que qualquer um nesta sala.

    O conselheiro hesitou.— E se ele não for mais o mesmo?

    Aedin deu um meio sorriso sem humor, sem ironia, apenas aquela calma que vem de quem sabe mais que diz.

    — Então vamos descobrir. — respondeu. — Mas até lá, ele é nosso convidado. E será tratado como tal.

    Os nobres se entreolharam, frustrados, alguns inconformados, mas nenhum ousou contestar.

    — Mas senhores, não consigo entender o seu medo… sabemos o que Altheria tem, sabemos o que Elandor tem a oferecer como risco, mas o que importa? foi exatamente por causa da chegada deles que não enviei nosso chefe da guarda para o leste e também não me dirigi pessoalmente ao leste, eles podem ser fortes… mas nos não estamos atrás deles em força, então senhores, deixem que eles venham, varreremos os campos com seu sangue caso tentem algo.

    O gesto foi simples mas o peso das palavras foram o suficiente para dissipar parte da tensão.

    — Continuem. — Aedin disse, ajustando o manto nos ombros enquanto olhava para os nobres.

    — Há problemas demais para boatos.

    O marechal se aproximou com os relatórios, mas a mente de Aedin ainda pairava sobre o nome recém-proferido. O Guardião do Norte. O homem que, segundo relatos, enfrentara grandes bestas, sobrevivera a três eras de guerras e matou até um dragão.

    Talvez os exageros fossem inevitáveis. Mas, dentro dele, uma dúvida crescia “e se parte dessas histórias fosse real?”

    O som dos passos ecoou no piso de mármore, o capitão da guarda real entrou no salão enquanto os nobres se recompunham. O capitão da guarda se aproximou com passos firmes, com as botas metálicas pesadas ecoando no salão, ele passou por entre as fileiras de nobres parando ao pé do primeiro degrau da escadaria.

    — Está atrasado meu amigo — Aedin falou finalmente voltando a se sentar no trono com um sorriso no rosto.

    — Peço perdão pelo atraso Majestade — O capitão removeu o elmo finalmente revelando um homem de meia idade, de cabelos escuros curtos. — Mas alguém tinha que colocar ordem no lado oeste da capital.

    Aedin abriu um sorriso.

    — Olha só… está dizendo que não tomo conta do meu território?

    — Majestade… longe de mim proferir tal ofensa… mas acho que os efeitos da idade estão chegando mais cedo do que o esperado para o meu lider.

    Os dois se encararam por alguns instantes, por mais que os nobres já estivessem acostumados com a interação dos dois, não deixava de ser perigoso, já que eles podiam sair lutando sem aviso. O conselheiro militar que estava ao lado do Capitão da Guarda interveio.

    — Majestade… sobre os reforços do leste — começou cauteloso — já estão sendo deslocados cinquenta cavaleiros e dois destacamentos de arqueiros para apoiar o marechal. No entanto, se as bestas realmente surgem em grupos, temo que não seja suficiente.

    Aedin assentiu, a mão no braço do trono.

    — As defesas do leste receberão reforço da guarnição de Valefronte. As torres de vigia terão reforço mágico. Nossos magos trabalham nas runas de alerta e contenção.

    Um murmúrio satisfeito circulou entre alguns nobres, até que Lorde Yusuf Demir levantou a voz:

    — Então os preparativos para contingência já estão prontos, Majestade?

    Aedin lançou um olhar firme. — Sempre estiveram. Nenhum reino sobrevive confiando na sorte.

    Alguns nobres trocaram olhares inquietos sabiam o que o rei queria dizer. Contingência era o nome informal das forças do rei que estavam fora dos registros oficiais. que tinham extremo êxito contra magos, poucos conheciam, mas todos temiam.

    Seren Halvor, duque das Colinas Altas, deu um passo a frente

    — Com o devido respeito, Majestade, o problema não é apenas militar. — disse baixo, firme — Os representantes de Elandor tentam firmar alianças na cidade. Se Altheria chegar em sete dias e talvez cheguem em menos, teremos duas potências disputando o mesmo espaço político.

    — É verdade — completou Vael — Elandor oferece remédios e proteção, mas cobra o controle das rotas de ervas. Altheria, chegando com o Guardião, exigirá acesso as nossas defesas mágicas.

    Os murmúrios cresceram, ecoando preocupações e intenções reveladas. Aedin observava, deixando-os falar. Quando a agitação atingiu o ápice, ergueu a mão.

    — Elandor e Altheria são aliadas no momento, não correntes. Se quiserem dividir territórios, que o façam nos mapas. Aqui, quem define limites sou eu.

    Os Nobres trocaram olhares preocupados mas curiosamente foi o jovem Lorde Calen, recém-barão, quem quebrou o silêncio:

    — Majestade, e os rumores sobre o Guardião do Norte? — hesitou — O povo o idolatra. Os relatos se espalham como fogo, dizem que ele ergue muralhas de gelo, enfrenta dezenas de bestas sozinho, e que até os ventos do norte o seguem.

    Alguns nobres assentiram desconfortáveis, outros pareciam irritados.

    — Ele está virando símbolo, Majestade. — disse Vael. — E símbolos, quando não controlados, tornam-se perigosos.

    Aedin recostou-se, mãos cruzadas diante do rosto. O fogo das tochas tremeluzia em seus olhos, refletindo um brilho frio.

    — Deixem o povo acreditar em heróis. — disse enfim. — Enquanto tiverem alguém em quem crer, não olharão para o abismo da nossa situação.

    Aedin levantou-se, descendo os degraus.— Esta reunião está encerrada, já se estendeu mais do que deveria para o meu gosto. Cuidarei para que o Guardião não seja nem mito nem ameaça. — completou com um leve sorriso. — Mas um aliado. E para isso, preciso saber quem ele é de verdade.

    — Como pretende descobrir? — indagou um lorde ao fundo, cauteloso.

    Aedin parou na escadaria.

    — Isso cabe a mim Lorde Mores, mas como ja disse esta reunião acabou.


    O salão se esvaziava lentamente. As vozes dos nobres transformaram-se em murmúrios dispersos, ecos distantes de tempestade perto do fim. Um a um se retiraram, alguns trocando olhares calculados, outros escondendo inquietação atrás de cortesia.

    Aedin estava parado ao lado do capitão da Guarda que ao contrario dos nobres não havia saído, ambos observavam o brasão de Cervalhion um cedro com o sol ao fundo.

    A luz do fim da tarde projetava uma sombra do trono no mármore frio. Aedin respirou fundo. O ar cheirava a cera e ferro, mas também a medo. Medo das bestas, medo do desconhecido, medo que algo ou alguém mudasse o equilíbrio tão duramente conquistado.

    — “Símbolos perigosos…” — murmurou baixinho, recordando Vael. Símbolos eram o que mantinham o povo unido. Não ouro, nem muralhas, nem aço mas a crença em algo capaz de enfrentar o impossível. Aedin caminhou lentamente pelo salão junto do seu capitão, as chamas refletindo nas joias do colar real. O eco dos passos se perdeu entre os vitrais. Do lado de fora, a cidade respirava. Vozes distantes, martelos no portão, e acima de tudo, o rumor das ruas.

    Histórias corriam mais rápido que mensageiros. O nome do Guardião do Norte chegara muito antes da caravana. O homem que comanda o gelo. O guerreiro que ergue muralhas com as mãos. O protetor que enfrenta as bestas e não sangra. Cada versão aumentava os detalhes, cada aldeia o transformava. Em dias, o Guardião deixara de ser apenas nome e tornara-se cada vez mais uma lenda viva. E lendas, Aedin sabia, moldavam impérios.

    Ele caminhou à varanda lateral, onde o vento levava cheiro das colinas e murmúrio do rio. Na cidade baixa, tochas serpenteavam entre becos.

    — Eles estão certos — O capitão murmurou.

    — Eu sei

    Aedin sabia que precisava separar verdade do exagero. Mas também sabia que quanto maior o mito, menos controle teria.

    — Majestade, a situação do lado oeste está se complicando. — O capitão falou arrumando a ombreira da sua armadura. — esses aparecimentos de besta no leste eu até posso entender.. mas no oeste? no centro do continente? próximo a nossa capital? parece até que estamos sendo amaldiçoados por não ajudarmos Altheria…

    — Você também não Dan — Aedin encostou os braços no para peito. — Nos erramos com Altheria naquela vez, mas isso é diferente… cada vez mais eu acredito que a sua teoria possa ser verdade.

    — Qual delas?

    — A que a barreira pode não só estar nos protegendo das bestas mas também nos prendendo com elas.

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