Capítulo 35 - Nada.
Ouviu um piar distante. O canto de um pássaro tecendo uma melodia solitária entre os galhos secos do outono, que balançavam ante o frio vento. Frio demais para Jonas.
Caminhava calmamente seguindo os passos de Leandro, que seguia os de Erik, e todos esperavam por Graça, que vinha atrás deles. A mulher dizia as direções que deviam seguir, apontando para onde o filhote de coelho unicórnio os levava.
Graça conseguia sentir onde o animal estava indo. E este ia ao encontro de seus companheiros de espécie.
O resultado disso eram os quatro coelhos unicórnios do tamanho de gatos gordos carregados por Leandro dentro de dois sacos de pano que levava sobre os ombros. Jonas e Erik carregavam também duas bolsas vazias para pôr os próximos.
O plano de Erik dera certo, ao menos até o momento.
Graça mostrou-se resistente a princípio, mas cedeu quanto mais Erik a acalmava com palavras, dizendo que ela não precisaria se “ligar” aos animais, apenas os levar até eles, usando o filhote de coelho unicórnio que já tinha sobre seu domínio.
Quando a mulher aceitou seguir com a ideia de Erik, o resto fora simples. Leandro em nada se opôs uma vez que Graça concordara, e Jonas nada disse.
Já tinha aceitado no bar, antes de Erik o encher com outras questões. As desculpas vieram quando os dois se reencontraram, acompanhadas de alguns insultos por parte de Jonas até finalmente perdoá-lo. Como sempre ocorria.
Ainda assim sentia sua cabeça retornando ao lugar depois daquela noite.
Ainda gosta dela?
Jonas tentava não pensar nisso. E se o fazia, negava. Precisava negar. Nada de bom lhe viria se ainda gostasse dela. Nada de bom sentiria se pensasse nela. Mas nada parecia ser mais difícil do que não pensar.
Nada.
O que você via nela?
Jonas não sabia dizer. Por quê alguém pensaria no que gosta em outras pessoas? Ela era bonita? Sim. Mas outras garotas também eram. Sua personalidade não era a melhor. Suas palavras deixavam muito por dizer. Ela não sabia se expressar muito bem. Era difícil saber quando estava irritada ou não, e além de tudo não fazia nada sem alguém lhe dar um incentivo para aquilo.
Não sabia porquê gostava, ou havia gostado dela, mas não importava naquele momento. Ela não havia gostado dele. Sequer devia pensar nele. E nem ele, nela.
Um som parecido com um relincho lhe soou aos ouvidos, tirando-o de seus devaneios. Então outro, e depois mais um. Jonas sussurrou, dizendo que escutava as presas logo à frente. Coelhos unicórnios, um bando.
— Estão perto, logo após aqueles arbustos, posso sentir — disse Graça.
Erik olhou para Jonas que confirmou com a cabeça. O bando estava na descida de um pequeno solavanco, alimentando-se em meio a escassa vegetação rasteira abarrotada de folhas secas.
Os dois se separaram de Leandro e Graça, assumindo suas posições. Jonas iria até o lado oposto ao que Leandro e Graça estavam, enquanto Erik se posicionaria entre eles, formando um triângulo em volta dos coelhos. Então Jonas avançaria com a espada em mãos, espantando as criaturas na direção dos outros, que carregavam redes para jogar sobre as criaturas em fuga, e então os outros viriam espetá-la com suas lâminas. Com sorte pegariam ao menos uma. Haviam tido essa sorte quatro vezes naquele dia.
Jonas andava tentando não fazer barulho, o que era quase impossível, devido aos seus ouvidos. Ouvia cada estalar de seus passos, se perguntando a todo momento o quão alto o som realmente era.
Quando se posicionou, avistou o bando. Contou ao menos oito. Dois grandes do tamanho de pitbulls e outros menores, com tamanhos variados. Era suposto que ele iniciaria a ação, saindo de seu esconderijo e avançando contra os coelhos, mas Jonas parou, percebendo que haviam encontrado apenas coelhos solitários até aquele momento, nunca um bando, e nunca um coelho tão grande quanto aqueles.
Seus chifres em formato de broca tinham o comprimento do antebraço de Jonas. Certamente ninguém iria querer ser acertado por ele.
Pensou bem no que estava prestes a fazer.
Idiota!, chamou a si mesmo, Você tava pronto pra partir pra cima de um urso, mas tá tremendo pra coelhos?
Sorriu da própria estupidez, pronto para disparar contra os animais, mas ouviu algo à sua esquerda. Algo que os coelhos também ouviram, pois ergueram suas cabeças, todos ao mesmo tempo e fugiram, saltando em disparada.
Jonas prestou atenção nos sons. Algo quebrando repetidamente, passos pesados em um trotar incessante.
Outro grito, dessa vez mais próximo.
Era Erik em meio aos arbustos, onde momentos antes os coelhos pastavam. Perguntava o que tinha ocorrido. Leandro surgiu logo depois, e então Graça. O coelho que ela controlava saltou em sua direção sabe-se lá de onde. Ficaram caminhando em círculos, aparentemente atordoados pelo que havia ocorrido
Jonas ficou em pé, continuando a ouvir o que os outros não pareciam perceber.
Outro grito, dessa vez distante, e muitos outros sons. Sons de algo desmoronando, sons de algo se quebrando, e então um grunhido, alto o bastante para todos escutarem, dado suas reações surpresas.
Se aproximava.
Um homem suado, vestindo uma capa rasgada, surgiu por entre as árvores, tropeçando em Leandro e Graça, e caindo junto a eles no chão. Outro, usando uma cota de malha por cima de camadas de roupas, surgiu do mesmo lugar, atravessando as moitas, sem se dignar a olhar para nenhum dos lados, desaparecendo por entre as árvores.
Jonas continuou ouvindo o estrondo cada vez mais alto, então uma árvore desmoronou, o tronco esfarelando como um palito de fósforo sendo partido por uma criança. Quatro grandes pontas amareladas surgiram do dos estilhaços, seguido por um longo e peludo focinho marrom, e um corpo robusto repleto de músculos do tamanho de um touro. Ele avançou sobre as moitas em direção a Erik e os outros, que ainda se erguiam do chão.
O homem que tombara com Erik atirou algo de sua mão na direção da criatura, que explodiu ao som de sua voz em um clarão ofuscante, o qual forçou Jonas a fechar os olhos.
Ouviu apenas o grunhido da criatura, junto ao som semelhante ao de um trator escavando a terra. Quando abriu os olhos, viu que a criatura se desviara alguns metros dos outros, caída com um rastro de terra marcando sua derrapagem.
Gritou para que os outros saíssem dali, mas todos pareciam atordoados. Apenas o homem que havia arremessado o estranho objeto brilhante se movia, mesmo que mancando aos tropeços. Parecia ter machucado a perna.
Jonas achou-o levemente familiar.
Olhou para a criatura, que começava a se levantar. Os dois chifres curvados para os lados como um touro, e as presas saindo de sua boca boca, a semelhança de marfins de elefantes. Observou seu focinho pontudo e longo, como o de um javali.
Javali?
Virou-se novamente para o homem, então lembrou-se de onde o tinha visto.
O terceiro grupo. A mãe javali.
Olhou para o imenso animal em sua frente. Nunca tinha visto um javali pessoalmente antes, mas tinha certeza que não eram tão grandes como aquele. Nem tinha quatro chifres.
A grande javalina se levantou, grunhindo e balançando a cabeça. Olhou para os lados, o longo focinho fungando o ar, como se estivesse em busca de algo. Virou-se na direção do aventureiro se arrastando aos tropeços para longe, e partiu em uma carga acelerada sobre o homem.
Durou apenas alguns segundos. A criatura o alcançou, empalando-o com uma de suas enormes presas. Arremessou-o no ar. Foi possível ver os anéis de ferro da malha soltarem-se, enquanto o lamuriante grito chegava aos ouvidos de Jonas.
A javalina chacoalhou a cabeça, balançando o corpo já sem vida, até arremessá-lo num estrondo de ossos quebrados contra uma árvore. Ela virou seu pescoço, girando o pesado corpo na mesma direção. Focou em Graça, Leandro e Erik, que continuavam agachados no chão, talvez pelo medo, talvez por acharem que o animal não os veria. Mas viu, focando neles seus olhos negros, minúsculos em comparação a grande cabeça triangular.
Posicionou os quatros chifres para baixo e começou a trotar em carga. Avançaria, da mesma forma que avançou contra o aventureiro de antes.
Jonas reprimiu o pensamento daqueles cascos, chifres e presas atingindo seus amigos e Graça. Lembrou-se de Theo e sentiu o coração pulsar quando saltou para frente.
Estava a meia distância de ambos.
Gritou enquanto corria, tentando chamar a atenção da criatura. A javalina não pareceu percebê-lo aumentando o ritmo com que corria. Em pouco tempo, dezenas de metros tornaram-se menos de dez e Jonas percebeu que não chegaria a tempo.
Leandro se pôs na frente de Graça e Erik levantou do chão, estendendo sua mão. Um som parecido com o de papel se rasgando atravessou o ar, e um risco de sangue saiu do focinho da javalina, atravessado por um corte profundo. Mesmo assim ela não parou, continuando a carga.
Erik saltou para o lado e Leandro jogou Graça para o outro, antes que o animal investisse. As presas escavaram o chão do lugar em que eles estavam, abrindo a terra como um arado.
Jonas viu a criatura passar por eles, parando apenas ao atravessar uma árvore, caiu ante o impacto. Ele correu, se aproximando da trilha aberta de terra feita pelo avanço do animal, e procurou, na esperança de vê-los ainda vivos. Esperança essa que foi recompensada.
Erik arrastava-se pelo chão, a poucos metros de onde Jonas o viu cair. Graça estava sentada do outro lado da trilha, com Leandro em seus braços. Jonas foi até eles, vendo um rasgo regado de sangue na calça de Leandro, que ia da metade da panturrilha ao joelho.
Sua boca secou e Jonas sentiu sua respiração falhar. Pensava apenas que precisavam voltar à cidade logo, antes que fosse tarde demais.
Então ele ouviu a javalina grunhir.
Estava virada para eles, a poucos metros de distância. Os quatro chifres apontados como lanças em sua direção.
Começou a pesada marcha.
Jonas ouviu um xingamento de Erik. Virou a cabeça em sua direção, vendo o amigo estender a mão trêmula em direção a javalina.
— Erik — gritou, olhando novamente para a criatura, que aumentava o ritmo, ficando mais próxima. — Mira nas patas!
— Que? — Erik gritou de volta.
— Acerta as patas!
Novamente, o som do ar rasgando atravessou os ouvidos de Jonas, ao mesmo tempo que Erik caiu de barriga para cima no chão.
A javalina tombou esfregando o focinho na terra. Grunhindo de forma agonizante. Deslizou, parando a menos de três metros de Jonas e Graça. Tentou se apoiar sobre as patas, mas um dos cascos pendia na perna, cortada pela metade, e outra sangrava em um vermelho mais forte do que qualquer outra cor que Jonas já vira. Ela caiu de imediato derrapando sobre o focinho.
Jonas se levantou. A espada em punho.
Era uma oportunidade, não? A criatura estava enfraquecida, e praticamente imóvel. Podiam matá-la.
— Jonas, o Leandro. Ele está mole — berrou Graças às suas costas.
Tinham de levá-lo rápido á Beuha. Precisavam se apressar. Olhou para Erik que também estava caído, aparentemente esgotado devido ao uso de seu “corte de ar”, como apelidaram a habilidade. Não podia levar os dois.
E ainda havia Graça.
Ouviu vozes e passos, e logo uma coluna de pessoas surgiu por entre as árvores. Homens com armaduras de couro e cotas de malha, mulheres com capuzes e calças de caça. Dezenas.
— Achamos! — Um deles bradou.
Cercaram a javalina, que se debatia, tentando afugentá-los. Chifres apontados contra machados e lanças. Só então alguns deles prestaram atenção em Jonas e nos outros.
— Vocês pararam essa coisa? — Um homem com os braços e pernas cobertos de placas de aço perguntou.
Jonas olhou para Erik deitado no chão e então confirmou.
— Digam o nome de seu grupo — exigiu o homem.
Jonas ergueu uma sobrancelha.
— Não temos, respondeu.
O homem estalou a língua.
— Invente um então, enquanto acabamos aqui — Ele desembainhou uma espada em sua cintura e avançou contra a javalina.
— Espere — gritou novamente Jonas. O homem parou, girando sobre os pés para fita-lo. — Precisámos de ajuda — Olhou para Leandro e Erik.
O homem ergueu o queixo e gritou:
— Há algum fármo por aqui?
Uma mulher encapuzada apareceu momentos depois, perguntando o que precisava ser feito. Jonas apontou para Leandro e ela correu para ajudá-lo, soltando a grande bolsa que carregava ao chão e tirando frascos de poções e potes.
Jonas a assistiu jogar água, limpar e então cobrir o ferimento do amigo com algum tipo de pasta branca, criada por ela em segundos após misturar ervas e líquidos dos frascos.
Sua respiração acalmou-se. Ele olhou para a luta que ainda ocorria, e, assistindo de longe, percebeu a estupidez que estava prestes a cometer ao avançar sozinho contra a javalina.
A criatura mal se mantinha em pé e ainda sim, Jonas viu seus chifres atravessarem escudos de madeira e cotas de malha, abrindo buracos a mais nos corpos daqueles que os usavam. Viu sua bocarra abrir e agarrar o braço do homem, e ouviu o som dos ossos esmigalhando enquanto ela o mastigava.
Lanças, machados e espadas, nada parecia infligir-lhe dor. Apenas enfurece-la ainda mais. Jonas percebeu, no entanto, que algumas armas pareciam diferentes das outras, cujas lâminas brilhavam em diferentes cores. Uma espada alaranjada, um machado esverdeado, uma lança cuja ponta brilhava de um azul claro. Cada uma emitindo também um vapor que remetia a cor de sua lâmina.
Uma delas era segurada pelo homem que falara com Jonas. Ele a girou, cortando um dos chifres da javalina pela metade, então saltou para o lado, desviado do balanço de cabeça que trazia consigo os outros três. O lanceiro aproveitou e espetou sua ponta azulada do lado oposto a que a criatura atacou, acertando-a no pescoço.
A javalina grunhiu de forma animalesca, e pendeu para o lado. Os quatro outros lanceiros presentes pareceram ver nisso uma oportunidade e fincaram suas armas nos lados do animal, enquanto ele se debatia, tentando mover a cabeça, aparentemente paralisada.
O aventureiro com o machado fincou sua arma entre os olhos da javalina, que caiu. Um vapor verde escuro se espalhou, e os outros homens se afastaram de imediato, tapando os narizes e jogando pragas e xingamentos.
A javalina parou de se mover, permanecendo no chão. Uma saliva esbranquiçada saiu de sua boca, enquanto as pernas traseiras se mexiam em espasmos.
Jonas não ouviu mais nenhum som vindo dela. Estava morta.

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