Capítulo 34 - Seu olhar.
Um homem sentado ao balcão pediu hidromel de Bernividt. A dois bancos dele, um jovem com chapéu de pena cantava uma jovem risonha com palavras sedutoras. Na mesa mais próxima a eles, um grupo de guardas da cidade reclamava de outros companheiros de serviço, batendo os copos na mesa continuamente a cada queixa. E do lado do salão oposto a eles, uma roda de seis caçadores jaziam em uma mesa junto à parede, planejando sua próxima caçada dentro do abatedouro.E neles Jonas se concentrava, ignorando o ruído dos demais.
Sempre descia para o bar entre os fins das tardes e inícios das noites, quando os grupos de caça costumavam retornar a guilda e reunir-se na taverna, comentando entre si os detalhes de cada aventura.
Aquele era o terceiro que ele espiava. Ouvira deles várias conversas que já tinha escutado nas noites anteriores.
Harpias voavam sobre as margens do rio da erva doce, levando ovelhas e crianças. Ladrões infestando o caminho sul. Dentes de Adaga avistados nos assentamentos do leste. Boatos repetidos de cem maneiras diferentes.
Aquela conversa, no entanto, era sobre algo que ainda ocorreria. Ainda que pouca importância tivesse, Jonas via importância em ouvi-la. Sentia que era a única coisa que só ele poderia fazer.
— Fernar, tu vai até a entrada da toca e atrai a mãe Javali pra fora. Depois eu e o Sorsk vamos entrar e roubar os filhotes dela — rosnou uma voz rouca. Derwin e Orsley vigiam caso ela volte. Entenderam?
— E porquê eu tenho que ir? — Outra voz, abafada e nasal, perguntou.
— Porquê você é um trapaceiro filho de uma puta, que me deve três cobres pela noite retrasada — respondeu a primeira.
Após semanas praticando junto àquela cacofonia, Jonas conseguia diferenciar e separar as vozes à sua volta. Ainda que a o custo de sua cabeça latejar de dor. Para sua sorte, nenhum músico estava presente. Antes desejaria ouvir música para preencher o silêncio monótono que pudesse surgir a qualquer momento, mas, naquele momento, com aqueles ouvidos, cada nota era uma martelada em seus tímpanos.
Uma batida soou próxima, tirando sua concentração da conversa distante.
Jonas olhou para o copo posto na mesa, então para a mão que ainda o segurava, subindo sua vista pelo braço até o rosto da atendente. Reconheceu-a como sendo a mesma garota de rosto azedo que ficara até tarde junto a eles na noite em que doparam o conde rubro e roubaram suas roupas.
Sua expressão em nada tinha melhorado
— Sua bebida — anunciou ela, e Jonas agradeceu, imaginando qual seria o motivo de seu desagrado daquela vez.
Tomou um gole da cerveja negra e voltou a se concentrar.
Demorou para voltar a se concentrar nas vozes dos caçadores em meio às dos demais, e quando o fez, o assunto já havia mudado para uma conversa sobre a irmã de um deles, que aparentemente havia sido dividida entre outros dois membros do grupo.
Jonas deixou de ouvir, concentrando-se em qualquer outro som.
Risadas.
Risadas, palmas e copos batendo nas mesas. Sons comuns em qualquer bar, fosse naquele mundo, fosse no seu. E em ambos os mundos, Jonas detestava bares. Não pelo som alto que incomodava seus ouvidos, nem pelo cheiro de bebida, ou dos bêbados espalhados por todos os lados, mas por um motivo bem simples.
Bares lembravam-no de sua mãe.
Uma mão tocou seu ombro esquerdo, e Erik sentou-se na cadeira livre ao seu lado. Ele alongou o pescoço para os lados, parecia mais limpo e relaxado do que de costume.
— Você ainda estava no banho? — perguntou Jonas.
— Sim, você devia ir lá mais vezes.
— Pensei que tínhamos que economizar nossa carteira — retrucou Jonas, bebericando a cerveja.
— Temos, por isso não vou beber hoje — comentou Erik, o observando.
Jonas botou o copo na mesa.
— Então porquê não foi direto para cima?
Sem mexer a cabeça, Erik olhou para os lados, e se inclinou sobre Jonas, sussurrando.
— Queria ouvir o que você escutou aqui embaixo logo.
Jonas franziu as sobrancelhas.
— Sabe que eu ia falar com vocês quando subisse, então pra que a pressa?
Erik suspirou.
— Porquê eu queria planejar os próximos dias sem ninguém atrapalhando.
— Como assim?
— Ah, vamo lá. Sempre que a gente tenta bolar algum plano, a senhora lá se intromete e tenta nos proibir. E o Leandro fica do lado dela, e às vezes você também — Erik apontou para Jonas. — As coisas seriam bem mais fáceis se ela só deixasse a gente fazer as coisas do nosso jeito.
— “Nosso jeito”, é? — troçou Jonas. Conhecia bem o amigo para saber o que ele realmente queria dizer.
Erik rolou os olhos.
— Você sabe o que quero dizer.
— Sim, sei, mas não sei se curto isso — objetou Jonas, coçando a cabeça.
Erik se inclinou, novamente.
— Não se importou com isso quando bebemos com o conde — disse, baixando o tom de voz.
— Eu tava bêbado cara, nem lembro direito daquela noite.
— Mas usou as roupas dele depois, né?
Jonas suspirou. Inclinou o corpo para trás, cruzando os braços, e pensou, até encontrar o que falar.
— O problema é que, não acho que o “nosso jeito” seja o melhor em todos os casos.
— Então prefere voltar a caçar ratos? — perguntou Erik, levantando a mão em um gesto demonstrativo quando Jonas não respondeu. — Vê, é disso que eu estou falando.
Jonas sentiu um gosto amargo na boca.
— Então vai querer continuar com a ideia de fazer os fanzos pegarem as flores? — questionou em voz baixa.
Erik negou com a cabeça de forma desconsolável.
— Eu até queria, mas não vai dar certo. Primeiro porquê os bichos trazem muito poucas flores por vez e podem ser pegos a qualquer momento por algum predador. Segundo, porque a dona Graça não parece muito à vontade pra continuar a mandar os bichos. E tudo nessa ideia depende dela, né?
Jonas sentiu-se aliviado. Não gostava da ideia de insistir nesse plano. Não gostava de ver a pobre senhora sofrer.
— Então o que vamos fazer? — perguntou.
Erik sorriu com os lábios, enfiou uma mão em seus bolsos e tirou deles um papel. Nele havia um desenho de um longo e estreito cone cercado por um sulco rodopiante que ia da parte estreita a larga, como uma broca, como também rabiscos que as pessoas daquele mundo insistiam em chamar de letras.
Jonas olhou para Erik, sem entender.
— Tá, o que é isso?
— “Isso” é o que faremos — Erik cutucou o papel com o dedo indicador, exibindo seu sorriso desagradável.
— Que seria? — Jonas insistiu em ouvir uma explicação.
— Vamos caçar coelhos unicórnios. Dez deles para ser exato — explicou Erik, finalmente.
— Como assim, como é que vamos fazer isso? — Jonas indagou novamente.
— Vamos usar aquele coelho que eu dei para a Graça. Ele deve saber onde os outros estão.
Jonas pôs uma mão sobre a boca e então coçou o queixo repleto de fiapos de barba.
— E como é que ele vai nos levar até lá? — insistiu em perguntar
— Isso ainda vou ver. Mas, se dona Graça pode mandar ele para o campo de tulípas, pode mandar ele ir atrás da sua própria espécie, né? — Erik o olhou nos olhos procurando uma confirmação, mas Jonas deu de ombros, fazendo o amigo dobrar os beiços.
— Bom, vamos pelo menos testar — decidiu Erik.
Jonas pegou a folha, olhando para o desenho e as inscrições.
— Como sabe que aqui diz “caçar dez coelhos”? — perguntou levantando uma sobrancelha.
— Porquê eu perguntei à mulher que fica na recepção. Pedi alguma missão do nível mais baixo e ela me deu três para escolher. Peguei essa — explicou Erik.
— E qual era as outras duas? — questionou Jonas, curioso.
Erik deu de ombros.
— Limpar um telhado e resgatar uma cabra de um vilarejo próximo — Acenou com a cabeça para a folha de papel. — Ao menos esse paga mais.
Jonas inspirou e expirou profundamente.
— Tá certo, então. Vamo nessa — declarou, arrancando um sorriso de satisfação de Erik, que estendeu a mão para pedir uma bebida.
— Pensei que não fosse beber — observou Jonas.
— Eu também pensei.
Jonas também pediu mais uma. Ouvia o seu derredor. Uma piada foi contada, risos foram soltos e uma briga iniciada. Os dois beberam, ignorando a balbúrdia a sua volta
— E aí, como tá aquilo? — perguntou repentinamente Erik.
— Aquilo o que? — Interpôs Jonas, sem entender.
— Sua decepção amorosa, é claro.
Jonas suspirou. Por que falar disso?
— Nada demais, não penso mais nela — respondeu, bebendo um gole de seu copo.
— Faz bem. Ela não era tão bonita mesmo — comentou Erik, levando seu copo à boca e depois colocando-o de volta na mesa. — Nem sei o que viu nela, sério.O rosto dela era gorducho demais. A voz era dengosa, e o gênio era a pior coisa. Parecia que não se importava com nada nem ninguém.
— Ela se importava — interrompeu Jonas.
— Que?
— Ela se importava com os outros, só não sabia demonstrar — Esvaziou o copo. — Além do mais, para de falar assim dela, vocês mal se falavam.
Erik o encarou por um breve momento.
— Então ainda gosta dela, né?
— Não, por quê acha isso? Só porquê eu tô defendendo ela?
Jonas ergueu uma sobrancelha ao ver o sorriso desagradável surgindo na boca do amigo.
— Não, não é por isso. É porque tá olhando pra mim da mesma forma que olhava para os caras que falavam da tua mãe quando nós éramos crianças.
Sua garganta se apertou em um bolo que o impedia de falar ou respirar. Os olhos se estreitaram e sua visão marejou por um momento. Jonas se ergueu da mesa, e quando percebeu já tinha cruzado metade do salão, parando apenas ao bater de cara contra as costas de um homem enorme, que usava uma armadura esmaltada de placas.
Ele se virou olhando para Jonas, que esfregava o nariz machucado devido ao impacto.
— Porra, olha pra onde anda, garoto. Quase me fez derramar minha cerveja — rosnou com o rosto rubro, segurando uma caneca do tamanho de sua cabeça.
Jonas olhou para ele, reconhecendo seu bruto rosto familiar.
— Que foi? Perdeu algo na minha cara? — O homem deu um passo na direção de Jonas, mas foi contido por um homem ao seu lado, de membros finos e longos, que o segurou pelo braço.
— Calma Dork’t, não comece outra briga. Já tive que pagar por aquele monte de poções que você quebrou essa manhã — reclamou o homem magricela, que Jonas também conhecia, para eu desgosto.
— Não é minha culpa que o vendedor tinha posto as poções do lado de fora — retorquiu o grandalhão.
— Do lado de fora? Você jogou o cara para dentro da loja — gritou o homem, começando a gemer de forma lamentosa logo depois. — Ah, meus preciosos trocados. Eu estava economizando para comprar um grande alazão negro, sabia?
— E pra quê você quer um cavalo?
— Pra dar coices em você, é para isso.
Jonas ficou parado olhando para àquilo, até perceber que os dois já não prestavam atenção nele. Virou-se, desejando deixá-los, porém deu de cara com cabelos ruivos que envolviam outro rosto que também se lembrava.
A garota vestia uma roupa coberta por camadas de pele e couro acolchoado, sendo coberta do pescoço até a metade das canelas. Ela parou por meio segundo o encarando.
— Eu acho que me lembro de você, não? — disse.
— Não, acho que — Jonas foi interrompido quando a garota saltou com a mão estendida para o alto.
— Leovard, aqui! — gritou, alto demais pros ouvidos de Jonas.
Jonas virou-se, vendo em meio às mesas o homem que estragara o esquema das tulipas. Um gosto acre encheu sua boca, e ele decidiu sair andando, afastando-se do grupo. Poderia ir para cima, em direção ao quarto. Poderia voltar à mesa onde tinha deixado Erik. Poderia simplesmente rodar pelo bar em meio ao virar das bebidas. Mas decidiu passar pela porta e adentrar a noite.
Caminhou, evitando ladrões, animais, ou qualquer viva alma que escutasse antes de virar cada esquina. Andou e andou, passando várias vezes pelas mesmas ruas, vendo os mesmos prédios e ouvindo os mesmos sons.
Não entendia porquê, apenas não queria parar, até que parou.
Sentou-se na calçada de um beco escuro, próximo ao que se chamava de cruzamento dos grãos. Permaneceu quieto, pensando sem ter controle do que pensava.
Uma risada distante ecoou. Uma risada de mulher. Era histérica, animada demais, e era tarde demais.
Jonas a ouviu. Então uma única palavra seca se formou em sua boca.
— Putas.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.