Capítulo 47 – O Fim
Conto: Li Wang
Li Wang estreitou os olhos, ignorando a ardência da mão recém-regenerada. A raiva queimava em seus músculos, como ferro em brasa, dando fôlego a cada movimento.
Ela avançou como um raio sombrio, rasgando a névoa com os punhos envolvidos pela energia negra de Azazel, que pulsava em sua alma como um tambor de guerra.
A terra tremia sob seus pés e o tempo pareceu esticar, cada segundo dilatado como uma corda prestes a arrebentar. Li Wang pensou rapidamente:
“Vou matá‑la com um golpe. Ela é poderosa demais, não posso deixá‑la viver.”
Mas antes que seu golpe atingisse o rosto da inimiga, Althaia desapareceu.
Antes que o punho alcançasse o rosto inimigo, Althaia desapareceu. Ressurgindo atrás dela num movimento sutil, quase preguiçoso.
Sem aviso, cravou o machado nas costas de Li Wang. Um estalo de carne rasgando e ossos quebrando ecoaram pelo bosque.
Li Wang caiu de joelhos, o corpo dobrando-se como madeira podre, a respiração curta e quente misturando-se ao cheiro de terra úmida e sangue. Com um movimento frio e preciso, Althaia retirou o machado, o som seco do metal cortando a carne ainda reverberando no ar, mas a lâmina já não permanecia cravada nela.
O mundo se desfez em segundos. O machado antes cravado nas costas de Li Wang não apenas quebrou ossos, despedaçou sua coluna, arrastando cada vértebra para fora do alinhamento natural com um estalo que ecoou dentro de sua própria cabeça. Ela sentiu cada nervo gritar, cada músculo se contorcer, e por uma fração de instante, a dor se tornou tudo que existia.
Então veio o horror absoluto: seus órgãos, arrancados do lugar, pendiam, flutuando sobre o chão ensopado de sangue e terra, puxados de volta por fios negros que se contorciam e giravam como serpentes vivas. Li Wang os viu — estômago, fígado, rins — caídos e se recolhendo lentamente, enquanto a mente ameaçava ceder à loucura. Cada fibra de seu ser gritava, cada pensamento era uma lâmina retorcida, e um pânico quase animal ameaçou arrancar seu ódio como a última tábua de salvação.
Ela sentiu a insanidade lambendo sua consciência, tentando rasgar sua racionalidade. Por alguns segundos, seu cérebro hesitou entre o terror e o nada. Mas Azazel rugia dentro dela, firme e insistente, puxando os fios negros de volta, costurando sua carne e órgãos com precisão sobrenatural. O ódio que sentia por Althaia se tornou âncora, mantendo sua mente focada mesmo diante do horror.
Cada segundo foi uma eternidade, cada respiração uma tortura. Mas a clareza retornou, fria e cortante. Ela podia morrer ali, e talvez devesse, mas ainda havia uma coisa que precisava fazer: matar Althaia.
Quando a coluna voltou a se alinhar e os órgãos retornaram para dentro de si, puxados pelos fios negros do manto de Azazel, Li Wang arfou, cuspindo sangue, o coração martelando no peito, um lembrete que estava viva.
Mas a dor ainda era intensa, cada músculo protestava, mas sua mente, embora balançando na borda da loucura, estava focada.
Ela girou o corpo, mesmo com os punhos tremendo devido o medo, e mirou o coração de Althaia.
Pensou, por um instante que para ela durou uma eternidade, que seu soco atravessaria o peito daquele demônio travestido de menina. Mas Althaia se inclinou levemente para o lado, desviando sem esforço e segurando o punho de Li Wang com uma delicadeza quase infantil.
— Pensei que você fosse mais que isso… — disse com voz calma, os olhos rubros fixos nos dela.
Com um giro simples do braço, Althaia arremessou Li Wang por cima dos próprios ombros. Ela voou alguns metros, arrastando-se pelo chão. Tentou se manter em pé, agarrar-se a algo, mas a força que a lançou era tão brutal que mal conseguiu reduzir a velocidade. Só parou a alguns metros, abrindo um sulco profundo na terra e nas folhas mortas, ofegante com o corpo latejando de dor.
Li Wang cuspiu terra e sangue, cambaleando de volta para a luta. Cada fibra do corpo gritava, cada osso e músculo reclamava, mas o ódio que a mantinha viva a manteve consciente e mortal.
Ela avançou como um animal encurralado, selvagem, instintiva, faminta por vencer. Os pés se cravaram na terra, os músculos tensionados ao limite.
Não havia técnica.
Só fúria.
Desferiu uma sequência violenta de socos, cotoveladas e joelhadas, cada golpe carregado com a força crua da sobrevivência.
Althaia, porém, esquivava-se com facilidade.
Mas aquilo já não era dança.
Era confronto. Um duelo animalesco.
Giravam, batiam, rosnavam. A floresta ao redor parecia murchar diante da fúria que se espalhava. Cada impacto soava como ossos se partindo. Li Wang rangia os dentes, o sangue escorrendo da testa.
Ela não queria lutar. Ela precisava.
Mesmo com a raiva queimando em cada veia, Althaia permanecia dominante. Cada desvio dela era um insulto, cada bloqueio, uma humilhação. Ainda assim, Li Wang persistia. Lutava como quem respira. Entendia que, se parasse, morreria ali mesmo.
No ápice do confronto, Li Wang mirou um chute lateral no pescoço da inimiga. Um golpe letal, preciso, veloz e desesperado.
Althaia bloqueou com uma mão só, afastando o ataque como se fosse uma folha levada pelo vento. Num gesto inesperado, cravou o machado no chão ao lado, sem sequer olhar para ele.
— Vamos nivelar as coisas — disse, girando os ombros como se estivesse apenas se aquecendo. — Só eu e você. Sem armas. Só punhos.
Li Wang congelou. Não era respeito. Era desprezo.
— Está me menosprezando? — rosnou, cerrando os punhos.
Althaia sorriu levemente, aquele tipo de sorriso calmo que precede uma tempestade.
— Estou te dando uma chance de lutar comigo. Só isso.
Foi como um soco no orgulho.
Li Wang avançou, punhos banhados em energia negra. Azazel rugia, e sua aura parecia vibrar na floresta, fazendo folhas e poeira girarem no ar.
Althaia a recebeu com um gancho no estômago que arrancou o ar de seus pulmões e logo em seguida um soco lateral atingiu sua mandíbula.
O mundo girou. Li Wang caiu, rolando pelo chão.
Quando tentou se levantar, Althaia já estava à frente, olhando de cima com a serenidade de um monge e o poder de um deus.
— Você é fraca. — disse, baixando-se para encarar os olhos de Li Wang.
Ela ofegava. Os joelhos tremiam. Cada costela gritava de dor.
Mas os olhos ainda queimavam. Ela não cederia. Ainda não.
Como se surgisse das trevas, o machado de Althaia, antes cravado na terra a alguns metros dali, começou a se materializar em suas mãos, envolto por uma luz sombria e silenciosa.
— Acabamos aqui… — disse a garota, a voz fria como uma sentença.
Li Wang mal teve tempo de reagir.
Num único golpe lateral, preguiçoso e quase desinteressado, o braço esquerdo dela voou no ar como um galho podado. Antes mesmo que a dor a alcançasse, veio o segundo, um corte limpo, brutal, que arrancou sua perna direita da coxa com a mesma facilidade com que se colhe uma flor.
O mundo girou.
O impacto a deixou sem ar. Mas a dor não veio de imediato, apenas o silêncio.
Um silêncio espesso, abafado, impossível.
Então o sangue jorrou.
Muito.
O gosto metálico invadiu sua boca, escorrendo pela garganta como um rio impiedoso. Ela sufocava, tossindo, se afogando em seu próprio sangue.
Enquanto a visão se turvava em tons vermelhos e a névoa cobria seus olhos, viu — de baixo para cima — a silhueta tranquila de Althaia, ainda de punhos cerrados, observando-a como quem contempla uma pedra sem valor.
Fraca. Inútil.
Era isso o que ela era.
Seu corpo tremia, não por resistência, mas por falência. Os músculos não respondiam. Os pulmões ardiam. E o peito… o peito sangrava mais do que as feridas.
“Por quê…?”
A palavra ecoou em sua mente, não como pergunta, mas como confissão.
Ela sentia a vergonha corroer o que restava de sua alma.
Tudo… havia sido em vão?
Ali, caída entre folhas e sangue, Li Wang conheceu a mais cruel das sensações:
A absoluta impotência.
Mesmo à beira da morte, forçou-se a rastejar pela terra úmida como um corpo mutilado que se recusa a morrer. A cada movimento, mais sangue. A cada segundo, mais sufoco. Mas, mesmo assim, seus olhos queimavam com um ódio tão puro que era possível ver o inferno refletido no fundo deles.
Lethos aproximou-se, as botas afundando no chão encharcado, até onde Althaia permanecia imóvel.
Observou Li Wang caída, sem braço, sem perna, convulsionando em silêncio no tapete de sangue.
— Acabou rápido. — Murmurou, entediado. — Pensei que ela fosse durar mais… pelo menos alguns minutos.
Althaia não respondeu de imediato. Apenas limpou a lâmina do machado com calma e virou o rosto para a floresta adormecida.
— Ela ainda está viva. — disse, com a serenidade de quem comenta o clima.
Lethos arqueou uma sobrancelha, curioso.
— E vai deixá-la assim?
— Já está derrotada. — respondeu Althaia, começando a se afastar. — Não há mais nada ali que valha o esforço de um golpe final.
Ela parou por um instante, pensativa, antes de completar:
— Se continuar viva… talvez aprenda alguma coisa.
Lethos soltou uma risada baixa, sem humor.
— Cruel da sua parte, Althaia… deixar uma mosca agonizando só pra ver se ela rasteja ou apodrece.
— Não é crueldade. — respondeu ela, sem olhar para trás. — É misericórdia.
E continuou afastando-se cada vez mais, como se nada daquilo tivesse significado algum.
Lethos permaneceu ali por alguns segundos, observando o corpo mutilado no chão.
— Patética… — murmurou, virando-se em seguida
O campo ficou em silêncio.
Não havia vento, nem canto de aves, nem o som da neve caindo. Só restavam o pingar do sangue e a respiração falha de uma mulher que se recusava a morrer.
O frio voltou.
Não o frio da neve, mas aquele que vinha de dentro.
Aquele frio que surge quando a alma começa a se apagar.
Li Wang sentia cada fibra do corpo falhar. O sangue quente que ainda escorria de seu ombro e da perna amputada formava uma poça embaixo dela. E, mesmo assim, ela tremia. Tentou mover os dedos da mão restante, mas já não havia força. Cada respiração era uma tortura. O mundo girava devagar… e tudo ao redor parecia se desfocar.
“É assim… que termina?”
A pergunta ecoou na mente dela como um sussurro antigo.
“Foi só isso que consegui…?”
A brisa soprou leve, levantando grãos de terra e brasas apagadas, pousando sobre seu rosto ferido. Uma partícula morna deslizou pela pele, misturando-se à lágrima solitária que escapava de seu olho.
“Desculpa, Yu… Pai… Andrew… Sarah… Dayse… Henry… William… Bárbara…”
“Eu falhei.”
Imagens cruzaram sua mente como ecos de um mundo que já não existia. Não eram memórias nítidas, eram fragmentos, lampejos, como se sua alma, ao se desfazer, buscasse desesperadamente as âncoras que ainda a prendiam à vida.
O rosto calmo de Yu Xingjiao Qing, aquele sorriso sereno, a voz doce instruindo-a a comer devagar. Ele era o primeiro a estender a mão a ela, quando ainda era só uma criança faminta. Sentiu o calor dele outra vez, a presença que a acalmava, que a fazia acreditar que poderia existir bondade no mundo.
Edward Oscar, seu pai, com olhar austero, mas orgulhoso, quebrando o silêncio de uma vida de rejeição com um gesto de ternura. Por pouco tempo, mas suficiente para marcar sua alma.
Andrew, ensanguentado, olhos pesados de frustração e medo, perguntando por Henry. Ele confiava nela. E ela falhou. O olhar dele voltou a ela com a pergunta silenciosa que ela não tinha coragem de responder: “Você me traiu?”
Sarah, corajosa, enfrentando a morte ao lado de seu amado, seu sacrifício ainda queimando na memória.
Dayse, sempre presente, sempre amorosa, alguém que Li Wang considerava uma verdadeira amiga. A pessoa que mais confiara nela, e que agora pagava o preço do seu fracasso.
Henry… o pequeno Henry. A criança que jurara proteger. A promessa que fez com cada pedaço de seu coração. E falhou. Falhou miseravelmente. A culpa rasgava sua mente como fogo, e o peito doía mais do que qualquer ferida física.
Bárbara, uma garota tão frágil com um passado tão pesado, alguém por quem Li Wang sentia cuidado e amor, mas não pôde proteger.
E então, William, o único entendia sua insegurança, fraqueza, impotência e raiva, e mesmo assim, continuou ao seu lado até o fim…
O corpo doía, sim. Mas nada comparava à dor que restava na alma.
Ali, no chão, com o sangue escapando e a vida se esvaindo, Li Wang compreendeu o que significava estar verdadeiramente sozinha.
E mesmo assim… ela não odiava ninguém.
Apenas a si mesma.
Mas havia algo que escapava da morte: uma clareza cruel.
Não era arrependimento vazio. Era epifania: cada falha, cada perda, cada perda de vida que não pôde impedir, moldava a verdade do mundo.
Não existia redenção para ela, mas havia consciência. E no último instante, essa consciência queimava mais forte que qualquer dor física.
O silêncio a envolvia, pesado, como se o próprio mundo a observasse, testemunhando sua queda. E naquele silêncio, Li Wang entendeu: não era mais possível lutar. Mas, de alguma forma, a vida que passou por ela ainda tinha significado.
Li Wang abriu a boca, os lábios rachados tentando formar uma palavra. A voz não veio de imediato. Era apenas um sopro… um resquício do que já fora coragem.
— Hen…ry… — sussurrou.
O nome saiu trêmulo, como se o próprio ar do mundo recusasse deixá-lo escapar. Por um instante, ela quis viver — quis lutar, voltar, protegê-lo, cumprir o que prometeu.
Mas o corpo não respondeu. A mente, em colapso, alternava entre súplica e rendição.
O medo, o arrependimento e o amor se misturaram até virarem um só som, um soluço sufocado, perdido no vazio.
E então… o silêncio voltou.
Dessa vez, não como um inimigo, mas como um abrigo.

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