Capítulo 32 - Vazio e Empatia
Após o controle do corpo de tinta ter sido tomado pela deusa Circe, Lyria acordou em um lugar estranho.
No âmago da escuridão perpétua, nas fronteiras da realidade, um lugar se revelava. Tudo era ao mesmo tempo plano e não plano. Relevos em tons de roxo e azul, quase invisíveis, tomavam conta de cada insignificante ponto daquele espaço apagado e negligenciado.
— Tem alguém aí? — murmurou Lyria, concentrando seu olhar para tentar ver além das densas sombras que tudo envolviam.
Empurrou os pés contra o vazio à sua frente, observando as formas e esquecendo-as no instante seguinte. Memórias ligadas a essas estruturas não poderiam nem deveriam existir.
Sua visão e percepção da realidade eram dilaceradas a cada segundo. O mundo diante de seus olhos, já incompreensível, passou a derreter em uma espiral de confusão. Tudo parecia um borrão de tinta indecifrável.
Afundou os pés no vazio e suas lembranças começaram a se dissipar gradualmente. Tudo que era bonito em seu novo mundo, sua nova existência, foi ofuscado por um abismo sem fim. Restaram unicamente as memórias do cárcere.
“Como eu fugi da prisão?”
Enquanto tentava se lembrar de eventos que nunca aconteceram, avistou à distância uma mulher de belos cabelos laranja, cercada de girassóis. As roupas pretas que ela vestia se mesclavam ao ambiente, deixando apenas a imagem de seu rosto visível.
— Quem é você?
A figura enigmática sorriu desconfortavelmente e avançou em sua direção. A imagem do rosto se distorceu, virando uma mancha dentre todas as outras que Lyria não era capaz de entender.
De repente, uma força invisível a colocou de joelhos, e, lentamente, parte dela desmanchou. A tinta que a compunha esparramou-se sobre os relevos. Em forma parcialmente líquida, mantinha a consciência, pois sua cabeça continuava intacta, diferente do resto.
“Estou… afundando em algo?”
Conforme sua mente entrava nos relevos roxos, sentiu uma violenta e iminente sensação de perigo se instalar em cada mísera parte de si. Não pôde se preparar para a visão seguinte.
“Não…”
Sangue desceu pelo seu rosto, vindo dos olhos que se depararam com uma cena aterradora. Um espaço ainda mais amplo que a própria infinitude tentava se encaixar em sua limitada percepção humana.
No interior do relevo roxo habitava uma dimensão maior que todas as concepções de infinito. Essa aberração se dobrava, invadindo a mente da pobre garota, forçando todo seu incomensurável formato para dentro.
Gaguejava em meio a tentativas de expressar qualquer coisa que fosse. Os grunhidos saídos daqueles lábios receberam uma companhia, sussurros. Vozes surgiram de todos os lados, gritos desesperados implorando pela morte. O coro de bilhões de vozes rasgava seus ouvidos, e, a contragosto, compreendia cada uma delas.
— ME MATA! ME MATA DE VERDADE!
— Daqui, daqui… me tira! ME TIRA DAQUI AGORA!
— FAÇA PARAR! PARAAAAR!
Queimava, ardia, doía, machucava, perturbava e angustiava compreender tal volume de informações. O desespero de se sentir puxada para dentro de onde estavam esses clamores infernais tomou sua alma.
À beira do colapso e prestes a se juntar às vozes perdidas na eternidade, algo a despertou. Uma colossal mão cinzenta a removeu daquele lugar perturbador, trazendo de volta cada memória que fora retirada de sua mente.
— Surpreendente, pobre criatura.
— Ah… Q-quem está… está aí?!
— Primeiro, permita-me consertá-la. — A palma se fechou sob os pés de Lyria, engolfando-a em uma luminosidade branca e translúcida.
Ao reabrir a mão, a entidade permitiu que a garota o enxergasse de fato. Um colosso humanoide, semelhante a uma estátua, rodeado de estruturas flutuantes que pareciam anéis brancos girando em alta velocidade. Um par de asas negras, cobertas de olhos e bocas, eram inescapáveis ao olhar. Na testa, um solitário chifre retorcido, como de um carneiro.
— Oi? — murmurou ela, dando um passo para trás na palma, com um aperto em seu falso coração.
— Não se preocupe comigo, não tenho qualquer intenção de machucá-la. — Elevou a mão para perto do rosto. — É surpreendente, e o mais fascinante é que nem saiba que lugar é esse.
— Onde eu estou?
— Fora da realidade, é aqui onde os mortos chegam… Humm… Circe tomou o controle de seu corpo e te mandou para cá, na expectativa de que jogá-la na inexistência seria o suficiente para destruir você para sempre.
“Isso é absurdo…”
— Espera… se aqui é um lugar fora da realidade, como que esse espaço existe?
— Bem-vinda ao Coração da Inexistência. Acostume-se, isso não faz total sentido. — As grandes asas tremularam. — Nenhuma existência mundana pode entrar aqui sem desaparecer na hora. Tem algo errado com sua existência, garota que resistiu ao vazio.
— Ei! Aquelas… Aquelas vozes que eu ouvi eram de pessoas de verdade?
O colosso ponderou por alguns instantes antes responder com a verdade nua e crua.
— Sim… e não há nada que eu possa fazer para impedir isso. Meu nome é Agnostos, aquele que os humanos chamam de Deus do Desconhecido por, ironicamente, desconhecerem meu real nome.
— M-mas por que essa gente toda está lá?! Escutei tantas vozes em tormento… O que fizeram para merecer isso?! — Trêmula, apontou para a deidade. — Me fala, por favor!
— Não poderia dizer a razão mesmo que quisesse dizer a verdade.
— Sou pouco confiável? É isso?
— Não é o caso… Uma força maior apenas impede os mundanos de compreender a verdade. — A mão se aproximou mais do rosto. — Muitos vieram até aqui após a morte e não resistiram a meros milésimos nesse espaço inexistente…
Agnostos prosseguiu: — Você é um caso muito especial por conseguir suportar a pressão desse lugar. Porém, mesmo que seja um ponto fora da curva, ainda é uma mundana. Só deidades muito elevadas são capazes de violar essa força impeditiva que esconde a razão.
Lyria tentava compreender os absurdos sequenciais. Era uma escalada de fatos difícil de engolir. Descobriu que sua vida era uma mentira, que vivia dentro de um livro; descobriu que o mundo real era belo, e, naquele momento, veio a descoberta de um sofrimento que engolia bilhões de atormentados.
Sentir empatia naquele instante foi como uma maldição. Espelhava os sentimentos que notou nas vozes e se arrepiava, imaginando a dor que sofriam.
“Eles também estão presos como eu estava, mas… em uma situação muito pior.”
“Como tudo pode ter um lado tão cruel?!”
“Há como libertá-los? Preciso descobrir isso!”
— A-Agnostos…Quantos são capazes de saber essa tal razão?
— Apenas quatro figuras, e sou uma delas. — A entidade começou a fechar a palma lentamente. — Não posso dizer a razão, mas posso contar quem trouxe uma pequena parte dessas pessoas para cá…
— Fala… por favor.
— Aquela que tomou seu corpo é responsável por atirar milhões de vidas nesse sofrimento eterno. Circe, a Deusa Primordial da Inexistência e da Afantasia. — A visão da garota foi totalmente bloqueada pelos dedos. — Irei enviar sua consciência de volta.
— Espera, tenho uma última pergunta!
— Vá em frente e diga.
— Qual o motivo de Circe estar agindo no mundo agora?! Há algum problema em me dizer?
A entidade permaneceu em silêncio por longos minutos, tempo esse em que Lyria ficou no escuro daqueles dedos, ansiosa e receosa.
— Ela busca matar Verion Velgo e Yunneh Velgo, pois há um deus fragmentado escondido em seus corpos. Na verdade, mais algumas figuras querem a cabeça de ambos nesse exato momento, porém a maioria não pode machucá-los por um fator de incerteza.
E então, Agnostos afirmou: — Circe é uma exceção que não precisa se preocupar com esse fator.
Sistema cavernoso próximo de Harlon, 25/04/029, às 17:36, dia anterior.
Ao abrir os olhos, notou primeiramente uma enorme mancha de sangue aos seus pés. Estava sentada, abraçando uma mulher, era Madallen. Virou a cabeça e avistou uma pilha de cadáveres em uma poça de um líquido escuro.
Uma sensação horrível, como se o torso inteiro queimasse, a tomou.
Era o interior da caverna de cogumelos brilhantes. A luminosidade verde tocava suavemente os rostos lacerados de inúmeras pessoas, incluindo até mesmo crianças. O líquido estranho fazia brotar girassóis negros pequenos naqueles corpos, os consumindo.
A mulher em seus braços respirava calmamente, inconsciente. Lyria se levantou e deixou Madallen no chão, correndo até os corpos aglomerados.
— Tem alguém vivo aí? Ei… alguém? — Aproximou a mão dos mortos.
— Pare de tentar… ninguém está vivo aqui — disse a deusa, uma doçura irônica na voz.
— Circe, sua psicopata! Sai da minha cabeça e me deixa em paz! — Lyria socou a própria testa, atravessando o punho inteiro na tinta.
Ela cambaleou, caindo deitada sobre os cogumelos. Seu rosto se refez.
— Não vai se livrar de mim! Estou presa a você até o último dia de sua existência. Seria conveniente que parasse de resistir de uma vez, afinal, o controle total será todo meu. É apenas questão de tempo.
— O q-que aconteceu?! Fala, fala agora, bruxa!
— Ora, não lembra? — Uma sensação de frio atravessou o corpo. — Coitadinha, mordeu tão facilmente a isca de sair da caverna porque queria saber mais sobre sua mãezinha… Sei exatamente quem ela é, mas não irei dizer uma única palavra. Sabia que iriam ferir uma aberração como você, então apenas precisava te fazer chegar perto de alguém. Que ótima é sua ingenuidade…
— Tudo isso é para matar esses tais Velgo?
— Exatamente! — A empolgação naquela voz era forte. — Consigo sentir a posição deles no mundo.
Circe não deu tempo da garota falar e continuou: — Quando tomei o controle, um guarda na vila tentou me atacar e eu o desmantelei. Só pretendia esperar essa coisa que se chama Velgo aparecer para matar, mas você se intrometeu e, mesmo inconsciente, me forçou a voltar para essa caverna. Como eu não poderia realizar meu ataque tranquilamente por conta de suas interrupções, decidi enviar alguns de meus lindos monstrinhos para causar um caos na vila.
— Como assim?! Não faz sentido nenhum matar tantos inocentes por eu ter te atrapalhado! Não tente criar uma justificativa para suas atrocidades!
— A questão é simples: você está afetando meus poderes sendo tão inconveniente, então precisava ter certeza de que conseguiria matar apesar de sua interferência. Nem eu queria matar essas pessoas, mas você me forçou a isso. — A voz exprimia algum pesar. — Velgo carrega algo extremamente perigoso no corpo, por isso é preferível dizimá-lo por inteiro de uma única vez com poder máximo, para que não restem chances desse algo resistir. Somente um deus poderia fazer isso.
— M-mas…
— Causei algumas centenas de mortes e feridos nessa vila só para cansar essa pessoa. Consigo sentir que ele é seguidor da Deusa da Vitalidade, então é esperado que ele cure todas as pessoas que encontrar no caminho. Há chances disso levar à exaustão e à deficiência de Roha por curar esse grande volume de uma só vez. Caso ocorra tal altruísmo descabido dessa pessoa fraca, será mais fácil dizimá-lo, mesmo que você tente com todas as suas forças me impedir.
Lyria abaixou a cabeça, sentindo o pulsar frenético do coração de tinta.
— E-eu preciso ajudar esse Velgo a salvar as pessoas da vila!
— Hum… Vai mesmo? Acha que os habitantes irão querer ver seu rosto horrendo depois que VOCÊ matou até crianças desse povoado? — questionou em tom de deboche. — Terão nojo e ódio, irão te querer morta, despedaçada e estraçalhada nas ruas ao verem essa face.
Ela se abaixou, com as mãos na cabeça, ofegante. As memórias do cárcere voltaram como um relâmpago dentre seus pensamentos. Além da morte ser uma impossibilidade na prisão e o mofo tomar conta de tudo, ouviu ameaças e xingamentos por incontáveis vezes.
Nunca foi ajudada, elogiada, amada ou recebeu qualquer mísera forma de compreensão. A realidade do livro era cruel e insana. Ter aceito tão rápido que Circe a ajudaria a descobrir fatos sobre sua mãe, Lya, era um sintoma disso; a primeira intenção de ajuda na vida. Quis se apegar a essa nova experiência, inocentemente.
“Não quero ser odiada como era na prisão…”
“Não, não! Preciso ficar longe, longe, longe…”
Lyria começou a chorar, e tomou um susto, pois seu corpo repentinamente foi tomado por Circe. Um breu absoluto e uma ausência de som varreram a caverna em instantes.
— O que você está fazendo?! — berrou na mente de Circe.
— Velgo está aqui dentro da montanha… Preciso que ele saiba meu poder e minha posição para voltar aqui quando relatarem sua aparência e o que meus monstros fizeram na vila. Certamente ele fará essa conexão e virá até aqui quando estiver mais fraco!
Lyria tentou retomar o controle, mas era como se uma verdadeira barreira a impedisse de voltar. A energia massiva da deusa bloqueou as ações dela por dois minutos. No término desse bloqueio, retomou a posse do corpo. A escuridão enfraqueceu e logo se dissipou.
— Sua maluca, para com isso!
— Não faça tanto drama, só quero impedir o apocalipse prematuro que essa pessoa trará — sussurrou Circe.
— …O que você quer dizer com isso?
Não houve resposta.
“Ela adormeceu?”
Lyria se sentou ao lado de Madallen, pensativa. Observava a palma de suas mãos brancas, esverdeada pela luz dos cogumelos. Absorvia aquelas últimas palavras com cuidado.
“Verion e Yunneh Velgo trarão o fim do mundo?”
“Mas…”
“Que tipo de pessoa é alguém tão perigoso?”
Ela saiu da caverna no começo da noite e acompanhou das sombras os movimentos do caçula dos Velgo. Viu seu esforço para curar, a felicidade dos pacientes e ouviu os elogios e agradecimentos que ele recebia. Era a primeira vez em sua existência que presenciava uma gentileza pura.
Um mero obrigado parecia distante, numa noção de que nunca poderia estar naquele posto que o jovem ocupava. Trazer felicidade aos outros e receber agradecimentos, qualquer um deles, era algo que parecia tão inalcançável para ela quanto os pontos luminosos no céu noturno.
Com os dedos, forçava no rosto imitações dos sorrisos que via, sentindo uma profunda dor mental. Queria estar no lugar dele, porém não conseguia se imaginar naquela posição.
“Verion ainda pode viver mais e ser amado por muitas pessoas… Não posso deixar Circe tirar isso dele.”
Aquela que nunca foi amada tomou como pior pecado acabar com o amor que alguém poderia receber. Violar isso, naquele momento, parecia mais inaceitável que o suposto fim de tudo.
Após Verion ter desmaiado com tantos esforços, ela ficou ainda mais admirada. Na madrugada, acabaram trocando breves olhares antes de ser atingida pela lamparina. E quando foi seguida, tomou uma decisão:
— Durma.
Verion foi golpeado na cabeça.

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