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    Era… estranho.

    A luz alta da manhã atravessava a janela, iluminando altamente o teto a qual eu encarava. A manhã já estava bem avançada, e, enquanto isso, eu ainda estava preso na cama. Apenas… olhando para o teto.

    Não era preguiça, ou assim. Era só… que eu não sabia como me sentir depois daquilo.

    A minha mente girava sem parar. Girava com a volta dele.

    As lembranças do dia anterior me atingiram com força. A porta se abrindo, o frio me envolvendo, a sensação que senti ao o ver. A voz dele.

    “Voltei.”

    Depois de tanto tempo, ele realmente só tinha ido passar o natal com a gente? Não havia realmente outro motivo?

    Era difícil de acreditar, difícil de confiar. Especialmente depois de tudo que tinha acontecido meses atrás.

    Deslizei a mão pelo rosto, soltando um suspiro cansado. Meu corpo parecia mais pesado do que deveria, como se dormir não tivesse ajudado em nada. Me sentei na borda da cama lentamente, os pés tocando o chão frio do quarto.

    — Ah…

    Arrastei o corpo até o banheiro. Escovei os dentes, lavei o rosto. E depois só fiquei ali, parado, encarando meu reflexo. Tentando entender o que aquela expressão dizia. Mas nem meu rosto parecia saber.

    Era tudo tão irreal. Fora do lugar.

    Desci até a cozinha, ainda meio tonto, e acabei me deparando com uma cena um tanto… antiga e nova ao mesmo tempo.

    Minha mãe, servia o café e colocava outras coisas na mesa, com aquela calma de sempre. Hana, comia animada, balançando as pernas ao ar, falando de algo.

    E ele… comia, sentado à mesa, como se fosse algo normal.

    Como se nunca tivesse ido embora.

    — Bom dia, mano! — Hana disse, com um sorriso grande e sujo de farinha do pão.

    — Bom dia — meu pai completou, com um aceno de cabeça leve.

    — …Bom dia — respondi, meio automático, enquanto puxava uma cadeira da mesa.

    Minha mãe colocou uma xícara de café na minha frente, com um sorriso gentil, e logo todos estávamos comendo. E eu comi, ou melhor, tentei.

    Comentários casuais surgiam com ela e meu pai. Coisas triviais como a lista de compras, sobre o clima frio da manhã e sobre as promoções de final de ano. Hana também conversava, empolgada sobre as férias, dizendo que mal podia esperar pelo Natal e pelas luzes coloridas.

    Enquanto isso, eu só permanecia calado. 

    Apenas… existindo, tomando o café. Tentando entender aquela cena.

    Era como se algo não estivesse no seu devido lugar. Mesmo que tudo parecesse normal.

    Assim que dei o último gole do café, agradeci com um murmúrio baixo e comecei a subir as escadas. Foi quando escutei a voz de minha mãe ecoando pela casa.

    — Ah, precisamos fazer as compras hoje.

    — Entendido, vou ir lá — meu pai respondeu rapidamente.

    — Eu também quero ir! — exclamou Hana, animada.

    Minha mãe suspirou.

    — Nem pense nisso. Você ainda não arrumou sua cama… — disse, com aquela firmeza de sempre.

    Hana resmungou, cruzando os braços, e então veio uma pergunta logo quando estava prestes a entrar no meu quarto.

    — Shin?

    Me virei devagar, olhando para ela.

    — Pode ir com seu pai para ajudar nas compras…?

    Por um segundo, fiquei sem resposta.

    “Por quê…”

    Claro, era só ir num mercado. Fazer compras. 

    Mas… logo com ele?

    Engoli em seco, hesitando por dentro, e soltei um leve suspiro.

    No fundo, eu sabia que não podia evitá-lo para sempre.

    — Tudo bem.

    Minha mãe sorriu de uma forma calorosa, quase como se aquele sorriso fosse um “Obrigada”.

    Subi de volta ao quarto. Abri o guarda-roupa devagar, peguei um casaco mais grosso e o vesti, enquanto as lembranças voltavam sem aviso.

    Tinha sido naquela vez… ficamos a sós, conversamos, e ele soltou aquilo. 

    A ideia de se mudar.

    Aquela conversa ficou marcada em mim.

    Eu fiquei nervoso, claro. Meu coração estava levemente acelerado só com a ideia de ficar a sós com ele. Ainda mais na possibilidade de ele soltar outra bomba como aquela.

    Suspirei e desci, fechando o zíper do casaco e me encontrando com ele na porta.

    — Vamos? — ele perguntou, pegando a chave de casa.

    — Vamos…


    Começamos a caminhar pelas calçadas frias do bairro, junto do céu tomado por nuvens claras e um vento gélido que soprava contra nossos rostos.

    A maior parte do caminho foi só… silêncio.

    Um silêncio meio desconfortável, mas não hostil ou assim. Ele parecia tranquilo, com as mãos nos bolsos, olhando pra frente. E eu, com os olhos pregados no chão, tentando controlar meus pensamentos.

    Continuamos assim por um bom tempo, até que o vento soprou mais forte. E foi nesse instante que ele ergueu o olhar para o céu.

    Olhei de canto para ele, e foi aí que ele quebrou o silêncio.

    Por aquele comentário.

    — Shin.

    — Hm?

    — Desculpa.

    “Hã!?”

    Eu… congelei.

    “Desculpa?”

    Por qual motivo ele estaria pedindo desculpas? E por que assim tão do nada?

    O encarei de lado, confuso. Ele não me olhava, parecia concentrado em algum ponto distante, com um sorriso leve e… triste ao mesmo tempo.

    — Desculpa.

    — Hã!? E-eu ouvi da primeira vez! E por que isso do nada? — perguntei, confuso e tropeçando nas próprias palavras.

    — É só que… decidimos nos mudar sem mesmo perguntar como você se sentia sobre isso — continuou, olhando para o horizonte, com um tom baixo.

    Seu tom era calmo, mas havia algo mais ali. Algo como… arrependimento genuíno.

    Levou alguns segundos para eu entender sobre o que ele estava falando, mas logo tudo fez sentido. A mudança. Aquela conversa.

    Eu… não sabia o que dizer.

    — Não foi certo fazer isso com você — continuou. — Achamos que estivéssemos fazendo o melhor para vocês dois, mas… se eu estivesse no seu lugar, também não iria querer aceitar aquilo.

    Eu só… baixei o olhar. Não sabia como me sentir, ou… o que falar. Ver aquela honestidade dele era meio desconcertante.

    — A verdade é que, você tem muitas coisas aqui, não é? — ele disse, virando levemente o rosto dele na minha direção. — Coisas que não gostaria de perder.

    — …..

    Fiquei quieto por um segundo. Por dentro, eu já sabia a resposta. 

    Sim. Eu tinha.

    E muitas.

    Logo os meus pensamentos foram inundados de tudo que, mesmo sem perceber, era precioso para mim. 

    Amizades, momentos, memórias… pedaços de mim mesmo.

    Tudo que… eu realmente não gostaria de perder.

    Seiji. Rintarou.

    Kaori. Mai. Taro. Takumi. O Clube de Literatura.

    Todos os amigos de classe.

    Arata. Meu trabalho de meio-período na biblioteca.

    Hajime Shihei, o meu editor.

    E, em especial, ela.

    Yuki.

    Eram muitas coisas, e provavelmente tinha muito mais do que eu havia notado. Tudo isso eram… coisas que eu não queria perder mesmo. Não mesmo.

    Nunca tinha parado para pensar assim, mas existia muitas coisas que amava naquele lugar. 

    Até coisas sem importância que eu sentiria falta, caso me mudasse. 

    Tudo fazia parte de quem eu era. Tudo.

    Talvez por isso… ouvir sobre a mudança, naquela época, tenha doído tanto. Me abalou tanto ao ponto de querer fugir de tudo.

    — Sim — respondi, sorrindo involuntariamente para mim mesmo.

    Ele me olhou por um segundo, e logo deu um sorriso curto. O tipo de sorriso que se dá quando se entende algo tarde demais.

    — Isso é bom.

    Ele ergueu o olhar para o céu por um segundo, e então se virou para mim.

    — E bom… até ouvi dizer que você ganhou um concurso nacional de escrita? 

    “Eh?”

    Me virei surpreso. Meu rosto começou a esquentar no mesmo instante, como se as nuvens tivessem aberto e o sol tivesse decidido apenas me iluminar naquele instante.

    — C-como… você sabe disso? Quem te contou!? — perguntei, envergonhado.

    — Sua mãe, oras. Quem mais seria? — disse, rindo alto.

    Ah, claro, só poderia ter sido ela…

    — Ela me conta tudo sobre você e Hana. — Ela sorriu, levemente. — E ela ficou tão orgulhosa e feliz contando que você conseguiu vencer o concurso, que quase vi o sorriso gigante dela do outro lado da linha.

    Minha mãe… orgulhosa e feliz. Contando para o meu pai.

    Eu… senti um misto de vergonha e felicidade naquele instante. Meu peito logo aqueceu, e um sorriso bobo escapou do meu rosto.

    Meu pai parecia ter notado o sorriso, e logo continuou:

    — Inclusive, ouvi dizer que você foi o príncipe da peça no festival. Isso é incrível, não é?

    Ela tinha contado até isso!? Isso já era exagero…

    — T-tá bom! Já deu! — exclamei, quase tropeçando nas próprias palavras de tanta vergonha.

    Ele… caiu na risada. Uma risada diferente, uma risada que eu não ouvia desde que ele tinha partido para a outra cidade.

    Uma risada leve… sem peso.

    E, por algum motivo… era bom.


    Continuamos andando até chegar no mercado. A caminhada foi silenciosa, como no início. No entanto, sentia que havia algo de diferente ali.

    O silêncio não era incômodo.

    — Ei, você acha que é esse que sua mãe pediu? — ele perguntou, mostrando um olhar perdido ao ver uma lata.

    — Não, é o outro ali — respondi, pegando a lata correta. — Esse é o que ela costuma usar.

    — Ah, eu sabia… só queria ver se você sabia também — disse, coçando a nuca e desviando o olhar.

    — Claro que sabia… — uma pequena risada escapou de mim.

    — Eu só estava te testando! Sério! — continuou, enquanto empurrava o carrinho de compras.

    — Sim, sim. Vamos logo pegar aquele pacote que ela mandou — suspirei, com um pequeno sorriso no rosto.

    Não sabia o que era, no entanto, sentia que algo entre nós começava a se desfazer. Ainda que lentamente.

    E isso… me deixava confuso, e levemente feliz ao mesmo tempo.

    Passamos pelo caixa, compramos as coisas e logo começamos a caminhar de volta para casa.

    O silêncio novamente se instalou, mas sentia que ele seria quebrado a qualquer momento. 

    E não demorou muito para isso acontecer.

    — Shin…

    Aquela simples palavra fez meu peito apertar, por algum motivo.

    Meu coração acelerou, e a mente foi tomada por mais perguntas, novamente.

    Medo. Mesmo com a conversa de antes, era o que eu sentia naquele momento. O vento da tarde parecia mais intenso do que o normal. Um vento que quase machucava meu rosto.

    “De novo?”

    Não sabia o que ele iria dizer, mas pensava que poderia ser algo que mudasse tudo.

    Assim como da última vez.

    — Hm? — encarei-o, com um misto de medo e ansiedade.

    Ele me olhou com aquele olhar sério habitual. Mas era diferente. 

    Eu sentia isso.

    Era… suave?

    Era como se tivesse um brilho sincero no olhar. Como se algo dentro dele, queria finalmente sair.

    Ah.

    E isso me deixou confuso.

    Especialmente, quando ele disse aquilo.

    — Estou orgulhoso de você.

    …..

    Por quê?

    Meu corpo congelou.

    Orgulhoso?

    Por um segundo, as palavras pareceram não fazer sentido.

    Como se minha mente precisasse de tempo para processar aquilo.

    Ele… estava orgulhoso?

    De mim?

    …Orgulho?

    Eu… me sentia confuso.

    Fazia quanto tempo que eu não ouvia essas palavras?

    A garganta secou no mesmo instante. A mente só ficou em branco. O peito apertando.

    Mas eu senti, mesmo assim. 

    Algo dentro de mim mudou.

    …E aqueceu.

    Algo lá dentro se desfazia. Pelo menos era o que eu imaginava.

    Não conseguia dizer muita coisa, ou sequer pensar.

    No entanto, apenas murmurei bem baixo um:

    — Obrigado…

    Ele sorriu, e eu senti minhas bochechas ficarem quentes, junto de um sorriso que levemente se formava no canto do meu rosto.

    Continuamos andando, dessa vez, um pouco mais pertos um do outro, ainda em silêncio. E o vento… parecia ter sido acalmado.

    Talvez… só talvez, algo tivesse mudado.

    Talvez fosse só um começo.

    Só talvez.

    Mas era um começo real.

    Ah.

    E isso era o suficiente.

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