Os dois mal acabaram de preparar seus equipamentos, e já estavam ao pé da torre do relógio. A grande edificação era o portão que separava os dois mundos, a evoluída cidade de Alta-Engrenora da temida cidade de Baixa-Engrenora.

    Os ponteiros não deixavam abertura para enganos: dez horas da manhã, em ponto.

    As casas eram abarrotadas umas sobre as outras, a fumaça das fábricas tornava os céus acinzentados e a chuva ácida. O lixo era jogado para todos os lados e revirado para o sustento de poucos. Era uma visão nauseante.

    Mirena fazia uma expressão confusa, em uma mistura de pena com desgosto.

    — Pronta? — disse Dhaha, a trazendo de volta à realidade.

    A mulher pousou a mão na lateral de seu colete de couro, como se para checar que nada faltava. Sua voz hesitou por um instante.

    — Vamos… — Mirena engoliu em seco.

    Desceram o barranco, o chão era de terra batida e barrenta, o que dificultava o caminhar.

    Enquanto se aproximavam, conseguiam sentir os olhares curiosos dos habitantes caírem sobre eles. As pessoas vestiam roupas surradas e seus corpos eram sujos e cheios de machucados e hematomas.

    O primeiro detalhe que passou pela mente da garota foi outro, todos eram muito diferentes uns dos outros. Quase nenhum deles era humano.

    Viram um grupo de crianças brincando de bola. Ao invés de uma pelota de pano, essa era feita de couro e mal costurada. Diante dos olhos dos pequenos, a bola se rompeu em vários pedaços. Eles não choraram, apenas foram para a montanha de lixo atrás de outra. 

    Não muito longe, estava uma das grandes fábricas industriais, era cinzenta e sufocante. As pessoas, cobertas de fuligem e graxa, corriam de um lado ao outro carregando caixas das armas produzidas.

    Do alto das casas, pessoas cobertas em mantos de couro os observavam. Seus olhos eram afiados como os de uma raposa caçando, e a dupla seria a presa.

    — Esse lugar me causa calafrios — murmurou a ardenteriana. Seu braço metálico afagava o esquerdo, numa tentativa de se acalmar.

    — Sim… isso nem parece uma cidade… É só uma grande fábrica — Dhaha devolveu. Não sentia medo, mas o desconforto era inegável. — Será que a gente pode fazer algo por eles?

    A cidade era um lixão, mas os moradores conseguiram se organizar. Havia um amontoado de pedras e metal que chamavam de área residencial, onde as pessoas faziam suas casas e tentavam ter suas vidas.

    Havia um mar de metal e nuvens negras, a área industrial. Lá as pessoas trabalhavam como animais enjaulados, rodeados pelas gaiolas de metal fundido que chamavam de máquina.

    A área comercial era inexistente, apenas uma grande área aberta onde as pessoas gritavam umas com as outras por produtos que achavam jogados nos montes de lixo. Era lá que a dupla estava.

    — Vamos precisar de algumas informações a mais se quisermos concluir isso com excelência — comentou Mirena. Os olhos passaram pelas barracas de venda.

    — Só perguntar pra qualquer um? — Dhaha respondeu, cogitando perguntar algo como “Bom dia, você viu sequestradores com roupas ameaçadoras?”. — Talvez com dinheiro?

    — Talvez, mas vamos tentar outro método primeiro. Não temos tanto dinheiro assim.

    A mulher se aproximou de um vendedor que parecia menos ocupado. Um douradiano com uma bandana de pasteleiro na cabeça.

    — Olha o pasteeeeel!!! — O homem gritou do fundo dos pulmões.

    Mesmo levemente ameaçada, Mirena perguntou:

    — Senhor?

    — Hahaha! A senhora quer um pastel? — Ele reconheceu muito rápido que ela era uma ardenteriana.

    — Na verdade… — A ideia era tentadora, o pastel era de qualidade. — Ahem! Eu preciso perguntar algumas coisas.

    Vixi! Não foi eu não!

    — O que não foi você?

    Num era uma acusação?

    — Não…?

    — Ah bom, então sim.

    A esperança decaia a cada palavra, mas tinha que continuar.

    — Estamos atrás de algumas pessoas, os desaparecidos.

    — Aaaah… A guilda teve aqui esses dias perguntando issae também, mandaro vocês?

    — Mas e aí? O senhor sabe alguma coisa? — falou Dhaha, adentrando a conversa.

    — Iiiih! Eu não quero problema pro meu lado não.

    — São somente algumas perguntas simples. Não se importa com isto, não é? — Mirena assumiu a conversa.

    — Tá… pergunta! — O homem deu o braço a torcer.

    — Notou alguma coisa estranha recentemente?

    — Eu… — O homem parou por alguns segundos, sua fala entalada na garganta. — Olha, dizem as más bocas que ontem de noite, um povo estranho apareceu por aqui. Isso é tudo que eu me lembro.

    — Entendi. E o senhor…

    — Talvez isso refresque sua memória. — Dhaha colocou uma moeda dourada sobre a mesa. — E eu também quero um pastel.

    — Dhaha! — sussurrou Mirena. O homem não falaria assim

    — Nossa! Me lembrei! — Se ele não fosse um grande negociador. — Alguns guardas das fábricas, parece que tavam a mando do chefe.

    Dhaha encarou a garota com o olhar vitorioso de uma criança.

    — E você sabe o que eles queriam?

    Num tenho certeza, num me lembro bem.

    — Droga! — O orgulho de Dhaha cavou sua cova.

    — Mas então, querem saber isso por quê?

    — Não sei, não me lembro bem…

    — Talvez isso refresque sua memória. — Agora foi a vez do vendedor colocar a moeda na mesa.

    — Nossa! Me lembrei.

    Mirena encarava os dois negociando incrédula, toda sua esperança nas pessoas estava derretendo igual seu cérebro.

    — Nós estamos a mando da guilda, um serviço.

    — Aventureiros?

    — Não lembro.

    — Droga!

    — Mas então, sabe quem é o chefe? Ele parece um candidato a ser nosso  suspeito.

    — Não sei, não me lembro bem…

    — Talvez isso refresque sua memória.

    A mesma moeda voltou para a mesa. Mirena já havia desistido de usar alguma lógica para essa conversa.

    — Você é bom em negócios, garoto.

    “Ele é?!”, pensou Mirena, no último fio de sanidade.

    — O líder das fábricas é o tal do Belmorth Rubrae, um granfino que ganhou status bem rápido. — Ele guardou a moeda. — De brinde: parece que ele tava atrás de umas pessoa, muita gente da Alta-Engrenora veio parar aqui de noite.

    — Entendo… muito obrigado senhor pasteleiro.

    — Nada! Negócios são negócios! Aliás, qual seu nome?

    — Não me lembro…

    — Talvez isso refresque sua memória.

    — Nossa! Me lembrei!

    A moeda voltou para o dono original. Era surpreendente que Dhaha fosse capaz de passar a perna em alguém.

    — É Dhaha, Dhaha Sulfazyan, e eu quero um pastel. — Ele colocou a mesma moeda no balcão.

    Ao fim da conversa, Dhaha conseguiu as informações, uma boa conversa, é um pastel. Mirena estava repensando se ela era realmente o cérebro do grupo.

    — Que foi, quer um pedaço? — Dhaha aproximou o pastel da garota, que, gentilmente, o afastou com a mão.

    — Eu acho que não vou querer ver um pastel por um longo tempo… agradecida.

    Os dois seguiram rumo, dessa vez em direção às fábricas da rua sessenta e nove. Com as informações que tinham, já possuíam um grande suspeito em mente: Belmorth Rubrae.


    Chegaram até a área residencial improvisada, não estavam longe do objetivo. Mirena caminhou a passos lentos, seus olhos não paravam em um ponto fixo.

    A sensação dos olhares alheios se tornou cada vez maior, como se estivessem se aproximando. E estavam.

    Os encapuzados acima das casas agora estavam parados bloqueando becos e caminhos alternativos, fechavam as rotas de fuga dos dois.

    — Dhaha, tem algo estranho… — disse a mulher. 

    Antes que o garoto pudesse reagir, uma voz ecoou do topo de um barraco.

    Cês não são daqui, perderam algo ou tão perdidos?

    Dos céus, um dos encapuzados saltou até os dois. Sua queda ergueu a poeira, como o impacto de uma arma.

    O manto de couro cobria um corpo pequeno, mas robusto, com a pele preta exposta pelo rosto jovial e os pés descalços. Vestia uma camisa curta, preta e colada ao peito, também de couro, e uma calça marrom escura surrada e suja.

    O olhar dos três se encontrou por um instante, mas foi o suficiente para fazer os dois levantarem suas guardas. Os olhos daquele garoto eram pretos como carvão, mas afiados com os de um predador.

    — Nós estamos de passagem, apenas isso — respondeu Dhaha, seco, afiado e comendo o resto do pastel com uma única mordida.

    O encapuzado soltou um riso alto, havia segurado a muito tempo, enquanto tapava a boca com a mão.

    — Não, cara… Acho que não entendeu como as coisas funcionam por aqui… — Erguendo uma parte do manto, o encapuzado mostrou uma espada de guarda decorada com desenhos de estrelas. — Não existe “só de passagem” nessas bandas. Cês só precisam colaborar, eu quero as suas armas.

    Mirena e Dhaha entraram em posição de combate assim que viram outros encapuzados saindo dos becos e vielas. Uma emboscada.

    — Entreguem as armas, não quero seus pertences, dessa vez — anunciou ele.

    — Quantos você contou? — Dhaha sacou a espada.

    — Sete: dois gelarianos à esquerda, três ardenterianos atrás, um douradiano à frente e outro à direita. — Mirena ergueu o braço mecânico, sua atual arma.

    — Eles não parecem grande coisa, a gente acaba rápido. 

    — Somente você que está dizendo…

    Com o sacar da arma do encapuzado, os outros saltaram nos dois. Dhaha não perdeu tempo, afastou o primeiro com um chute e um golpe com a guarda da arma, aproveitando para imobilizar outro ao cortar a superfície da perna.

    — Opa! — Um dos homens tentou apunhalar Mirena com uma adaga, mas foi recebido pelo braço metálico como proteção e um chute nos países baixos. Ela aproveitou a surpresa de outro e o golpeou com um gancho de direita no queixo.

    — [Metalóxis] — Dhaha levou os outros dois com uma mudança de arma, da espada para um martelo, somada com um golpe giratório. 

    Mirena golpeou o que Dhaha tinha afastado, afundando seu rosto no chão. Os outros assaltantes fugiram enquanto corriam entre os becos e vielas.

    — Que?! — Vendo a desvantagem, o encapuzado se cobriu em carma e saltou sobre Dhaha.

    O choque do golpe soprou pelos arredores, seguido do impacto do próximo. O garoto encapuzado podia parecer fora de forma, mas era um esgrimista razoável.

    “Um usuário de carma?”, pensou Dhaha, surpreso com a mudança repentina.

    Portava um taco metálico de beisebol, uma arma rápida e contundente. Ele o segurava com apenas uma mão e o balançava precisamente, como se fizesse a arma de Dhaha de bola.

    A troca de golpes começou, mas Dhaha estava em clara vantagem. Os golpes do encapuzado eram rápidos e fortes, mas seu controle de carma não era dos melhores.

    — Você tem muitas aberturas. — Dhaha corrigiu o esgrimista.

    — Não ferra comigo! — falou ele, com a arma bloqueada pelo douradiano.

    Dhaha decidiu que estava na hora de acabar aquilo e também liberou parte de seu carma. Lançou uma sequência de golpes que pressionava o ar, e arremessou o garoto contra um monte de escombros.

    Para a maioria das pessoas, essa sequência causaria dores até nas futuras gerações, mas ele não demorou a ficar de pé de novo.

    — Não mesmo! — Sacou o bastão com as duas mãos e a ergueu acima da cabeça. Sua arma brilhou com as chamas albinas.

    “O controle de carma dele melhorou…”, pensou Dhaha, enquanto segurava o martelo com as duas mãos ao invés de uma.

    As armas se chocaram, causando rachaduras no chão. O encapuzado recuou alguns passos para ter visão do inimigo, mas seu corpo já pesava duas vezes mais.

    Caiu sentado ao chão com o bastão aos pés. Não tinha mais forças para se levantar.

    — Quem são vocês? — gritou o caído.

    — Acha mesmo que está na posição de fazer perguntas? — Mirena caminhou até o lado de Dhaha, ambos de frente para o encapuzado.

    — Tsc! — O homem deu uma cuspida para o lado. — Acham que vão conseguir alguma coisa de mim? Hahaha!

    Dhaha ergueu o encapuzado pela gola até alguns segundos acima do chão, ele não era muito alto, devia estar nos um metro e sessenta e dois. 

    O garoto tentou se libertar, mas sua força não era suficiente nem para erguer sua arma.

    Seu manto caiu para trás do corpo, revelando um garotinho com um par de orelhas longas e pontudas. 

    “Uma criança?!”. Os olhos de Dhaha se arregalaram, mas não hesitou em segurá-lo.

    Seus cabelos eram loiros, curtos e espetados, como se tivesse levado um choque, e seu rosto era jovem até mesmo para um ardenteriano. Devia estar na casa dos dezesseis anos.

    — É meio raro encontrar usuários de carma em um lugar como este, ainda mais alguém tão novo quanto você. — Mirena apoiou o queixo na mão com um olhar pragmático.

    — Melhor levar pra guilda? — perguntou Dhaha, balançando o jovem como um saco de batatas 

    — Talvez… ele mesmo disse que não iria nos responder, o que é uma pena. Talvez a senhorita Thalwara consiga fazer ele falar… — disse Mirena, com um sorriso levemente sádico no rosto.

    — Espera, Thalwara? Aquela Thalwara?! — O encapuzado parou de se debater e paralisou de medo.

    — Oh! Então você a conhece? Então ela vai adorar ver um velho amigo…

    — O caramba que vai! Ela é a Raposa Relâmpago, ela vai acabar comigo!

    — Acabar com você? Que exagero, meu jovem. Ela vai conversar civilizadamente com você, e fazê-lo fa… digo, convencê-lo a cooperar.

    O moleque sentiu o medo correr nas veias, todos em Baixa-Engrenora conheciam a Raposa Relâmpago e o poder que ela representava.

    — Parou… parou, parou! Vamo conversar, vocês são gente boa, não são?

    O sorriso de Mirena escancarou, como uma criança que conseguiu o doce que queria.

    — Que bom que chegamos a um acordo. Pode abaixar ele, Dhaha — terminou ela, com a face de uma falsa inocência e o sadismo que só alguém que foi enganada por um vendedor de pastéis teria. 

    E assim Dhaha o fez, mas não largou a blusa do homem.

    — Qual o seu nome? — O douradiano encarou o garoto bem fundo nos olhos, para garantir que ele não mentisse.

    — Daten… Stajäger… — respondeu ele, agora completamente coagido.

    — Parabéns, você lutou bem. Vai ser um grande guerreiro no futuro.

    Daten perdeu o ar, surpreso pelo elogio repentino, mas a voz de Mirena conseguiu o trazer para a realidade.

    — Muito bem, Daten… — Ela bateu palmas enquanto encarava o garoto. — Vamos começar nossa pequena conversa?

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota