Desânimo, falta de vontade. Algo assim já tinha acontecido antes. Um som ecoou distante, quase familiar. Junto dele, um fiapo de luz cortou a escuridão:

    — Vamos, Nathan, você consegue!

    Era aquela voz inconfundível… 

    — Mas mestra, eu… eu nem entendo direito — reclamou, soltando as mãos, antes estendidas diante dele. — Esse tal de kirei… energia espiritual… que coisa mais confusa!

    Ele nunca aprenderia algo assim, tão abstrato.

    “Por que isso, agora? Por que estou vendo isso? Minha mente… quer me dizer alguma coisa?”

    Mesmo sentindo as forças sumindo aos poucos, Nathan via nitidamente o rosto de sua mestra.

    — Confusa? — riu ela, brincalhona. — Sabe o que é confusa? Magia. Isso sim é confuso. Você lê livros, livros e mais livros, estuda fórmulas, a estrutura sintática dos feitiços, visualização mágica e não sei mais o quê… 

    Balançou a cabeça, rindo-se dele.

    — Kirei? Kirei é amigo. Tá dentro de você, de todos nós. Somos todos kirei, tudo é kirei. As árvores, as plantas, os pássaros, as pessoas… até o seu professor de álgebra é feito de Kirei, Nathan. Não é algo estranho. Está aí, você que não percebeu!

    Teria chorado, se pudesse. Era saudoso.

    — Tente sentir, Nathan. Sinta o poder do universo em suas mãos… — E desenhou um círculo deitado no ar, indicando o “espaço”. — Está tudo aí.

    — Mas… 

    “Mas…” 

    — Como? Como, mestra? Eu não consigo sentir nada! Só estou de pé, igual um trouxa, tentando ver… sentir coisa onde não tem! Tá querendo me irritar, é isso? Me tirar do sério? — falou, chateado. Sentia-se feito de bobo.

    “Não parece tão diferente de como estou agora…”

    — Olha… — começou ela, coçando a nuca. — Não é tão difícil.

    Ele riu, ou pensou ter rido. “Ela sempre dizia isso.”

    — É mais fácil do que parece — continuou. — Vamos, eu te mostro.

    O menino Nathan deu de ombros, ainda mordido.

    — Mais métodos estranhos, mestra?

    — Mais métodos estranhos, sim.

    — Droga… 

    — — — 

    Escorados na parede, aluno e professora forçavam os braços direitos contra ela.

    — Que droga, mestra! — reclamou o menino, contraindo os lábios, franzindo a testa. — Pra quê fazer isso?

    — Pra sentir, garoto — falou ela, também com dor. — Sabia que o sentido tem a ver com sentimento? 

    — Ah, não, mestra! FIlosofia, não… 

    — Filosofia, sim! — mandou ela, animada. — Tem que sentir. Sem tido a coisa, não tem sentido. Sacou, sacou?

    — Que idiota…! — murmurou.

    — Não é idiota. Sentido, sentimento. Tem que sentir pra ter sentido. Você não precisa apenas concordar… não é sobre aceitar, falar que sim e acenar com a cabeça. Não, não, você precisa absorver — falou ela, mudando para um tom mais suave. — Absorver.

    Absorver… 

    — Precisa ganhar sentido! Sentir pra ter sentido. Assimilar, consumir… levar para dentro. Entende? Só concordar não leva a nada. Se você não interiorizar, nada disso vai ter sentido, garoto!

    “Nada disso vai ter sentido…”

    — Ok, mestra… — disse ele, cada vez mais dolorido. — Eu tô sentindo, sim.

    — Ah, está? Está mesmo?!

    — Sim… muito… MUITA DOR! — gritou, irritado. — Eu posso parar?!

    — Ainda não.

    Ela sorriu, e o coração dele errou uma batida. O que não daria por isso? Para vê-la assim, sorrindo, diante dele? Devia ter aproveitado mais… 

    — Só mais um pouco… — E suspirava, procurando o momento. — Só mais… agora!

    E saíram, desencostando da parede.

    — Feche os olhos — mandou, já com um sorriso de ponta a ponta. — Anda, fecha os olhos!

    — Tá bom, tá bom… 

    E fechou. Tudo ficou limpo, vazio… mas um vazio bom. Um vago quentinho, certo, preciso. Completo.

    — Abra os olhos e veja o seu braço.

    Ele fez o ordenado, e… 

    — Caramba! Me-me-mestra, i-i-isso é… 

    — Sozinho. Seu braço se ergueu sozinho… — disse ela, contente consigo mesma. — Viu? Sentiu? Isso é o kirei. Um músculo adormecido, que só pode ser alcançado quando sentido, assim como todos os músculos do seu corpo.

    “Meu… Deus!”

    Como ele pôde se esquecer?

    — E você tem uma quantidade absurda, inclusive — comentou ela, intrigada. — Nunca vi tanto kirei numa única pessoa. Nem o meu pai tinha tudo isso. Certo, pequeno gênio! 

    — Pe-pequeno gênio?! — repetiu ele, corado.

    — É meio arriscado, mas pode ser que funcione.

    Aquilo… 

    — A técnica lendária dos Shimada. Vai ser interessante… com você.

    — — — 

    “A calma tão serena, tão imersiva, que parece dissociar o Eu, do Mundo…”

    —  …Uma Suspensão Absoluta.

    — Suspensão… absoluta? — murmurou ele.

    — Passada de pai para filho, de geração em geração, a capacidade de recolher a consciência… de se voltar para si mesmo, deixando o mundo evaporar… — falou a mestra, como se recitasse um mantra. — Nirvana, Ataraxia… muitos nomes lhe foram dados, mas nós, os Shimada, a conhecemos como Suspensão Absoluta.

    Como… como ele pôde esquecer algo tão importante?

    — Foi logo depois de inventarem a Hito-no-Tama — continuou ela, erguendo a mão e virando a palma para cima. Uma chama azul foi se acendendo, até ganhar o tamanho de uma bolinha de ping-pong. — Foi a primeira vez, em toda a história conhecida, que o kirei foi externado.

    Foi bem difícil. Disso ele lembrava.

    — Até então, o kirei era mantido no corpo. Ninguém sabia como materializá-lo para fora. Meu tatara… tataravô, Shimada Otsuki, após dois dias de longa meditação, abriu os olhos e viu uma bolinha azul, como essa — e mostrou a Hito-no-Tama para Nathan. 

    Era belo, mesmo que pequeno.

    — O mergulho de dentro levou para fora — disse ela, enigmática. — Quanto mais se fala do outro, mais se confessa a si mesmo. O inverso, jovem gafanhoto, também é válido.

    Foi como um disparo numa caverna. O eco era absurdo. Sua mente lhe entregou ouro, a resposta para a pergunta impossível! A chave, a saída estava diante dele esse tempo todo!

    Ah, se ele pudesse abraçá-la, erguê-la no ar! Ele o teria feito, sim, com certeza. Pagaria quanto sorvete ela quisesse, essa mestra maluca! Sempre assim, tão doida, tão incrível! Como pôde esquecer de algo tão importante?

    Tão crucial, tão urgente? Ele poderia dar um chute em si mesmo. Era tão simples!

    Parecia tão óbvio… 

    — Nunca se esqueça disso, garoto.

    — Bem, eu vou tentar… — falou ele, inseguro.

    — Pois tente — riu ela, sorrindo de um jeito maternal. — Pode salvar a sua vida, quem sabe?

    “Ah, quem sabe? Você, sua mestra louca…”

    Sentiu que sorria.

    “…E genial!”

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