1.

    Helena não sabia dizer se deveria gritar, correr ou apenas ficar parada.

    O rapaz que havia visto mais cedo no beco agora estava dentro de seu quarto, como se fosse natural aparecer pela janela de um desconhecido. O peito batia como um tambor de guerra, não de raiva, mas de um desconforto surdo: uma mistura de receio, medo e curiosidade. Instintivamente, se arrastou um pouco para trás, mantendo distância.

    — Como entrou aqui?!

    O rapaz, ainda ofegante da fuga, ergueu os ombros como se fosse óbvio.

    — Pela janela. Achei que tivesse visto.

    — Eu sei que foi pela janela! Quero saber por que entrou aqui!

    Ele piscou, surpreso.

    — Ué… e por que você está com um manto dentro do seu próprio quarto?

    Helena tremeu a fala, sem saber oque dizer — Isso não responde nada! E eu acabei de chegar! — exclamou.

    O garoto abriu um meio sorriso — Excelente. Eu também acabei de chegar.

    A cadeira de madeira ao lado rangeu quando ele a puxou sem cerimônia e se largou nela, como se fosse dono do lugar. A mochila caiu com um baque leve no chão. Após revirá-la, sacou duas frutas vermelhas, brilhantes como maçãs, mas do tamanho de pequenos melões. Jogou uma para Helena, que a agarrou no susto, desajeitada.

    — E o que é isso? — perguntou desconfiada.

    — Uma delícia. Prova — disse, já mordendo a sua. O som úmido do fruto se misturou ao escorrer do suco pelo queixo dele.

    Helena se virou de novo para o estranho e, mesmo receosa, deu uma mordida. O gosto a surpreendeu de imediato: doce, intenso, único. O cheiro fresco da polpa encheu seu nariz, e cada dentada seguinte veio mais rápida, quase ansiosa. Quando percebeu, havia devorado a fruta inteira.

    Ao vislumbrá-lo novamente, notou o rapaz paralisado, boquiaberto, encarando-a como se tivesse se esquecido de respirar.

    — Por que está me olhando assim? — murmurou, erguendo a mão até sua cabeça, só então percebendo que não havia nada ali. Sua pulsação começou a latejar, tão forte que ecoava em seu ouvido. Tentou puxar o pano gasto para se encobrir novamente, mas era tarde demais.

    — Você é uma rys… uma Estelarys de verdade! — disse atropelando as palavras.

    Helena se encolheu, apertando o tecido contra o rosto, sentindo a pele queimar, “De novo uma palavra que não conheço… será que todos vão me encarar assim? Como se eu fosse algo bizarro”.

    — Você ainda não disse por que está aqui… — sussurrou.

    — Ah, desculpa! — se desculpou, levantando-se apressado, a cadeira rangendo de novo, e estendeu a mão, meio sem jeito — Meu nome é Caio. Você me ajudou no beco, lembra? Pensei em retribuir com algumas frutas. Não sabia que era uma rys.

    Helena fitou a mão estendida, mas não correspondeu.

    — Eu perdi minhas memórias, não sei oque é isso… Só sei que sou diferente, isso é um problema…?

    — Problema? Claro que não! Está tudo bem, e é curioso pensar que se esconde atrás desse manto.

    — Eu uso porque Alice disse que era perigoso andar sem — se ajeitou, tentando se recuperar.

    Ele bateu na própria testa, arrependido.

    — Claro, faz sentido. Não existem rys desse lado do continente. Você é a primeira que vejo, por falar nisso.

    O ar se aquietou por um instante. Helena desviava o olhar, inquieta, o vento de fora batendo contra a vidraça como se fosse cutucá-la. O garoto percebeu a tensão e tentou aliviar o clima:

    — Pode tirar o capuz se quiser. Não vou contar a ninguém. — Pôs outra fruta diante dela e se recostou na cadeira, abrindo um breve sorriso — Podemos só comer algumas frutas juntos.

    Helena ficou pensativa por um longo tempo. Respirou fundo e puxou aquele manto pesado para trás. O rosto angelical surgiu junto de orelhas de raposa que denunciavam sua natureza, seu rosto, vermelho, talvez pela fruta, talvez pela vergonha.

    — Você não tem medo de mim? — perguntou num fio de voz.

    — Por que teria?

    — As últimas pessoas que me viram tentaram me matar… Então…

    Caio franziu o cenho, firme.

    — Eu não. Só fiquei impressionado. Você é… linda sem todo esse tecido. Também tem cauda?

    Helena hesitou, os olhos fugindo para os lados.

    — Sim… mas estão escondidas nas minhas vestes. Seria um problema se vissem.

    “Elas?”, Caio piscou, achando ter ouvido errado. Por um instante ele se pegou olhando demais, “Ela não deve ter ideia do quanto chama atenção…”, ponderou em sua imaginação.

    — E obrigada.

    — Hm? Pelo quê?

    — Pelo elogio, bobão.

    Ele riu coçando a nuca — De nada.

    O intervalo repentino que se seguiu já não era desconfortável. Era quase cúmplice, como se partilhassem um segredo que o mundo não podia saber.

    Caio se levantou, pensativo. A madeira rangeu de novo sob seus pés — Mora em Lizume há quanto tempo? — questionou enquanto começava a se movimentar.

    — Cheguei hoje. Ainda não conheço nada… entretanto a cidade parece bem movimentada.

    — É, tem disso. Bom, vou embora, então, foi um enorme prazer te conhecer! — concluiu se direcionando até a janela, pensativo, apoiando a mão no batente. Aquela ventania fria entrou, bagunçando os fios soltos que cediam pelo lado de fora do sobretudo de Helena. Por alguns segundos ele ficou parado, avaliando a altura lá embaixo, como se hesitasse.

    Então ele se virou uma última vez.

    2.

    — Quer conhecer a cidade?

    Helena piscou mais devagar do que o normal, tentando decifrar se era uma piada ou um convite real. Os seus lábios se curvaram, como se a ideia fosse absurda e tentadora ao mesmo tempo — Está brincando?

    — Não, vamos lá! — Caio estendeu a mão, empolgado.

    — Não sei… — ela levou os dedos na direção de sua cabeça, ajustando o tecido. A lembrança da voz firme de Alice ecoou em sua mente, severa como sempre, e a fez encolher os ombros antes de terminar a frase — Se Alice descobrir, vou estar encrencada.

    — Oh, você está acompanhada? — ele retraiu o gesto.

    — Sim.

    — E onde está sua mãe agora?

    — Não sei exatamente. Disse apenas que ‘voltaria antes do amanhecer’. E ela não é minha mãe. — A fala veio acompanhada de uma pequena careta.

    A felicidade voltou ao rosto do rapaz, malicioso e animado — Ótimo. Então temos tempo. Ainda é cedo. Vem. Vai ser divertido — voltou a estender o convite.

    Helena ficou pensativa e então se voltou para o quarto vazio. Aquele lugar parecia sufocá-la. O tédio era uma criatura cruel, esmagando-a em cada segundo de solidão.

    E, como uma navalha, a lembrança da voz de Alice cortou seu pensamento: — “Três dias atrás não foi suficiente?”

    Helena respirou fundo. Alice estava certa. Alice sempre estava. Mas…

    E se, por um dia, não estivesse?

    Algo naquela pessoa fazia o coração palpitar, ele se parecia com alguém.

    Caio balançou a mão oferecida como se zombasse da hesitação dela — Vai ficar aqui olhando para as paredes até quando? Eu não vou te sequestrar.

    Helena começou a se sentir ansiosa — “Eu não deveria.”

    Era loucura, uma completa loucura, uma insanidade total. Entretanto, seus pés já se mexiam antes mesmo da mente decidir. Helena segurou finalmente a mão dele. Ela queria acreditar que ele não era como as outras pessoas que encontrou até aquele momento.

    No instante em que os dedos se entrelaçaram, Helena sentiu a aspereza da pele dele. O toque trouxe um arrepio inesperado, e a sensação absurda de que estava prestes a fazer algo inconsequente.

    Caio não perdeu tempo: puxou-a para a janela. E então saltou.

    Os batimentos de Helena quase saltaram pela sua boca. Primeiro uma sacada, depois outra, depois outra, cada pulo fazia o ar bater em seu rosto, misto de frio e excitação. Ela agarrou-se a ele sem pensar, e quando finalmente tocaram o chão, se deu conta de que estava rindo. Nervosa, sim, mas rindo.

    — Pronto. Agora sim — disse ele, sem largar a mão dela.

    Helena ajeitou o pano, escondendo seu rosto novamente. Seus olhos estavam vivos, absorvendo tudo, naquele momento ela havia esquecido completamente de sua protetora. As vielas vistas de baixo eram outro mundo: fortes especiarias queimadas, ferro, poeira, velhos brigavam em portas de bordéis, sombras espiavam pelas janelas. A cidade parecia viva, mais que isso, Lizume realmente aparentava estar sobrecarregada, havia muito mais pessoas que casas.

    Ao perceber isso, Helena não deixou sua curiosidade de lado: — Por que tudo aqui é tão movimentado? Não me parece normal — perguntou.

    Alguns é pela guerra. Mas eu sinceramente acho que é porque em poucos dias haverá um festival. Velmora estará lá, e é raro ela aparecer em público. — Enquanto respondia, eles viraram uma esquina e Caio parou. 

    — Chegamos — disse animado.

    Helena procurava alguma coisa, mas era apenas um beco estreito, caixas empilhadas e um gato revirando o lixo. 

    — Isso? Um beco? Oque tem de especial aqui? — ergueu a sobrancelha, confusa.

    Caio moldou sua face involuntariamente como quem guardava um segredo. Empurrou uma lata de ferro para o lado e revelou a tampa de um bueiro. Quando o abriu, um cheiro úmido e horrível escapou.

    — É por aqui.

    Helena se aproximou devagar. 

    — Isso não me parece nada seguro — disse encarando de perto aquele sumidouro.

    — É a passagem mais segura. Palavra do Tridente de Lizume.

    Ela colocou metade do seu corpo para dentro daquele cano, na tentativa de observar o que havia no final. O espaço engolia a luz, úmido e profundo. Ainda hesitava, mas antes de dar a sua resposta, Caio a empurrou.

    — Caio!!! — gritou.

    O grito se perdeu no escuro.

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