Capítulo 44: Dois lados da moeda
Perspectiva: Kan Orquídea
Mais um corpo diante de mim.
Os detalhes eram nítidos sob a luz filtrada pela poeira. Era uma garota. Cabelos verdes, curtos e bagunçados pelo combate. Traços suaves, uma juventude que ainda não havia sido manchada pelo tempo, exceto por esta mancha final. Bonita, talvez. Provavelmente gentil. Seus olhos, agora opacos e vidrados, pareciam guardar um último reflexo de algo que eu jamais saberia. Um sonho, talvez?
“Qual seria o seu?”, pensei, meu olhar traçando a curva de seu maxilar. “O que ela desejava com tanta intensidade antes de cair neste chão frio e sujo?” A curiosidade era uma sensação distante, como tentar lembrar o gosto de algo que nunca comi.
— SEU MALDITO!
Uma voz, carregada de um ódio tão denso que quase parecia físico, rasgou o ar.
Levantei os olhos. Um rapaz avançava, tropeçando nos escombros. Os olhos dele estavam injetados, vermelhos de fúria e lágrimas, fixos não em mim, mas no corpo da garota. A lança em sua mão tremia, mas não era medo. Era raiva. Pura, inútil e barulhenta.
— Eu vou te matar… VOU TE MATAR PELO QUE FEZ COM A INAIE!
Ele veio correndo, os passos pesados e desesperados ecoando pelo salão de pedra rachada.
Observei sua aproximação com um leve fastio. A dor dele era verdadeira, disso eu não tinha dúvida. Era palpável, queimava o ar entre nós. Mas era inútil. Um fogo que só consumiria a ele mesmo.
A ponta dourada da lança cortou o ar, vindo direto para o meu rosto. Rápida. Desesperada.
“Devo desviar?”, ponderei por uma fração de segundo. “Ou simplesmente deixar que atinja?”
No fim, não fazia diferença. Nada me matava.
Mas desviei. Porque sim.
Com um passo lateral leve, tão suave que meus pés descalços mal fizeram som, minha mão direita se fechou ao redor da haste da arma em pleno ar. O choque da parada abrupta fez os músculos do braço dele travarem. Em um único giro fluido, usei o próprio impulso dele contra ele, arranquei a lança de suas mãos e, no mesmo movimento, cravei-a de volta em seu peito.
O som foi abafado. Um “thud” úmido, seguido pelo barulho da carne sendo perfurada e do osso do esterno se partindo. Um jorro de sangue quente espirrou na minha mão.
Ele arfou. Um som gorgolejante. Seus olhos se arregalaram, a fúria sendo instantaneamente substituída por um choque absoluto.
— Gh…!
Ele tentou me alcançar com a mão direita, os dedos se esticando, trêmulos, como se quisesse agarrar o ar. Mas era tarde. O coração já se partia por dentro.
Soltei a lança, deixando-a fincada nele como um marco. Dei um passo à frente, passando por seu corpo que caía, e me abaixei diante da garota.
— Eu devia ter trazido uma espada — murmurei para mim mesmo, pegando a lâmina dela do chão. O peso era bom. Equilibrado.
Foi quando eu senti.
Não foi um som. Não foi uma visão. Foi… peso.
Uma presença esmagadora, como se a própria gravidade do mundo tivesse decidido se concentrar em mim. A pressão me atingiu como uma marreta invisível, forçando meus joelhos a dobrarem, obrigando-me a ajoelhar ao lado do corpo da garota. O ar ficou denso, pesado, difícil de puxar para os pulmões.
Meus olhos se viraram lentamente para trás.
E então eu a vi.
Uma mulher se aproximava. Devagar. Cada passo parecia fazer o mundo inteiro ceder passagem. Ela vestia branco, um vestido longo com detalhes perolados que ondulava com uma brisa que não parecia ter origem, talvez vinda das aberturas circulares no teto arruinado. A luz poeirenta do salão caía sobre ela, fazendo-a parecer uma entidade caminhando em meio a uma auréola divina.
Sua pele era morena-clara, reluzente. O rosto, de uma beleza austera e perigosa.
Mas foram os olhos que me prenderam.
Um era dourado, intenso e profundo, como ouro fundido à luz do próprio sol. O outro, castanho-escuro, como madeira antiga, encharcado de uma sabedoria e força que não pertenciam àquele lugar.
Ela parou a poucos passos, sua sombra me cobrindo.
— Meu nome é Naaz Superbia Sol Albus — sua voz era firme, calma, como uma ordem dada por um céu sem nuvens. — Sou a soberana desta tribo. E não permitirei que seus atos passem impunes.
A pressão aumentou. Meus músculos, mesmo os meus, tremiam sob o esforço. Era como se minha própria existência estivesse sendo reduzida a poeira sob o peso do olhar dela.
De dentro do vestido, com um movimento suave e deliberado, Naaz retirou uma espada. A lâmina era grossa, de um ciano profundo, como o mar ao entardecer. Um brilho frio e úmido percorreu sua extensão quando ela a ergueu.
Ela veio até mim, seus passos soando como martelos em minha mente.
Eu não conseguia me mover.
A espada atravessou meu peito.
Não senti dor. Apenas o impacto, a sensação de deslocamento e o frio sobrenatural da lâmina passando por minhas costelas e perfurando meu coração.
O sangue subiu pela minha garganta, um gosto metálico e quente, como um grito engolido.
Ela puxou a lâmina para fora com um movimento de pulso preciso, limpando meu sangue na brisa.
— Acredito que você não esteja sozinho — disse ela, seu olhar desviando-se de mim, voltando-se para o horizonte além da estrutura destruída. — Sinto outro… um que não é digno de pisar nestas terras.
Mas, de repente, ela parou. Seu foco se quebrou. Como se algo a chamasse, uma urgência que superava a minha presença. Seu olhar vacilou por um instante, uma fração de segundo de conflito interno.
Então, sem dizer mais nada, ela girou nos calcanhares e disparou em outra direção, veloz como um clarão de prata, deixando-me ali, ajoelhado e “morto”.
Talvez tenha sentido Akane. Talvez esteja indo em direção à arma de Or’Sea, onde a Arquiteta está selada…
Eu permaneci ali por um instante, com o buraco no peito ainda aberto, vazando escuridão.
Então, eu me levantei.
Sem esforço. O som dos meus ossos se realinhando foi baixo, um clique. A carne se costurou como se fosse um tecido sendo puxado por linhas invisíveis. Os músculos se reconectaram. O buraco se fechou com a mesma facilidade com que uma sombra se recolhe à luz.
Meu código genético. Imortalidade absoluta.
Eu não posso morrer. Eu não sinto dor. O estímulo físico pode ser percebido, mas só se eu quiser. Se meu braço esquerdo for arrancado enquanto o uso, ele simplesmente… reaparece. Imediatamente.
Fechei os punhos, sentindo o poder fluir de volta, intacto. O salão estava em ruínas. Pude ouvir gritos e o som de guardas se movendo nos corredores. Nenhum deles me causava preocupação.
Olhei à frente, na direção oposta à que a rainha fora. E segui.
Meus passos não ecoavam. Minha presença era um erro que a própria vida ainda não sabia como apagar.
Eu só precisava eliminar os que restaram. Atrasá-los.
Nada demais.
Perspectiva: Lysanthir
No exato instante em que o estrondo reverberou, fazendo o chão tremer, Naaz se virou para nós. A calma em seu rosto foi substituída por uma autoridade gélida.
— Fiquem aqui — sua voz era baixa, mas carregada com o peso de uma ordem inquebrável. — Parece que temos… visitantes indesejados.
Ela deu meia-volta, seus passos calmos e confiantes, uma contradição assustadora diante do caos que acabara de explodir em algum lugar do palácio.
— Irei derrotá-los… antes mesmo que vocês pensem em reagir.
E então, ela partiu. Não como uma pessoa correndo, mas como um raio silencioso, desaparecendo pelo corredor antes que meu cérebro pudesse processar seu movimento.
Ficamos ali, eu e Cedric, no silêncio ensurdecedor da biblioteca. O palácio, antes um santuário de paz, começava a se agitar com o som distante de gritos e passos apressados.
Cedric se virou para mim, seus olhos acesos, a tensão cortando o ar entre nós como uma lâmina fria.
— Deveríamos ir — disse ele, a voz firme, vibrando com uma inquietação contida. — Mesmo que ela tenha dito para ficarmos, podemos lutar. Precisamos saber o que é isso.
Fechei os olhos por um segundo. Respirei fundo, buscando aquele centro de calma. A luz sempre me guiava… mas hoje, ela tremeluzia, inquieta.
— O melhor a fazer agora… é descobrir o que está acontecendo — abri os olhos, a decisão tomada. — Vá atrás de Seruus e Marcellia. Verifique os arredores da aldeia, veja se há outros ataques. Eu irei em direção à explosão.
Cedric assentiu sem questionar. Confiança. Era o que nos mantinha vivos. Ele se virou e correu em disparada, desaparecendo tão rápido quanto Naaz.
Eu, por outro lado, invoquei a luz.
Faz tempo que não uso isso…
Uma aura luminosa e quente envolveu meu corpo. Não era uma armadura, era uma extensão de mim. Como a própria luz que dança entre as folhas ao amanhecer, impulsionei meu corpo. Saltei, usando as paredes e pilares como apoio, movendo-me em direção à energia caótica que ainda reverberava como um trovão distante.
Mas o que vi… me arrancou o ar dos pulmões.
Ali, no centro de um salão vasto, agora parcialmente destruído, estava um garoto. Parado sobre os escombros fumegantes como se fosse o dono do caos. Cabelos negros, lisos, caindo de forma desordenada sobre os olhos. E os olhos… roxos. Impassíveis. Como os de um animal que já viu a morte tantas vezes que ela se tornou irrelevante.
Sua pele era de um branco lunar, quase doentio. Estava sem camisa, revelando um corpo jovem, mas rígido, e usava apenas uma calça preta larga. Descalço.
Ele acabara de chutar uma garota de cabelos verdes, que caiu como um boneco quebrado. Antes que eu pudesse sequer pensar em intervir, um homem enorme, um guarda, avançou sobre ele com uma lança.
Mas o garoto… o garoto foi mais rápido.
Em um movimento limpo, fluido como água, ele girou a lança contra o próprio dono e cravou-a com uma precisão brutal em seu peito. O homem caiu sem emitir som, apenas um baque seco no mármore rachado. A vida deixou seus olhos instantaneamente.
Eu me preparava para saltar, para intervir, quando a própria atmosfera mudou.
Uma pressão colossal caiu sobre o salão, como se o céu estivesse desabando. Um véu sufocante que me fez parar no meio do meu movimento.
Ela estava chegando.
A entrada do salão pareceu tremer. E então, Naaz surgiu, caminhando calmamente por entre a destruição.
— Meu nome é Naaz Superbia Sol Albus — declarou ela, a voz calma como aço frio, cortando o ar pesado. — E eu não permitirei que saia impune depois do que fez com meus aliados.
A pressão aumentou, esmagadora. Mesmo à distância, senti meu coração estremecer, o ar sendo forçado para fora dos meus pulmões.
Com um movimento suave, ela retirou de dentro do vestido uma espada de lâmina grossa, de um tom ciano translúcido, como gelo encantado. E avançou.
O garoto não se moveu. Eu percebi tardiamente: não era porque ele não queria. Era porque ele não podia. A vontade dela o prendia ao chão.
Naaz cravou a lâmina em seu peito, com uma firmeza absoluta, até o punho.
Sangue escuro escorreu pelo canto da boca dele, manchando os lábios pálidos. Ela recuou a lâmina com um único gesto, limpando-a no ar como se limpasse poeira.
— Acredito que você não esteja sozinho — disse ela, olhando para os arredores, seus olhos penetrantes. — Sinto outro… não digno destas terras…
Porém, em um instante, sua expressão mudou. Alarme. Urgência. Seu corpo se virou como se fosse impulsionado por uma força invisível. E, sem hesitar, ela correu com uma velocidade sobre-humana, desaparecendo pela abertura lateral do salão que a explosão havia criado.
O quê…? Por que ela o deixaria?
Olhei de volta para o garoto.
E ele se levantou.
Como se nada tivesse acontecido.
O buraco em seu peito se fechou diante dos meus olhos. A carne se costurou, a pele se refez. O sangue parou de fluir. O corpo… intacto.
“Imortal?” O pensamento atingiu minha mente com a força de um soco.
Ele se virou, pronto para sair do salão destruído, quando a luz dentro de mim queimou. Eu não podia deixá-lo escapar. Meu corpo brilhou com intensidade. Como uma estrela cadente, desci do meu esconderijo nas vigas e aterrissei suavemente atrás dele, a luz dissipando a poeira ao meu redor.
— Ei — minha voz saiu firme, ecoando no silêncio repentino. — Para onde pensa que vai?
O garoto se virou lentamente. Seus olhos roxos, frios e mortos, pousaram em mim, analisando-me como se eu fosse um inseto curioso.
— Você… é diferente dos outros daqui — sua voz era baixa, quase um murmúrio. — Me diga… por acaso você é…?
— Eu não quero saber quem você pensa que eu sou — cortei, dando um passo à frente, a luz pulsando suavemente em meus punhos. — Me diga você. Você… é do Clã da Escuridão? O que está fazendo aqui?
Por um instante, ele ficou em silêncio, os olhos parecendo perdidos em um pensamento distante. Então ele apontou para mim, uma realização parecendo atingi-lo.
— Então você é das camadas superiores, né…
Ele me olhou com uma seriedade repentina, uma centelha de algo vivo naquele vazio. — Me responda. Você já viu alguém igual a mim lá em cima?
O quê? Que pergunta era aquela?
— Nunca vi ninguém como você — respondi, com a guarda alta. — Mas suas características… essa regeneração… são as mesmas de alguém do Clã da Escuridão. Você tem que ser um deles.
Ele ignorou minhas palavras, seus olhos se estreitando. — Já que não sabe… nesse caso, eu não tenho nada a dizer pra você.
O olhar dele ficou gélido.
E então ele veio.
Como um borrão negro, uma mancha na realidade, ele avançou com velocidade impossível. Mas antes que ele pudesse me tocar, meus escudos de luz surgiram. Sete barreiras hexagonais de energia pura se materializaram ao meu redor, como muralhas translúcidas.
O punho dele bateu na primeira barreira com um thoom surdo. E parou.
Desde que caí nesse abismo, quatro anos atrás… desde que perdi meu coração… eu percebi algo. Minha luz está mais livre.
Sem um coração físico pulsando, não há exaustão. Não há o peso da adrenalina ou o cansaço da carne. É estranho… mas é libertador.
O garoto parou, olhando minha defesa impenetrável. Um sorriso quase imperceptível, frio e cortante, se formou em seus lábios.
Ele sabe. E eu também sei.
Essa luta não será nada fácil.

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