1.

    Dia ensolarado, começo de outro.

    Três dias se passaram. Helena e Alice se aproximavam enfim de seu destino. O cenário inóspito de antes se transformou em rios, montanhas e, enfim, muralhas. O acesso era partilhado com um rio largo, que corria entre duas montanhas colossais: Mariana e Belice, tão altas que pareciam rasgar os céus.

    A muralha se estendia de uma ponta a outra da passagem, conectando as montanhas como uma cicatriz de pedra, bem arquitetada, com uma grande estrada para o fluxo de entrada e saída.

    À medida que avançavam, os portões tomavam forma. A fila se arrastava diante da guarita. Poucos soldados guardavam a entrada, mas seus olhares afiados pesavam sobre cada pessoa.

    Uma senhora foi a primeira a atravessar, escoltada com cuidado. Logo depois, um casal com dois filhos, as costas curvadas pelo peso de bagagens, denunciavam a condição de refugiados, e assim continuava, uma fila enorme de pessoas.

    Alice se inclinou para o lado e murmurou para Helena: — Se cubra bem e não deixa eles verem seu rosto.

    — Farei isso — respondeu, ajustando o tecido sobre a cabeça.

    Depois de muito esperar, chegada a vez delas, dois guardas vieram ao encontro. Um era mais velho, de expressão severa; o outro, jovem e inquieto.

    — Identifiquem-se — ordenou o guarda mais velho.

    — Viemos de muito longe, visitar. O ‘Último suspiro’ mandou lembranças — declarou Alice rapidamente.

    O nome ecoou pesado, alguns poucos refugiados que sabiam o que isso significava e se afastaram gradualmente.

    O homem arqueou as sobrancelhas, surpreso, e se inclinou para conversar com Alice em voz baixa. Enquanto isso, o soldado mais novo se aproximava de Helena, curioso demais para se conter.

    — Ei! Me deixa ver seu rosto por favor — Solicitou, tentando espiar sob as sombras do pano.

    Helena recuou meio passo, a sua pulsação latejava em seus ouvidos.

    — Não me ouviu? — insistiu, erguendo a mão para puxar o pano.

    Por um instante Helena se voltou, no limite de sua perspectiva para o soldado, a luz atravessou a sombra do tecido e refletiu em seu olhar. O soldado congelou, como se tivesse visto algo que não sabia explicar, como reflexo, sua mão se aproximou rapidamente, pronta para retirar aquele manto e revelar oque havia abaixo dele.

    Então a voz firme do veterano cortou a cena como uma lâmina: — Gafo, já foi o suficiente. Deixe-as passar.

    O novato parou, surpreso. Ainda com a mão suspensa — Mas senhor, não as revista—

    — Eu disse. Que já foi o suficiente — interrompeu o veterano, o tom seco, definitivo.

    Gafo se virou para seu superior e novamente para a garota, recuando em seguida, frustrado, com os olhos ainda presos em Helena.

    Helena se afastou, mergulhando outra vez nas sombras.

    E então o caminho se abriu.

    Quando se distanciaram um pouco, Helena, ainda intrigada, questionou: — Por que desistiram de revistar nossas coisas? Por um momento achei que eles iriam arrancar meu manto à força…

    Alice respondeu sem se virar: — Cobrei um favor.

    Helena franziu a testa, confusa — Favor?

    Houve uma pausa curta, Alice suspirou e respondeu em tom baixo, quase ríspido — Sim, eu dei o que ele queria e cobrei um favor.

    A calmaria se alongou entre as duas. Helena entendeu que não haveria explicações mais claras.

    Enfim adentraram a muralha.

    2.

    A cidade tinha uma arquitetura incomum.

    O rio que cortava a passagem rachava o território em dois, alimentando córregos menores que se estendiam por todo o lugar, como veias. No final toda aquela água despencava em uma fenda abismática, tão vasta e profunda que a luz parecia se recusar a entrar.

    As casas, erguidas sobre palmos do chão, eram feitas de bambu trançado e madeira das árvores Felicas. Cobertas com adobe e cal, sustentavam-se em fundações de pedra, com canais que escoavam a umidade constante.

    As ruas de pedregulhos se encaixavam com uma precisão quase artificial. As pontes repetiam o mesmo padrão, mas cada uma exibia adornos únicos, como se contassem histórias próprias.

    Helena andava boquiaberta, perdida entre as construções e vendedores ambulantes, veículos e carruagens que passavam pelas ruas, crianças que corriam com pássaros nos ombros e guardas que atravessavam as pontes como sombras pesadas. Seu interior se enchia de tudo, como se o mundo fosse um quadro em movimento.

    Enquanto caminhava relatando em seu diário mental cada pedrinha, ela parou em uma venda de doces, despreocupada, em paralelo um menino, que segurava o braço de sua mãe, olhou para o lado e viu rosto de Helena, ele ficou bobo, intrigado.

    — Que linda — disse ele baixinho.

    Quando puxou a manga de sua mãe  para fazê-la ver o mesmo que si, Helena desapareceu, como uma sombra em meio a escuridão, apenas seguindo sua guia.

    Alice, seguia indiferente.

    Após tantas ruas estreitas, vendas confusas e a multidão que parecia não se esgotar, o fluxo da cidade enfim se quebrou. Diante delas havia uma pousada ampla, a madeira escura da fachada contrastava com o tom claro das construções ao redor.

    Alice empurrou a porta sem cerimônia. Helena a seguiu, e o mundo exterior pareceu se apagar de imediato: o barulho das ruas se dissolveu, o cheiro de poeira deu lugar a especiarias queimadas e, por um instante, até o riso alto dos viajantes cessou, como se o lugar tivesse prendido a respiração para recebê-las.

    Lentamente, a vida voltou ao salão. A moça do balcão ergueu os olhos e abriu um sorriso treinado — Bom dia, posso ajudar vocês?

    — Um quarto para duas pessoas — disse Alice, jogando um saco de dinheiro sobre o balcão.

    A recepcionista recolheu as moedas e entregou as chaves junto de poucas unidades de cobre — Terceiro andar, número sete.

    O quarto era simples, mas limpo. Uma cama de cada lado, cortinas pesadas, uma mesa com um jarro de barro. Alice mal entrou e já declarou: — Vou sair para buscar informações. Você fica aqui.

    — O quê? Por quê?! — protestou Helena.

    — Porque se alguém vir você, já sabe o que acontece. Três dias atrás não foi suficiente? — retrucou Alice.

    Helena se jogou na cama, desolada — Ahhhh. Tudo bem.

    — Volto antes do amanhecer. Se quiser pode dormir e desamarrar sua cintura, aqui é seguro.

    A porta se fechou levando consigo toda a fuga do tédio. O quarto pareceu grande demais sem Alice, o silêncio, invasivo demais.

    O dia ainda estava em sua meia vida.

    Helena soltou o ar lentamente e, antes de se render à solidão, ocupou-se com pequenos gestos: esticou os lençóis amarrotados, correu os dedos pela madeira da mesa, mexeu nas cortinas como se testasse a textura do tecido. Tocou o jarro e bebeu um gole de água sem sede. Tudo na tentativa de não se perder no tédio.

    Só então caminhou até o assento da janela, cheio de almofadas. Em sua grande maioria, só conseguia ver o telhado das construções ao redor, mas não só isso, também havia um beco na paisagem a sua frente, ele se abria em formato de T, conectado à avenida principal. De um instante para o outro, a brisa começou a bater mais forte e trouxe consigo um pedaço de papel, que dançou no ar até grudar no rosto de Helena.

    Ela puxou o folheto, desconfiada.

    A imagem parecia um retrato falado… dela. Ou quase. O rosto, no entanto, estava borrado, riscado, como se alguém tivesse tentado apagar a identidade da figura. Ainda assim, a semelhança lhe trouxe uma familiaridade incômoda, como se reconhecesse algo sem conseguir lembrar o quê.

    A personagem do panfleto empunhava uma arma enorme, de metal e pólvora, desproporcional ao corpo esguio. O uniforme era escuro: jaqueta de lã justa com botões de prata alinhados, dragonas, gola rígida, calça marcada. E, como se não bastasse, o pintor lhe dera um detalhe incomum: duas longas caudas exuberantes, quase vivas no papel.

    Abaixo, mesmo com todos aqueles rabiscos, duas palavras conseguiam ser retiradas: “Lizzander” & “Sol”. 

    Helena passou os dedos sobre o papel, sentindo sua textura. Um frio discreto percorreu por si. Aquela estranheza que sentia não se tornava medo, nem entendimento, apenas uma sensação incômoda, mínima, que ela não sabia explicar, seu paladar apitava um gosto agridoce familiar.

    — Lizzander… — murmurou.

    3.

    Helena ainda encarava o folheto quando o vento soprou com ainda mais força, arrancando-o de seus dedos, o papel rodopiou pelo ar como uma borboleta desajeitada, sumindo logo em seguida. Ela se inclinou demais na janela  para pegá-lo novamente, quase perdeu o equilíbrio, e caiu de volta sobre as almofadas.

    Nem deu tempo de respirar. Um barulho repentino surgiu no beco, Helena, curiosa, se levantou rapidamente para ver o que era, um rapaz surgiu correndo, atropelando barris e caixotes, ofegante, tropeçou e se escondeu atrás de caixas empilhadas bem abaixo de sua janela.

    O garoto parecia não ter mais que dezessete ou dezoito anos, rosto manchado de poeira, respiração entrecortada. Quando levantou a cabeça viu Helena, mas não por completo devido suas vestes, ele fez uma careta como se tivesse sido pego, em seguida, levou o dedo aos lábios, suplicando em sinais para que ela não o entregasse.

    Helena não teve tempo de pensar, dois homens dobraram a esquina logo depois, correndo com a fúria de um touro, vestiam roupas simples de mercadores. Pararam na bifurcação do beco, olharam em todas as direções e, então, notaram Helena na janela.

    — Ei, você aí! — gritou um deles, a voz grossa ecoando nas paredes — Viu um moleque passar por aqui?

    Ela engoliu seco, deu uma olhadinha para baixo sem eles perceberem, o garoto ainda estava lá, encolhido, como um cão sem dono.

    — Eu… acabei de abrir a janela para tomar um pouco de ar — respondeu, forçando uma naturalidade — De quem estão falando?

    — Um ladrão desgraçado, roubou nossas coisas! El—

    O outro homem o interrompeu, cutucando-lhe o ombro, cochicharam com raiva e, sem mais, cada um correu para um lado do beco.

    A paz voltou àquela bifurcação. Helena tornou seu foco para baixo e encontrou o rapaz, que agora sorria de leve, em gratidão. Sem saber o que pensar, Helena fechou as janelas depressa.

    — Essa cidade é uma loucura… — murmurou, encostando-se nas almofadas.

    E ali Helena ficou por alguns minutos, descansando, até finalmente se levantar. Foi então que de repente as janelas se abriram com um estrondo, uma brisa raivosa invadiu o quarto e a empurrou de volta para trás, ela caiu entre as almofadas, o coração disparado, todo esse alvoroço derrubou a parte de cima de seu indumento, mas ela o puxou para frente rapidamente cobrindo-se.

    Quando ergueu seu foco, viu uma silhueta emoldurada do rapaz, que de algum jeito, escalou até sua janela e agora estava em sua frente.

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