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    Apesar de já terem se passado dias suficientes para que Rin perdesse completamente a noção do tempo, o mal-estar persistia. Havia algo na ausência do Poço da Lua que corroía a sanidade, o silêncio absoluto, o ar rarefeito e a monotonia da penumbra perene. Não havia distrações, nem estímulos, nem cor. Apenas um quarto simples, paredes lisas e a sensação de estar flutuando em um vazio branco.

    Era um lugar feito para apagar o que era humano.
     

    Ali, apenas ele e alguns poucos escolhidos, os que haviam renunciado à própria existência para servir os aspirantes ao título de Oráculo. Suas vidas eram oferendas permanentes, consumidas pela devoção ao Demiurgo e ao Império. Rin os admirava e, ao mesmo tempo, os temia. Eram cascas de gente, fiéis até o esvaziamento completo.
     

    — Sua refeição, candidato — anunciou uma voz tênue.
     

    A garota que entrou era magra, de cabelos cor de palha sem brilho, a pele quase translúcida sob a luz mortiça. Viver nos Poços da Lua cobrava um preço alto, e Gina o pagava em juventude.
     

    — Obrigado, Gina — respondeu Rin, levantando-se do tapete de meditação.
     

    Era ali que ele passava quase todo o tempo, ajoelhado, buscando contato com a consciência do Demiurgo. Às vezes recebia vislumbres, fragmentos, emoções, imagens sem forma, pensamentos que pareciam não ser seus. Disseram-lhe que, com o tempo, ele aprenderia a distinguir a própria mente da de Deus. Que os Poços serviam para isso: apagar o ruído humano até que apenas a frequência divina permanecesse audível.
     

    Ele seguiu Gina pelos corredores de pedra. Ela sorriu de leve ao vê-lo levantar-se, e seu corpo pareceu se mover com mais vida por um instante. Seu papel era cuidar dele, prover alimento, silêncio, e, se o candidato desejasse, companhia. Rin sabia disso, mas sua timidez sempre o fez recuar. No fundo, suspeitava que Gina apreciava esse pudor.
     

    Ela tinha o olhar cansado, mas gentil. Devia ter idade próxima à dele, talvez um pouco mais. Rin lamentava o destino das pessoas dali, almas que jamais veriam o céu aberto novamente.

    Era o único candidato daquele ciclo. Gina contou-lhe que, em alguns anos, chegavam cinco ou seis de uma vez. Os que fracassavam terminavam tragados pelo rio psíquico, as mentes despedaçadas na correnteza de pensamentos divinos. Rin, porém, resistia. Já estava ali há três meses, e a conexão crescia a cada meditação.
     

    No refeitório silencioso, Gina lhe serviu a tigela fumegante.
     

    — Algo mais, candidato?
     

    — Já falei para me chamar de Rin — respondeu ele, esboçando um sorriso fraco.
     

    Ela riu baixinho e sentou-se à sua frente, observando-o comer. Rin já não precisava de ajuda. Embora seus olhos tivessem sido destruídos no início do treinamento, ele agora via com clareza através da percepção psíquica, via mais do que antes. O mundo, para ele, era um emaranhado de mentes, luzes e pulsares.
     

    Mas antes que levasse a primeira colher à boca, algo o atingiu.

    O cheiro. Forte, químico, ácido. Como se o ar queimasse por dentro. Ele prendeu a respiração, o corpo se enrijeceu, e o mundo sumiu.
     

    Uma visão.
     

    Viu um rasgo no firmamento, um corte de luz, e de dentro dele, um enxame de corpos prateados emergindo, como um dilúvio vivo, descendo sobre o mundo. O som era ensurdecedor. O calor, impossível.
     

    Rin cambaleou. O estômago se revirou.
     

    — O que foi? — perguntou Gina, assustada.
     

    — Uma ruptura… vi uma nova ruptura se abrindo — sussurrou, com a voz trêmula.
     

    Mas Gina desviou o olhar, acostumada demais à insanidade dos videntes.
     

    — Se você viu, o Demiurgo também viu. E se ele viu, então já tomou suas providências. — Ela disse, calma, com a fé inabalável de quem já não duvidava de nada. — Tenha fé, Rin.
     

    Ele respirou fundo, tentando conter a ânsia. Talvez ela estivesse certa. Talvez suas visões fossem apenas ecos da consciência divina.

    Mas algo naquela visão o havia preocupado, ele sentia que o céu que tinha visto lhe era de alguma forma familiar.
     

    Tentou afastar a estranheza que sentia e se concentrou na refeição à frente, sob o olhar de Gina.

    — Isso esta bem gostoso — elogiou, mas ainda sentia o gosto da visão no fundo da língua. Algo aconteceria.
     



     

    Longe dali, em uma estação orbital da igreja imperial, Vida estava sentada na cama estreita do quarto que lhe haviam designado. O ambiente era impessoal, paredes lisas, piso frio, e um grande espelho dominando uma das paredes.

    Ela sabia o que havia por trás do vidro. Não era um espelho comum, mas um olho constante. Uma vigilância silenciosa. Apesar do ar carregado de aether, se sentia desprotegida sem sua armadura e máscara.
     

    Do outro lado, duas Matriarcas observavam, envoltas em mantos escarlates com bordas ornamentadas em dourado, símbolo de sua hierarquia. As luzes refletiam em suas máscaras peroladas.
     

    Maya se virou para Gia, demonstrando um cansaço contido.

    — O que acha? — perguntou. — Seis sessões completas de procura psíquica minuciosa, e ainda nada. Nenhum traço de corrupção, nem de intoxicação de aether.
     

    Gia mantinha o olhar fixo em Vida, atenta aos movimentos da mulher.

    — Nada que nós e os instrumentos consigam detectar. Mas olhe pra ela. Os maneirismos mudam. O padrão de fala, a respiração, até a postura. É como se outra vontade… coexistisse nela.
     

    — Dissociação?

    — Não. Isso é outra coisa. — Gia franziu o cenho. — Já vi corrupção mental, possessão por ecos e sobreposição de consciência psíquica… mas isso é diferente. A estrutura dela continua íntegra. A interferência parece… adaptada.
     

    Maya cruzou os braços.

    — Continuaremos as sondagens. Se não houver melhora, teremos de isolá-la permanentemente.
     

    Atrás do vidro, Vida abraçava os joelhos, a respiração curta. As unhas roídas até a raiz, sangue marcavam as cutículas e os dedos, e o lençol tinha pequenas gotas marrons. O silêncio do quarto era opressor, mas em sua mente, o barulho era ensurdecedor.
     

    Ela sentia as emoções das Matriarcas, pequenas fagulhas de desconfiança, frieza, cálculo, atravessando a contenção das paredes. Desde que os sintomas começaram, a sensibilidade de Vida crescera além do normal, mas ao contrário de trazer prazer com o desenvolvimento, trazia apenas desconfiança e angústia.
     

    Fechou os olhos com força.

    — Droga… droga… — murmurou, tentando afastar a sensação pegajosa de outra presença escorrendo por entre seus pensamentos.
     

    E então, ela ouviu.

    Uma voz estranha e impossível. Apesar de não se lembrar de ter ouvido ela anteriormente, trazia uma familiaridade estranha.

    “Finalmente consigo que me ouça”
    “Eu já estava cansada de esperar você aceitar.”
     

    Vida abriu os olhos, o coração disparando. O espelho refletia apenas sua própria imagem, mas ela sabia que não estava sozinha. Uma figura indistinta, de cabelos grisalhos longos estava atrás de si.

    “Não sou um fragmento seu, Vida. Sou eu mesma, o que sobrou de mim.”
    “E você sabe quem eu fui.”
     

    Imagens breves atravessaram sua mente, a igreja, os hereges, a mulher com a espada, o golpe final.
    A mulher sem nome, de olhar duro e intenção firme, tombando diante dela e de Alina.
     

    “Quando me atingiu, abriu espaço. Eu entrei, mas não em totalidade.”
    “E quando você desmaiou, na luta contra o robô, eu emergi.”
    “Agora estamos ligadas… consegui me esconder delas até agora, mas não por muito tempo.”
     

    Vida levou a mão à cabeça, tremendo. A voz parecia deslizar sob sua pele, suave, como quem acariciava uma ferida antiga.

    “Não posso me esconder mais.”
    “E quando elas perceberem que não podem me arrancar sem arrancar você junto…”, uma risada breve, maliciosa, “quero ver quem vai suportar o preço.”
     

    O ar ao redor de Vida ficou pesado. Ela respirava com dificuldade, sentindo a presença apertar suas fronteiras mentais como uma mão invisível.

    “Não lute contra mim, Vida. Há inimigos piores que eu, somos mais parecidas que pensa.”
    “Aceite meu acordo, e juntas, seremos capazes sobreviver ao que está vindo.”
     

    A voz silenciou.

    Do outro lado do espelho, as Matriarcas observaram a súbita rigidez no corpo de Vida e anotaram algo nos tablets. Nenhuma delas percebia que, dentro da mente da soldada, havia uma quarta testemunha, paciente, sorridente, e viva demais para estar morta.
     



     

    Longe dali, nas entranhas sombrias de Tartarus, o Calculador Olson chegava ao seu depósito particular, um espaço esquecido, enterrado sob camadas de rocha e metal. Era seu refúgio secreto, invisível ao resto do mundo.
     

    Ofegante, o homem limpou o suor que escorria pela nuca. Desde que recebera a notícia, fizera o impossível para se livrar dos olhares e se refugiar ali, onde podia pensar sem testemunhas.
     

    — Ó Ungido… problemas — começou, com a voz trêmula. — As Legiões estão prestes a nos cercar. Não teremos para onde escapar. Um Inquisidor e uma Matriarca vieram na frente, acabaram de desembarcar.
     

    — Excelente.
     

    Olson piscou, sem acreditar no que ouvira.

    — E… excelente?

    — Sim, meu querido seguidor de mente obtusa — respondeu a figura oculta nas sombras, a voz carregada de ironia. Ignorava, de propósito, o fato de que a inteligência de um Calculador era o que o tornava valioso. — São mais almas na superfície do planeta. Não vê como isso nos beneficia?
     

    — Mas…
     

    — As máquinas já foram despachadas para os locais determinados, não foram?
     

    — Sim, claro — respondeu ele apressado. — As interferências atmosféricas já começaram. Tudo está conforme vosso plano. As feraethers serão atraídas antes do previsto. Os sensores detectaram a anomalia há poucas horas. Logan terá que antecipar a caçada dos jovens.
     

    — Perfeito. A presença das Legiões é apenas a cereja no topo do bolo — disse o Ungido, um brilho impiedoso insinuando-se sob o capuz. — Eles testemunharão, em primeira mão, o nascimento de uma nova ruptura. O nome do Axioma Primordial será exaltado por toda a criação.
     

    Olson hesitou, engolindo em seco.

    — Mas o senhor… pretende ficar aqui, escondido?
     

    — Não. Você e eu partiremos hoje mesmo — respondeu a voz, agora mais baixa, um sussurro metálico. — Antes que o cerco se feche, iremos nos abrigar perto do núcleo capacitor. Precisamos garantir que nada saia do controle.
     

    — Na floresta? — perguntou Olson, atônito. A ideia de passar dias na selva inclemente de Tartarus, com o inverno se aproximando, fez-lhe gelar o estômago.
     

    — Não se preocupe — retrucou o Ungido, com um tom que misturava desprezo e promessa. — Pretendo lhe evoluir novamente. O frio e o desconforto serão coisas do passado. Agora, ajeite suas coisas. Partimos em trinta minutos.
     

    Olson abaixou a cabeça. As engrenagens do plano, forjadas ao longo de quase um ano e meio, finalmente chegavam à reta final.

    Logo, pensou, o universo inteiro aprenderia a curvar-se diante do prazer puro da lógica, da inteligência fria e implacável do Lorde das Máquinas, e seu reino de dor e razão.

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