Parte Final - A Morte de Si Mesmo
Na noite desse mesmo dia, Hideki estava sozinho. Ele olhava para o teto, e buscava uma solução palpável para a nova variável instalada em sua mente.
“Este menino, ele vai estar na minha tutela definitiva por um tempo que não sei, mas ele vai ficar. Acho que ele me dará uma resposta de vez para um teste de mim… Para mim mesmo. Eu colocarei meu teste em prática.”
Esse teste veio no dia seguinte.
No dia macro desse período de semanas, era colocado em prática o ato final, mas também impulsivo e cruel da Fundação, após algumas derrotas no centro-oeste do país. Esse belo show da organização só podia ser em um alto nível e, bom, escolheram um local um pouco pequeno e habitado…
São Paulo!
Como os avisos de alerta do Governo Federal e da Presidência da Torre, Rod Sugg, estavam em livre circulação nas televisões, redes sociais e demais meios de comunicação, houve uma mobilização federal e municipal efetiva que fosse possível uma rápida evacuação. A maioria dos civis haviam saído da cidade, e uma minoria ainda brigava entre si nas grandes e pequenas estradas e avenidas para saírem da metrópole. Entretanto, no interior da mesma, Por que? A Fundação tinha espalhado seis bombas de alto alcance, alto poder de destruição, em dois pontos da cidade — três na Estação da Luz e três na Estação da Sé. De civil, literalmente toda a região central de São Paulo já estava evacuada. Nenhum civil permanecia — apenas as tropas da Torre, reunidas diante da entrada da Estação da Sé, pois após a chegada de novas informações da Inteligência, as três bombas antes presentes na Estação da Luz, lá não estavam mais, ou seja, como confirmado foi, seis bombas se encontravam na Estação da Sé. O Capitão Tom recebeu a atualização da urgência.
— Tahiko, soldados, avancem! — ordenou, o tom carregado de pressa e tensão.
A informação era que seis dispositivos de longo alcance haviam sido reunidos em um único ponto, capazes de devastar a capital. Tahiko, o Homem, apertou os primeiros degraus do acesso ao subterrâneo, seguido pelos soldados das Forças Especiais da Torre. O corredor os recebeu com luzes tremeluzentes, piscando em tons amarelados, em um clima de desconfiança, o presságio da morte. O ar era extremamente denso, pesado, quase sufocante.
E então, diante deles, alguém os aguardava. Estático, quase imóvel, ladeado pelas seis bombas. A luz revelou o rosto que Tahiko jamais havia esquecido, mesmo após muitos, muitos dias desde do seu combate com esse homem.
Era Hideki.
— Seu maldito… Onde está Riley? E Nikki Williams? — rugiu Tahiko, o corpo vibrando com o ódio reprimido.
Sereno, impassível, Hideki ergueu a mão direita, segurando discretamente uma cordinha quase invisível. Um clique sutil e a maçaneta da porta do banheiro do subterrâneo se moveu, abrindo-se. E então, caiu ao chão o corpo de Nikki Williams, filho do falecido Capitão Williams e soldado das Forças Especiais da Torre. Amarrado, boca lacrada, completamente à mercê.
Os soldados da Torre ergueram suas armas, todas as miras estavam apontadas para Hideki. Tahiko então fechou os punhos, pronto para avançar, mas o ar pareceu congelar quando Hideki ergueu o dedo indicador, dizendo.
— Não tente nada… ou toda esta cidade se tornará pó. — ele apontava para Tahiko.
— Não aponte esse dedo imundo pra mim, seu verme!
Pela câmera no colete de um soldado, o Capitão Tom observava a cena do lado de fora, murmurando: “Hideki… da Fundação…”
— Antes de entregar o Nikki, proponho uma troca — disse Hideki o Executor, mostrando a palma aberta das mãos como forma de demonstrar transparência.
— Que tipo d— — começou Tahiko, mas foi interrompido pelo Capitão Tom através da câmera, que questionou — O que fez com o soldado Nikki?
Tahiko olhou para o soldado ao lado, cerrando os dentes: — Por que não silencia essa merda?
— Nada. Nada fiz a ele…
(…)
Três dias atrás do ato de São Paulo, num esconderijo da Fundação, Hideki colocou sobre a mesa uma vasilha com maçãs cortadas.
— Coma isto — disse, sentando-se em frente.
Riley pegou uma maçã. — Quer? — ofereceu.
— Não.
— Você tem um tabuleiro de xadrez?
Hideki desviou o olhar, impassível — Não.
— Você gosta de xadrez? — insistiu Riley.
— Não.
— Por quê?
— Porque não para e come as maçãs?
— Eu gosto de xadrez… desde pequeno. — Riley sorriu levemente.
Um breve silêncio caiu pesado, mas o garoto não curtia essa quietude forçada.
— Você não gostava quando era criança?
Hideki respirou fundo, tentando controlar a irritação — Se eu responder, você vai parar de falar e só comer?
— Sim. — a convicção de Riley era clara.
— Eu desgosto de especulação e contemplação. Xadrez é a lógica que se perde no futuro não-garantido. Um desperdício de recurso cognitivo.
— Mas xadrez é pensar e praticar… —
Hideki levou a mão à testa, murmurando consigo: “Isso é chato…”
“Hideki, apresente-se ao canto de Zarek!” anunciou uma voz metálica vinda do microfone no canto da porta.
Ele se levantou sem hesitar. Riley continuou a mastigar calmamente o último pedaço de maçã.
— Estavam muito boas… — comentou, valorizando o gesto simples. Ele foi ignorado, por isso disse pela última vez — Eu vou te fazer gostar de xadrez!
Pouco depois, no quintal do esconderijo, Zarek estava parado.
— Ah, Hidekizinho… Aqui é melhor. Sente esse ar poluído… até as pequenas cidades são horríveis, mas eu gosto daqui.
— Fui chamado. O que tem para mim?
Zarek aproximou-se, na posse de um sorriso torto. — O que acha daquele menino? — sussurrou.
— Ele passou no teste. Será útil para a Fundação.
Zarek tirou do bolso uma fotografia dobrada, mostrando Nikki Williams, das Forças Especiais da Torre e filho do Capitão Williams — Este militar está atrás do nosso lugar. Atrás de nós. De um jeito nele. E daqui a três dias, você e seu irmão irão a São Paulo. Sem adiamento.
— Por que não deixar o Tramen sozinho? — indagou Hideki, e Zarek respondeu — Não… adoro ver vocês trabalhando juntos. É sempre perfeito.
Na mesma tarde, Hideki avançava com calma letal pela multidão caótica. Entrou numa lanchonete quase vazia. O olhar de Hideki encontrou imediatamente o do outro cliente: Nikki Williams. Lá estava ele.
— Posso fazer companhia? — disse Hideki, puxando a cadeira.
Nikki o olhou desconfiado — É…
— Está acompanhado?
— Sim! — mentiu Nikki.
— Está mentindo. — Hideki virou-se para os atendentes. — Fechem o estabelecimento.
— Quem é você? — exclamou um deles.
Hideki suspirou, exasperado pela ineficiência humana.
Nikki o encarou e reconheceu — Você… Foi você… matou meu pai!
Em um movimento rápido, Nikki tirou uma pistola Nullite S1, capaz de ferir portadores, mas Hideki foi mais ágil e arremessou a arma Nullite S1 em uma lixeira com um tapa de mão direita. A luta começou. Socos, cadeiras, faca… tudo desordenado, inútil. Hideki desviava com precisão cirúrgica. Em um instante, torceu o braço de Nikki com brutalidade lógica, derrubando-o. Um golpe certeiro no tendão encerrou a resistência.
Hideki permaneceu de pé, frio — Se sua missão era me matar, esqueça. Perda de tempo. Pode salvar milhões, se cooperar.
— O que… está falando? — gemia Nikki.
— São Paulo sumirá do mapa em poucos dias. Duas opções: cooperar e viver, ou recusar e morrer agora. — Hideki pausou, deixando o silêncio esmagar Nikki. — O que vai fazer?
A escuridão foi a bala de borracha. Nikki Williams não se lembrava de ter engolido o pânico e cedido; a mente simplesmente apagou. Quando a consciência de Nikki retornou, ele estava em meio a um amontoado de bugigangas esquecidas, em um quarto trancado.
— E eu vou ficar aqui?
— Aqui é o único lugar possível — A resposta veio do portão de aço, sem que Hideki sequer se movesse para entrar.
— Aqui não tem nem luz, nem água, e comida? Aqui eu vou morrer, porra. Não dá!
— É claro que eu vou trazer comida e água. — A indiferença na voz de Hideki era um insulto.
— Não pense que por eu ter concordado em cooperar que eu me esqueci do que você fez, seu lixo… Eu ainda vou te matar.
— Esqueça isso… Amanhã voltarei aqui, com a comida, e aproveitarei para contar com o que você vai cooperar, entendeu?
— Se o que for fazer, seja lá o que for, eu não concordar, nada disso vai funcionar. — Nikki tentou a chantagem.
Hideki apenas encarou o portão por um instante, e em seguida, fechou-o com um estrondo que fez o quartinho vibrar, alagando Nikki pela plena escuridão. Ele havia saído.
Naquela mesma noite, no QG da Fundação, o quarto de Hideki era a extensão de sua mente. Minimalista, frio e quase vazio. Deitado na cama, sob a pequena iluminação laranja, Hideki encarava a escuridão sem piscar. O conforto de um ambiente neutro era sua fuga; ali, ele não precisava processar Tramen, Zarek ou a iminente destruição. Sentia que, no fundo, o seu vazio opaco, tão visível e imposto em si, talvez tivesse algo ainda… talvez fosse uma porta.
Foi sem piscar os olhos, perdendo seu olhar no teto, que o silêncio total tomou sua mente, seu coração, seu corpo. Uma anestesia auto-induzida, a única forma de paz que parecia conhecer.
“Que coisa…”
Fugindo dessa calmaria estranha que beirava o tédio, Hideki piscou os olhos à força e se virou para o lado, agora olhando para a janela e a vista da noite, iluminada pela clara luz da lua. Havia algo de especial naquela luz.
Sem saber, sem nomear, Hideki sentiu-se atraído pela clareza que parecia se mostrar exclusivamente para ele. Ele se levantou e caminhou até a varanda simples de seu quarto. Sentou-se na cadeira de balançar que ali havia, mas não se balançava, apenas olhava para a lua com um grau de ligação ou talvez na busca por achar algo nela.
Neste momento, Hideki era uma criança voltando a encarar algo que fosse pra si, que talvez ele precisasse ou sentisse que precisava, ou que ele mesmo havia deixado para trás. Que resposta haveria ali na lua, se até mesmo ele buscava saber o que tanto supostamente queria achar? Nada de sua boca saía, nem mexia.
As suas mãos, caídas perfeitamente nos braços da cadeira, lhe davam um conforto que era o oposto da lógica da qual ele tanto se banhava, algo que a água é capaz de dar, ou era isso que ele queria achar.
Ele se lembrava da estagnação de seu olhar em Ava, o silêncio interno absoluto: “É a lua… seu olhar. Me acalma…”
Seus olhos se direcionaram para o chão da varanda. Ele se levantou e encostou os antebraços no aço da varanda, inclinou o corpo e olhou agora para o gramado lá embaixo, no quintal do QG. Ali, alguns esquilos e demais bichos caminhavam em harmonia, buscando algo antes que fossem vistos. Com o olhar baixo, ajudado pela clara luz da lua, Hideki viu a sombra de um braço mexendo na parede da aberta Sala de Estar do QG, que tem entrada livre para o quintal.
“Tem alguém aqui!”
Hideki inclinou mais o corpo para a frente da varanda, tentando ver quem era, mas o ângulo não era favorável; a pessoa estava mais para dentro da sala. Sem hesitar, Hideki deu um leve impulso para trás e pulou lá da varanda do seu quarto, no alto andar do QG, aterrissando no quintal.
Deu de cara com quem estava lá.
Era o garoto Riley, de pijama, gorro de papai Noel na cabeça, e com as mãos cheias de amendoins e castanhas.
— Não pode ficar fora do quarto! — Hideki afirmou, com a voz baixa, aproximando-se de Riley e sutilmente guiando-o de volta para o cômodo onde ele ficava.
— Eu só estou jogando comida para os bichinhos ali. — Riley apontou para os arbustos, que agora fervilhavam com esquilos, guiados pelas comidas que residiam nas mãos do garoto.
— Está vendo? Eles estão com fome. — Riley balançava as mãos.
Hideki nada fez. Visivelmente indisposto de convencer o garoto (um custo inaceitável de energia), Hideki permitiu que o menino arremessasse cada pedaço de comida para os animais, que iam correndo para onde caía o amendoim ou a castanha. A lua, estranhamente brilhante, iluminava com certa exceção a figura do menino, que, frente a Hideki, era quase um maestro guia dos animais famintos. E nesta cena, Hideki encarava, com o olhar estagnado de sempre, o mesmo olhar que se caiu sobre o brilhar da lua na varanda. Ele observava, mas nada sentia, nem mesmo o que estava perdido.
— Não quer me ajudar? — perguntou Riley, estendendo sua mão esquerda aberta, cheia de amendoins.
Hideki apenas aceitou. Depois de alguns milissegundos encarando a mão cheia do menino, ele abriu as duas mãos. O garoto despachou os amendoins para o comando de Hideki, que, lentamente, ficou ao lado esquerdo do garoto e jogava com a mão direita, quase que na mesma hora que Riley. Mesmo que o olhar opaco de Hideki ali ainda estivesse como um morto que nada sente, e que não cessou de sumir mesmo quando se viu buscando e achando algo na sensação de encarar a lua, de encarar o teto, ou de observar os animais correndo atrás de comida… talvez existia mais junto do “mesmo”.
(…)
Na penúltima manhã antes da missão em São Paulo, Hideki descia as escadas rumo à cozinha do QG. Ele executava uma rotina simples, um luxo que sua lógica havia negado por anos. O plim da chapa deu o sinal. Hideki retirou os pães, no exato momento em que Tramen, seu irmão mais velho e também portador da Fundação, apareceu na cozinha, vestido de roupão e todo descabelado.
— É para mim, meu querido irmão? — Tramen se aproximou de Hideki com os braços apertados, os olhos fechados e sorrindo, um contraste vibrante com a apatia do mais novo.
— Acordou agora? Nem parece que é mais velho que eu — Hideki se virou para a mesa, pegando o prato com os pães na mão esquerda e a xícara de café na mão direita, ignorando a proximidade forçada do irmão.
— Faz tempo que você não prepara um café da manhã para mim, não acha? — Tramen abraçou Hideki de lado, escorando-se no ombro e costas direitas dele.
— Sai de perto. — Hideki deu um leve empurrão em Tramen, e enfim saiu andando da cozinha com os pratos com pães e o café nas mãos.
— E para quem é isso? Não vai dizer que é para a chefia? — indagou Tramen, confuso.
— Riley!
Hideki virou num corredor e desceu as escadas que davam para um andar mais abaixo, onde ficavam os cômodos omitidos, local este que abrigava o Riley, e escondido até mesmo de Zarek e Tramen, o Nikki Williams.
— Riley… esse menino vive melhor que eu aqui. — murmurou Tramen para si mesmo, um vetor de ciúme ignorado.
Contudo, Hideki não foi verdadeiramente no quarto de Riley, mas sim entregar o lanche da manhã para Nikki Williams. Chegando lá, ele abriu o portão devagar, entrando sem fazer barulho.
— O tempo parece não passar nada nesse lugar podre. — Nikki Williams se levantou, passando a mão no cabelo e arrumando-o.
— Aqui não é podre. — Hideki colocou os pães e o café no chão, agachando-se, e Nikki Williams se aproximou da comida, para comer sentado. — Ah, não é não…
— Já vou. — Hideki se preparava para sair.
— Que? Como eu vou comer isso no escuro? — Nikki protestou. — E outra, e o que você vai fazer mesmo que quer que eu coopere contigo? Esqueceu que iria me contar hoje de manhã?
Hideki suspirou, virando o rosto, buscando paciência que não tinha. Ele voltou a se agachar, ficando na altura de Nikki que estava sentado comendo. Deixou o portão do cômodo só um pouco aberto, dando a luz mínima para Nikki conseguir comer.
— Depois de amanhã, eu irei até São Paulo com a ordem de destruir toda a cidade… — Hideki dizia calmamente, sem quase abrir a boca. — Mas não vou fazer isso, e só você sabe disso… porque será uma peça importante do que vou fazer.
— E o que vai fazer? — Um pedaço de pão caia da boca de Nikki.
— Só precisa saber que você não vai morrer. O resto, eu faço…
(…)
No fim de tarde do dia seguinte, o cômodo onde Nikki Williams estava já não tinha a presença ilustre do próprio Nikki Williams; mais ninguém lá estava. Hideki havia executado o primeiro passo do plano (a soltura silenciosa). E lá, olhando para o grande portão de aço escuro na entrada do QG, estava ele, vestido com o seu típico traje preto levemente folgado. Ao seu lado, Tramen apareceu, batendo e escorando sua mão direita no ombro esquerdo de Hideki.
— Hoje vamos fazer um tipo de Hiroshima, e eu estou sentindo que vai ter tantos canais de TV mostrando nossa cara… as mídias estarão cansadas de tanto nos ver sorrindo…
Hideki nem reagiu, somente continuava a encarar o portão por onde passariam.
— Estão preparados, meus queridinhos? — Zarek se aproximava, com os braços abertos e com sorriso largo, a falsa intimidade em ação.
— Sim. — Hideki respondeu, a voz um corte seco.
— Claro, chefe. — Tramen confirmou.
— Os dois já sabem o que fazer. Tirem a noite de hoje para apenas pensarem um pouco, relaxarem… e amanhã de manhã, independente do horário específico, façam aquela cidade sumir, entenderam, Hidezinho e Tramenzinho? — Zarek abraçou os dois com a falsa intimidade de um líder manipulador.
Quando os dois entravam dentro do carro, Hideki parou antes de entrar no canto do motorista, saindo para fora novamente e perguntando a Zarek — O garoto está bem?
Zarek abriu um sorriso de canto, olhou de forma meio analítica para Hideki — Está sim, Hideki. Está. Agora, vá com seu irmão… e não esqueça de fazer o que eu mandei… — Zarek se despediu, dando tchau com as duas mãos e fazendo careta como um louco palhaço. — Tchauzinho!
E então os dois foram.
(…)
E chegou a querida manhã em São Paulo, no subterrâneo da Estação da Sé, diante de Tahiko e das centenas de soldados das forças especiais da Torre, e com Nikki Williams amarrado, com fitas na boca e inconsciente, Hideki disse.
— Eu proponho algo para que nada de ruim aconteça para ninguém.
A troca de olhares entre Tahiko e os demais soldados era tensa.
— Que tipo de proposta pode vir da boca de um verme como você? — Tahiko estava prestes a explodir.
— Tenha calma. — Hideki ergueu a mão, com os dedos esticados sobre o detonador. — Antes de entregar o Nikki, proponho uma troca.
Ninguém falava. Nem mesmo Tahiko, nem o Capitão Tom.
— Eu dou Nikki Williams vivo. Eu desativo as seis bombas. São Paulo é salva. — Hideki disparou as cláusulas como uma metralhadora lógica. — Em troca, você, Tahiko, e a Torre, garantem que o garoto Riley permanecerá sob minha intervenção, sem tentarem vir contra a Fundação. Por tempo indefinido. Sem planos de resgate.
A fúria de Tahiko era uma força física, mas a lógica de Hideki o havia encurralado.
— Você está sugerindo que eu confie a vida dele a você? Ao homem que matou milhares de civis em Dynami sem nem piscar os olhos?! Você matou o pai do Nikki! Lembra? — Tahiko apertou os punhos.
— Eu apenas executei as ordens. Mas o que estou fazendo é um bem para vocês e para mim, sem dúvidas. É a única forma lógica de manter Riley longe de fora do tabuleiro imposto pelos demais membros da Fundação, longe do Zarek, e deixando ele comigo. E também a única forma de garantir a vida de milhões de civis agora.
A ordem do Capitão Tom veio pelo rádio, pesada: “Tahiko! Aceite a troca. Salve a cidade.”
— Aceito. — Rasgando a sua garganta, Tahiko respondeu, encarando Hideki com desgosto e desprezo — Mas se eu souber que você encostou um dedo nele… eu o caço e o mato. Eu juro.
O braço de Hideki se moveu. O clique sutil do dispositivo de pulso. As seis bombas emitiram um longo e agudo beep, suas luzes piscando e, então, se apagando em um silêncio opressor. A ameaça havia sumido. Tahiko correu para desamarrar Nikki.
Após entregar a condição de Nikki aos soldados, Tahiko olhou para o local onde Hideki estava, ele já havia sumido. Contudo, uma carta de Hideki foi deixada no chão em que pisava. Sem esperar, Tahiko pegou, abriu e leu:
“Riley está bem. Com o que fiz hoje, cheguei a uma conclusão sobre mim mesmo. E o menino Riley foi importante no resultado. Em breve, ele voltará bem, pois não deixarei nada de ruim acontecer com ele.”
— Tsc! Esse merda se acha…
(…)
Hideki se moveu com a velocidade da indiferença. Ele não precisava ver a comemoração da Torre ou o olhar de repulsa de Tahiko. Ele tinha o que queria; Riley. Ao sair do subterrâneo, a luz do dia o atingiu. Foi interceptado por Tramen, que esperava escorado no carro.
— Não estourou as bombas… Você falhou nas ordens, Hideki. — Tramen sibilou, impondo finalmente uma posição de irmão mais velho sério — Zarek não vai gostar disso, seu idiota.
Hideki nem parou. — Saia da minha frente.
— O que está fazendo, seu tolo! Você vai destruir o seu posto na Fundação se não mudar o que fez! — Tramen o segurou pelo braço. Hideki era o executor. Sua reputação de obedecer era sua arma.
— Eu te disse. Saia. — A frieza de Hideki era assustadora quando demonstrada. O olhar dele se apagava de qualquer vida.
Hideki seguiu até o QG. Ele ignorou tudo, indo direto para o quintal. Zarek o esperava na grama verde, braços abertos com o sorriso largo e teatral.
— Estou surpreso, Hidekizinho. Pensei que nessa manhã veríamos uma nuvem de fumaça subindo sobre São Paulo…
— Nikki Williams está vivo e a cidade está de pé. — Hideki assumiu a postura decisiva de responsável, mas o cenário era totalmente diferente. — Tudo isso foi necessário.
— Necessário para quem? — Zarek se aproximou, na posse de um olhar curioso, mas analítico. — Você é o único aqui que tem a audácia de desobedecer a duas ordens em um único movimento. Realmente acha que eu não sabia o que você faria antes mesmo de fazer, Hidekizinho?
Hideki se virou, ficando olho a olho com Zarek, de fato, uma cena inabalável.
— Diante das duas ordens que não executou… — Zarek sorriu contidamente. — Tenho total certeza que esteja pensando em ter o garoto Riley para algo que certamente não é para a mesma coisa que a Fundação quer ter, ou acha que estou maluquinho?
— Eu descobri, Zarek. Eu não sou inteiramente lógico como tanto quer que eu seja. O ato que fiz, de desobedecer duas ordens suas comprovam que o título de ‘Executor’ que você colocou em mim foi uma invenção sua, justamente para tentar alimentar essa interpretação de quem eu sou…
Zarek apenas recuou, balançando a cabeça, mexido de uma presunção perigosa.
E Hideki continuou.
— Mas se o Executor que sou, o lógico que sou, aquele que sempre cumpre as ordens de Zarek, conseguiu escolher por si só não ser o Executor, não ser o lógico e não cumprir as ordens de Zarek… Então significa que eu não sou quem você tanto sonha. Alguns anos atrás, você conseguiu me fazer abandonar a mulher que eu amo, e justamente por implantar algo que não sou inteiramente, eu não sabia exatamente se a amava o suficiente… Mas cheguei a conclusão. Você sempre esteve errado em relação a mim.
O clima entre os dois era de uma iminente explosão de astros — ambos são portadores absurdamente poderosos —, e quando finalmente, Hideki virou-se para ir, Zarek disse.
— Ah, Hidekizinho… Você é sempre assim. Hahaha! Você não sente medo, não sente nada. O seu coração é desalmado e sua alma é sem coração… Mas ainda sim, não faça da sua falta de medo, pólvora para uma crise interna. O alto escalão da Fundação odeia essas coisinhas por aqui… E o que vai fazer então? Vai sair da Fundação novamente, é?
Neste exato segundo, não havia outro olhar mais cortante no mundo do que o de Hideki, e se sentindo o homem mais livre do mundo, Hideki respondeu sem ao menos se virar, sem ao menos olhar para Zarek, um ato quase maestral da revolta do aluno crescido e poderoso contra o mentor que está no auge de seu poder.
— Eu não vou sair da Fundação agora. Sair nesse momento me tornaria alvo instantâneo de vocês, e não quero isso. Para que uma calmaria se instaure no país por um tempo, a minha presença aversa a vocês aqui dentro da Fundação, certamente será o suficiente para impedir que tentem fazer alguma coisa ruim.
E assim como tudo, a noite caiu sobre o QG como um pano espesso. No quintal, a lua seguia alta, indiferente ao destino dos homens. Hideki permaneceu parado, sem dizer mais nada. O vento tocava o seu rosto, e, por um instante, o som da respiração dele era o único ruído que restava entre as paredes do silêncio.
Ele olhou para o céu — a mesma lua que o encarava tantas vezes — e compreendeu que, talvez, não existisse lógica alguma em buscar a própria humanidade. A lógica, enfim, havia se esgotado. Ele não era mais o Executor. Nem o homem perfeito da Fundação. Nem o fantasma que Zarek havia criado, moldado.
Apenas um homem que, pela primeira vez, decidiu por conta própria não destruir. Seria possível existir humanidade somente no ato de não destruir, ou seria superficial demais? Na quietude do vento, onde a mente cessa e o coração insiste, algo novo nascia.
Aquela talvez fosse a volta do seu coração. Um retorno que tinha o gosto semelhante a primeira emoção verdadeira de toda a sua vida.

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