Capítulo 43: Vida de um raio de sol
Perspectiva de Inaie
Nascer na Tribo do Sol Branco é como ser moldada pelo próprio brilho do dia. Desde pequena, eu dizia para todos — com a convicção que só uma criança poderia ter — que seria um raio de sol. Um dos guerreiros sagrados que patrulham, protegem e mantêm viva a chama da nossa tribo.
Minha mãe, uma mulher de pele morena e cabelos verdes escuros desgrenhados, sempre me repreendia com uma calma cansada nos olhos:
— Inaie… ser um raio do sol não é uma brincadeira. Aqueles que carregam essa luz também conhecem a sombra…
Mas aquilo não me impedia. Meu sonho era mais forte do que qualquer advertência.
Aos doze anos, peguei minha primeira espada. Ela parecia pesada no início, mas logo se moldou ao meu pulso, como se soubesse que aquela era a nossa história começando. Quando entrei em combate, algo estranho aconteceu.
— I-inacreditável… ela derrotou todos os alunos?
Foi o que disseram depois da aula. E eu, ainda ofegante, sentia que havia atravessado um véu invisível.
Despertei uma habilidade que chamaram de Código Genético — um nome que eu mal compreendia na época. Mas o que eu sabia era simples: meus cortes cortavam o som. E quanto mais a luta se estendia, mais rápido eu me tornava. O mundo começava a desacelerar diante dos meus olhos.
Com esse dom, minha ascensão foi meteórica. Fui nomeada uma Raio do Sol, e rapidamente comandei minha própria tropa. A honra era esmagadora, mas a adrenalina me sustentava.
Naquele dia específico, eu estava no pátio quando ouvi a voz debochada de Raimon:
— Ei, bora? Fiquei sabendo que chegaram estrangeiros aqui. Finalmente algo acontece, hahahaha!
Raimon era um dos mais fortes entre nós. Careca, de pele morena, olhos amarelos como âmbar, e um número absurdo de piercings nos lábios, orelhas e nariz. Sempre carregava sua lança branca com ponta dourada — algo entre uma arma e um símbolo de orgulho.
Ele colocou o manto sobre a cabeça, como de costume antes de uma missão.
Amarrei meus cabelos verdes — mesmo curtos, podiam atrapalhar — e vesti o pano que cobre a cabeça. Fomos então até o palácio, esperando apenas outro dia comum.
Mas então…
Andávamos pelos corredores do palácio. O silêncio era solene.
— Agora é só esperar pra ver o que aqueles dois da tribo Marezza vão discutir com o ancião Noifa — comentou Raimon com os braços cruzados, encostado numa das colunas.
Mas um estrondo nos interrompeu. Uma explosão abafada reverberou pelas paredes como um trovão engasgado.
BOOOOM!
Meu coração deu um salto. Raimon endireitou o corpo na hora e levou a mão à sua lança com um movimento instintivo.
— Não acredito… estamos sob ataque?
Minha mão já repousava no cabo da espada. Mesmo com toda minha fama como guerreira… essa era a primeira vez que meu corpo tremia sem estar em combate.
Nós corremos pelo corredor curvo até uma grande sala devastada. O teto estava rachado. Poeira subia como uma cortina turva, o fogo crepitava nas laterais, e um buraco enorme dominava o centro do recinto.
Raimon girou sua lança com precisão.
— Inaie… vamos com tudo.
Assenti com firmeza.
De dentro da fumaça densa, uma silhueta surgiu, devagar, como um fantasma materializando-se em pleno dia.
Era um jovem. Cabelos negros, lisos e caindo de forma desordenada sobre os olhos. Os olhos… roxos e impassíveis. Sua pele, branca como o luar, destoava brutalmente da nossa tribo solar. Estava sem camisa, usando apenas uma calça preta um pouco larga, e descalço.
Mas o que mais me chocou… foi o que ele segurava na mão direita.
Uma cabeça.
Os cabelos laranjas, o tom de pele… era inconfundível.
— Jiema… — sussurrei em choque.
Raimon gritou como uma fera ferida.
— MALDITO! VOCÊ MATOU O JIEMA?!
Jiema era o segundo mais forte entre os raios do sol. Um herói. Um símbolo.
O jovem apenas sorriu. Seus dentes tinham um formato levemente pontiagudo. O sorriso não era arrogante, nem zombeteiro. Era… frio. Cru. Desumano.
A forma como ele falou aquilo… com uma indiferença que transformava a vida em uma mera estatística, o assassinato em uma rotina tediosa. E naquele instante, enquanto o sangue de Jiema ainda gotejava no mármore, eu soube: esta luta não seria como nenhuma outra que eu já havia travado.
O calor, denso e sufocante, pairava no ar. A fumaça dançava em espirais monstruosas, iluminada pelas chamas vorazes que lambiam as paredes, consumindo a sala em um banquete lento de destruição. E então ele se moveu. Passos lentos, quase inaudíveis, como se o caos ao seu redor fosse apenas um cenário teatral para sua entrada.
O garoto de pele pálida atravessou o véu de poeira e fogo. A cabeça de Jiema pendia de sua mão, um troféu macabro.
— …!
Antes que pudéssemos sequer reagir, ele a lançou. Com uma frieza calculista, a cabeça de Jiema girou no ar, ricocheteou no chão polido e rolou até parar aos pés de Raimon. Os olhos do nosso companheiro ainda estavam abertos, fixos em um último olhar de dor e incredulidade.
— Jiema… — O nome saiu da garganta de Raimon como um rugido ferido. Seus punhos se cerraram, e seus olhos dourados brilhavam com uma fúria incandescente, como o próprio sol que venerávamos.
O garoto, agora parado a poucos metros de nós, agachou-se levemente. Seu corpo se dobrou com uma fluidez ensaiada, a mão direita recuada, a esquerda à frente, numa postura que lembrava um predador prestes a saltar. Ou pior: alguém que já havia caçado tanto que a caçada se tornou um gesto sem esforço.
— Esse até que me deu um pouco de trabalho… — ele disse, com um sorriso discreto. Seus dentes levemente pontiagudos reluziam, refletindo o fogo moribundo da sala. — Espero que vocês… me deem mais.
Sem mais palavras, Raimon se lançou. Um rugido cortou o ar, um grito primal que vibrou em meus ossos. A lança branca com ponta dourada de Raimon girou como um furacão, rasgando o ar com um assobio mortal. Ataque após ataque, uma investida após a outra — mas o garoto era intocável. Ele se movia como névoa, desviando com uma facilidade absurda, pulando, agachando, torcendo o corpo com uma precisão desumana que beirava o irreal.
— Você é bom com essa lança, grandão — disse ele, a voz calma e quase divertida, enquanto desviava de um golpe que teria me decapitado, por centímetros. — Mas só isso não basta.
Num instante, ele se lançou. Um único movimento. Um estalo seco, seco.
O som do osso se partindo ecoou na sala, um trovão abafado que fez meu estômago revirar.
Raimon soltou um grito de dor, e seu braço esquerdo pendeu sem vida, balançando frouxamente. Antes que ele pudesse reagir, o garoto dobrou os joelhos, o impulso foi brutal. Com ambos os punhos fechados, ele desferiu um golpe devastador no abdômen de Raimon.
O impacto foi tão devastador que Raimon foi arremessado como uma pedra atirada por uma catapulta. Seu corpo atravessou colunas de mármore branco, rasgou paredes, afundou no chão, arrastando tudo em seu caminho até desaparecer entre os escombros, uma trilha de destruição para trás.
Eu respirei fundo, tentando acalmar o tremor em minhas mãos. Mas era apenas por um instante. Puxei minha espada da bainha decorada com folhas. O som metálico ecoou firme e limpo no ar denso, como uma promessa de vingança.
— Vamos ver quem você é de verdade.
Num piscar de olhos, eu voei até ele. Uma flecha verde em um mundo de cinzas.
Ficamos frente a frente.
Mesmo com meu rosto parcialmente coberto pelo manto rasgado, seus olhos roxos encontraram os meus — e eu tive a sensação gélida de que ele via através de minha carne, direto para minha alma. Um frio atravessou minha espinha. Seu punho veio direto, veloz como um raio. Desviei por um fio de cabelo, senti o deslocamento do ar, a morte raspando minha têmpora.
E então… minha espada cantou.
O corte foi limpo. Preciso.
Sua carne se abriu diante da minha lâmina. Vi o braço direito dele voar, em um arco impossível, sangue espirrando no chão e evaporando com o calor infernal da sala. Mas antes mesmo que eu pudesse respirar aliviada, antes que o braço atingisse o chão, ele avançou… com o mesmo braço. Inteiro. Sem um único corte.
— Q-quê…? — recuei, os olhos arregalados, a voz presa na garganta.
Eu tinha certeza de que o corte havia sido real. Eu senti o impacto, ouvi o som da lâmina atravessando. Era impossível.
— Você é rápida — disse ele, apontando para mim com o braço recém “recuperado”. Seus olhos roxos, impassíveis, eram um poço de indiferença.
Então, ele desapareceu.
Meu instinto berrou. Um alarme agudo na minha mente. Mas era tarde demais.
Um soco atingiu meu rosto com uma violência absurda. Ouvi ossos se partindo, um estalo horrível que parecia vir de mim mesma. O mundo girou em um borrão de luzes e sombras. Meu corpo foi arremessado como uma boneca de pano, atravessando colunas, partindo-as ao meio. O impacto final contra uma parede lateral devastou ainda mais o salão. O pano que cobria meu rosto se desfez no ar, rasgado em pedaços.
Gemi, o som preso na garganta. Com um esforço monumental, me levantei, o sangue escorrendo quente da minha boca, um gosto metálico preenchendo minha língua. Minha visão estava turva, mas clara o suficiente para vê-lo.
— Vamos ver se sobrevive a isso… — murmurei, a voz rouca, quase um sussurro.
Minha espada brilhou, uma luz verde-esmeralda cintilando em minha mão. Meu dom havia se ativado. Tudo desacelerou. O tempo, o som, o próprio espaço ao meu redor se tornou espesso e lento. Exceto meus movimentos.
Num só impulso, voei até ele. Uma flecha verde-esmeralda guiada pelo destino, pelo ódio.
Minha lâmina visou seu pescoço com precisão cirúrgica. E eu cortei.
Eu vi. Juro que vi. A cabeça dele girar no ar, separada do corpo. O sangue escuro jorrar em um geiser momentâneo. O baque surdo no chão.
Mas então…
Um chute. Rápido. Cruel. Impossível.
— GHHK! — O grito ficou preso na minha garganta. Senti meu queixo ser destruído, a dor explodindo como um relâmpago incandescente. Minha cabeça chicoteou para trás, a coluna vertebral estalou com um som horrível.
Meu corpo caiu como uma boneca quebrada. O mundo girava em um vórtice de dor e escuridão. Eu já não sentia as pernas. Nem os braços. Nada.
Lá estava ele.
De pé.
Inteiro.
Com o mesmo sorriso frio, inabalável, como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse feito absolutamente nada.
Minha espada escorregou da mão, o som dela tocando o chão de mármore foi a última coisa que ouvi com clareza.
“Então… era para isso que eu vivi? Só para morrer assim… como poeira ao vento?”
A escuridão me abraçou, fria e inescapável.
Minha consciência se dissolveu.

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