Capítulo 20 | Eu Menti (1)
A água ao redor dos portões de Atlântida estava turva, cheia de detritos flutuantes e do icor escuro das criaturas mortas. Corpos de Tritões, tanto defensores quanto renegados, jaziam imóveis no leito marinho ou flutuavam lentamente nas correntes, suas armaduras quebradas, suas armas perdidas. Era impossível, na penumbra e na carnificina, distinguir claramente aliados de inimigos.
A retirada abrupta das forças de Proteu deixou um silêncio pesado, quebrado apenas pelo gorgolejo distante dos feridos. O alívio inicial pela sobrevivência deu lugar a uma sensação sombria.
Tritão observava a cena, seu rosto normalmente impassível agora marcado por uma profunda tristeza. Ele via os corpos de seu povo, irmãos, primos, guerreiros que serviram a seu pai, agora mortos em uma guerra fratricida. Suspirou.
Magno flutuou por um momento, recuperando o fôlego dentro da máscara, as adagas ainda firmes em suas mãos. Ele viu General Kymos, imponente entre os sobreviventes, reorganizando as tropas restantes.
A lembrança da lança de osso atravessando o peito do Tritão-Tubarão, o olhar estranho no rosto do general… Ele fez uma nota mental de agradecer ao guerreiro mais tarde, quando a situação estivesse menos caótica.
Foi então que o som veio. Não da escuridão exterior, mas de dentro da própria Atlântida. Um pulso profundo e ressonante vibrou através da água, seguido por outro, mais rápido, mais urgente. O alarme interno.
— O alarme do palácio! — O grito veio de um dos guardas próximos a Tritão.
— Retornem! Todos para o palácio! AGORA! — Rugira o príncipe com seu tridente erguido.
Montarias foram incitadas, guerreiros nadaram com urgência renovada. Hermes e Magno trocaram um olhar que atravessou o campo de batalha. Um olhar que só eles sabiam o significado.
Os corredores de obsidiana, antes silenciosos e imponentes, agora ecoavam com o som apressado de guardas correndo para seus postos e o murmúrio assustado de servos. A notícia da infiltração havia se espalhado como veneno na água.
Chegaram ao grande salão de entrada, onde outros comandantes se reuniam, tentando obter ordens de um Tritão visivelmente abalado.
Enquanto o príncipe tentava impor alguma ordem ao caos, Magno avistou o General Kymos perto de uma das colunatas, a figura maciça parada de braços cruzados tinha a estabilidade de uma rocha frente a um tsunami. Mesmo que não parecesse convidativo, o gatuno não suportava a ingratidão e isso o fez se aproximar.
— General — começou num tom encabulado, mas respeitoso. — Eu gostaria apenas… erm- Lá fora, você…
Kymos se virou. A velocidade foi surpreendente para seu tamanho. Sua mão maciça agarrou a frente da malha metálica de Magno, erguendo o gatuno no ar como se não pesasse nada. O focinho de tubarão do general estava a centímetros do dele, os olhos negros nas laterais de seu rosto de algum modo fixos nos de Magno. Furioso, ele bufou.

— Não ouse me agradecer por isso! — Kymos rosnou com hálito frio.
O aperto em sua armadura era esmagador. Magno arregalou os olhos, mas não via apenas raiva na atitude do general. Então, com a mesma brusquidão, Kymos o soltou, empurrando-o para trás. Magno cambaleou, recuperando o equilíbrio, o coração martelando contra as costelas pelo susto. Sem outra palavra, o general se virou e marchou para longe, desaparecendo em um corredor lateral.
Magno ficou parado, perplexo e irritado. Que diabos havia sido aquilo? Ele esfregou o peito onde Kymos o havia agarrado.
— Não leve para o lado pessoal, ladrão — disse o príncipe, a voz cansada. — Kymos… ele carrega seus próprios fardos.
— Fardos? Ele quase arrancou minha cabeça! — Magno retrucou, ainda indignado.
Tritão hesitou, seu olhar varrendo o salão caótico antes de voltar para Magno.
— O Tritão-Tubarão que ele matou… — A voz de Tritão baixou. — Era Theronax. Seu irmão mais novo. Ele escolheu seguir Proteu quando a cisão começou. Kymos nunca o perdoou. E agora… ele mesmo o derrubou.
A revelação atingiu Magno. Ele olhou na direção para onde Kymos havia ido, a imagem do general olhando para o corpo caído com aquela expressão indecifrável ganhando um novo e terrível significado.
De pronto, seu olhar vagou pela sala. Viu tantos outros soldados tomados por um semblante melancólico, tal como o do general. Quantos outros também assim se sentiam?
A guerra, certamente, era um evento cruel.
Foram interrompidos pela chegada apressada de Lorde Theron. O nobre Tritão de pele azulada parecia genuinamente em pânico, seus movimentos antes elegantes agora eram bruscos e descoordenados.
— Meu príncipe! Amigos! Graças aos deuses que retornaram! — Theron ofegou, a mão no peito como se tentasse acalmar o coração. — Intrusos… eles passaram pelas defesas do Portão Oeste! Uma falha inexplicável na patrulha de Neria… Estão se movendo rápido!
— Para onde? — Tritão exigiu, a urgência tomando conta de sua voz.
— Os sensores indicam… — Theron hesitou, como se a palavra fosse dolorosa demais para pronunciar. — Eles estão indo direto para o Santuário do Coração de Caríbide!
Um calafrio percorreu o salão, as vozes que restavam aos murmúrios instantaneamente silenciaram.
— E tem mais… — Theron continuou, a voz embargada de preocupação. — Lady Neria… ela desapareceu. Estava supervisionando as defesas daquele setor quando o alarme soou. Não há sinal dela. Temo o pior… temo que a tenham capturado.
A notícia do desaparecimento de Neria adicionou uma camada de caos e urgência à situação. Tritão cerrou os punhos, a angústia visível em seu rosto.
Hermes e Magno trocaram um olhar rápido e sombrio.
— Reúnam a guarda de elite! — ele ordenou aos oficiais próximos. — Vamos interceptá-los nos corredores inferiores! Hermes, Magno, comigo!
O som surdo de explosões indicava que a batalha principal ainda grassava nos portões ocidentais.
Eles avançavam pelos corredores sinuosos do palácio. O som distinto de seus passos, o baque pesado das passadas de Tritão, o quase silêncio dos impulsos de Magno, e o arrastar cansado das sandálias de Hermes, ecoava nas paredes de obsidiana negra e úmida.
Tritão ia à frente, o tridente real firme em sua mão, seus tentáculos faciais contraídos em uma linha dura. Theron corria logo atrás, ofegante, seus movimentos talvez um pouco exagerados, os olhos arregalados enquanto olhava de um lado para o outro, como se esperasse um ataque a qualquer momento. Magno mantinha-se baixo, usando curtos impulsos das sandálias para deslizar pelas curvas, as adagas de obsidiana em punho, o olhar varrendo cada alcova, cada sombra.
Hermes vinha por último, a exaustão queria cortar as ligas de seus calcanhares.
Ele viu a bifurcação à frente: o corredor principal, largo e direto, que levava ao Santuário do Coração. O caminho mais óbvio. O caminho mais perigoso. Tinha certeza de que os infiltrados estariam ali, provavelmente em uma emboscada bem posicionada. Não havia tempo para um confronto prolongado no estado em que se encontrava. As chances eram que ao final o inimigo já tivesse alcançado o coração da cúpula.
— Eu vou na frente! — Hermes gritou com a voz rouca, parando abruptamente.
Tritão e os outros se viraram, surpresos.
Antes que pudessem responder, ele fechou os olhos. Buscou o frio, a escuridão faminta dentro da moeda. Ouviu os mesmos gritos que há pouco ecoavam no campo de batalha, sentiu o peso daquelas almas que ceifou nas águas. E, por fim, a dor flamejante, as veias tornando-se fios negros sob a pele, poder correndo por seu corpo. Seus olhos se abriram, a íris submersa em um brilho verde-escuro e pulsante.
Pareceu um disparo de canhão cortando o ar. Uma tempestade de vento balançou a todos os presentes e, num instante, um cometa de sombras esverdeadas riscou o corredor principal, desaparecendo na escuridão em um piscar de olhos.
Tritão, Magno e Theron ficaram paralisados por um instante, o assombro estampado em seus rostos.
— Pelo Abismo… — Tritão engasgou.
Sem tempo a perder, seguiram a passos largos e cenhos crivados.
Quando chegaram à entrada do corredor principal que levava ao Santuário, a cena os paralisou. O esquadrão de elite de Proteu jazia caído no chão. Mortos. Não havia sinais de luta. Apenas o resultado final.
No meio dos corpos, Hermes estava parado, apoiado pesadamente em seu arpão negro, o corpo tremendo visivelmente. Uma aura tênue, verde-escura e fumegante, ainda emanava dele. Fios finos dessa mesma energia pareciam fluir lentamente dos corpos dos Tritões caídos, pareciam fluir diretamente para seu torso. A luz verde em seus olhos, fraca, em instantes sumiu.

— Rapaz… — Magno murmurou — Ainda bem que ele tá do nosso lado, né não?
O tom brincalhão do ladrão não conseguia confortar o príncipe.
— Acabou? — Tritão perguntou.
Tinha nos olhos um assombro cauteloso, misturado a um novo nível de respeito, ou talvez medo, pelo seu aliado da superfície.
Hermes balançou a cabeça, a respiração ofegante, a aura escura se dissipando lentamente.
— Ainda não acabou — ele ofegou, a voz rouca. Ele olhou para o corredor escuro que levava ao Santuário. — Sinto que alguém… pode ter passado. Precisamos ir ao Coração. Agora. Mas… — Ele fez uma pausa, a dor evidente em seu rosto enquanto se apoiava mais no arpão. — Eu não posso mais usar a velocidade. Estou esgotado.
Ignorando os corpos retorcidos dos infiltrados no chão, o grupo retomou a corrida pelo corredor agora silencioso.

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