Parte 1
O quadro se transformava em um mural de enigmas ridicularizando-me a cada traço. Tudo era rabiscado ininterruptamente naquele espaço de linhas inclinadas, raízes e frações multiplicadas.
O professor apagava partes com a manga da camisa e voltava a preencher aquilo que restava com novos símbolos.
Minha mente se esfarelava no meio do caminho, incapaz de montar o quebra-cabeça.
— Qual é o limite dessa função quando x se aproxima de zero? — perguntou ao se virar para nós.
Ninguém respondeu.
Canetas arranhavam os cadernos e alguém cochichou atrás de mim. Eu apenas encarei os riscos na lousa, agindo como se estivesse interessado, quando, na verdade, meu estômago encolhia.
— Ninguém? — Já esperava o fracasso coletivo. — Vai cair na prova. Se não entenderem agora, vão penar depois.
Um braço se ergueu ao fundo.
A garota forçou a voz, hesitante:
— É… infinito?
Ele balançou devagar a cabeça com irritação reprimida pelo bater da ponta do marcador contra o quadro.
— Errado. A resposta tá diante dos olhos. Vocês não falham porque é difícil. Vocês falham porque evitam treinar. Matemática exige repetição, não fé.
O que dissera se espalhou pela sala num instante. Não houve quem o contestasse. Senti a pele arrepiar sob a blusa com o peso da cobrança crescente no peito.
O professor voltou a escrever outro exemplo, como se desse aula para a própria sombra, falando sozinho.
Triiim!
O sinal finalmente tocou. Todos se levantaram e seguiram em direção à saída.
— Antes que desapareçam — falou antes de saírem —, prova semana que vem. Quero todos preparados. Nada de desculpas. Do primeiro exercício ao último problema do livro, cobro tudo.
A palavra “prova” colou na minha mente. Enfiei os braços na mochila, guardei o caderno e caminhei para a saída.
A aula se arrastou inclemente sob a forma de uma sequência de palavras cuspidas pelo professor sem que eu as compreendesse de fato.
Afinal, era matemática.
Equações que nunca fizeram sentido fora do quadro. Para que serviriam? Para resolver o problema de gente que inventava problemas para existir?
Tudo o que eu fazia era rabiscar no canto da folha linhas e traços que lembravam mais as capas de discos do que números alinhados.
As pessoas se atropelavam em um corredor amplo e abafado, lotado de passos e vozes. Tanta gente indo para lugar nenhum.
Mergulhei no fluxo, mas com a sensação de estar nadando contra uma maré que não me levava à parte alguma.
A luz fluorescente estalava sobre as cabeças enquanto iluminava o chão mais do que o necessário para um espaço tão sem vida.
No meio disso tudo, vi uma garota de óculos debruçada sobre um monte de folhas espalhadas pelo piso.
Eram atividades rabiscadas às pressas, talvez um trabalho qualquer.
Um aluno tropeçou em uma delas em sua ida e a chutou para longe sem olhar para trás. Mesmo assim, eu a vi ainda fazer um esforço para sorrir e murmurar um tudo bem para ninguém ouvir.
Isso me chamou mais atenção do que os papéis no chão. Naquela situação, não entendi o que fazia alguém sorrir. Devia ser constrangimento. Uma forma de disfarçar a vergonha ou de fingir que não doía tanto estar exposta.
Embora também pudesse ser outra coisa completamente diferente, uma força que eu não alcançava.
Eu devia oferecer ajuda? Era só agachar, pegar uma ou duas folhas, entregar e seguir adiante. Não era um gesto difícil.
No entanto, algo em mim travou.
Pareceu-me uma obrigação empurrada goela abaixo, não um impulso meu.
Apoiei o ombro no armário durante as batidas do ímpeto no corredor que espalharam mais os papéis. Esticava a mão para alcançar os que escapavam, mas a mochila escorregava de seu ombro.
Minhas pernas bambas quase me fizeram parar.
Continuei, porém. Ajustei a alça da minha mochila para seguir o fluxo.
O barulho dos passos ao redor engoliu a cena, e em pouco tempo já era só mais um corredor entre tantos outros.
Empurrei a porta de ferro da saída lateral que dava para o pátio e deixei-me invadir pelo ar que lá se fazia sentir. Só queria atravessar aquele lugar e desaparecer pelo portão. No entanto, não tive oportunidade para isso quando bloquearam-me a passagem dois tipos maiores.
“Cacete…”
O que vinha à frente era David. Tinha o cabelo escuro, curto e espetado, orelhas furadas com piercings e um brilho debochado nos olhos castanhos, bem visível através da vontade de provocar. Jaqueta College sobre a blusa branca, calça jeans, correntes de prata penduradas no pescoço e anéis pretos nas mãos.
Ao seu lado estava seu companheiro Henry. Mais alto e ossudo, de cabeça raspada na lateral e pintada de loiro no topo. Usava uma blusa preta e calça larga.
— Tá pensando que vai escapar fácil, Simon? — provocou Davi.
Engoli em seco. A sombra de Henry estendeu-se sobre mim com ele a inclinar o corpo para a frente.
— Fala, gênio. Tá lembrado do que fez semana passada, não tá? Ou a tua memória também tá falhando igual nas contas do quadro?
O meu coração incendiou-se com a lembrança. Eu sabia exatamente do que se tratava. Os dois foram apanhados em flagrante enquanto colavam na prova de física. Desconfiado, o professor exigiu que disséssemos os nomes.
Se tivesse ficado calado…
Achei que ia ganhar respeito. Em vez disso, ganhei apenas desprezo.
— Cê gosta de ferrar os outros, né? Acha que o mundo inteiro tem que cair junto na lama só porque você não dá conta.
Não me mexi sequer. As minhas mãos tremiam na alça da mochila.
— O engraçado é que você se esconde o tempo todo, finge que não vê nada, mas quando abre a boca… só abre pra foder quem tá do seu lado.
O sangue fez-me a cabeça a ferver. Uma parte de mim queria responder, dizer que não foi por mal, afinal, só queria mostrar que não era invisível. Ao mesmo tempo, soube que fui eu quem entregou, quem cavou essa fossa.
— Sabe o que cê é? — Henry encostou o dedo indicador na minha testa. — Um rato que corre quando tá escuro, mas que se acha corajoso porque entrega o queijo dos outros.
Quis dizer qualquer coisa, mas a minha voz não saiu.
Arrastava os pés pelo chão sob o aperto forte de Henry no meu braço em um ponto em que minha pele ardia na pressão dos dedos dele. David me seguia entre risinhos divertidos.
O corredor lateral levava até o fim do prédio no qual uma curva estreita se escondia atrás da parede descascada, antes do ginásio. Era um lugar com pouca incidência de sol, o ar cheirava a ferrugem e mofo, bem como as grades tortas das janelas projetavam longo sombreamento no cimento rachado.
Tentei frear os passos, puxar o braço, tudo em vão devido à firmeza de Henry. Balancei o ombro na esperança de que a mochila escorregasse e caísse no chão para que eu pudesse escapar, mas eles se divertiam à custa da minha luta inútil.
David riu alto, encostou-se na parede e cruzou os braços.
— Olha só a fera tentando se soltar.
— Não dá nem pro gasto. — Empurrou-me contra a parede. — O moleque acha que pode pagar de esperto.
Forcei de novo os braços, mas minhas mãos tremiam mais do que empurravam. Abafado pelo barulho do pátio, só se ouvia o meu coração em descompasso. Mesmo assim, escutava vozes distantes, risadas, passos. As pessoas passavam, olhavam rápido e davam o fora.
Ninguém fazia nada.
A todos, aquilo parecia não importar.
Naquele momento pensei que, se eu sumisse ali atrás, se levasse uma surra até cair no chão, ninguém se lembraria.
Fariam o dia seguir como se eu fosse só mais um detalhe apagado do quadro.
E talvez fosse mesmo.
— Olha lá. — Virou o rosto para o lado e apontou com o queixo para o pátio. — Ninguém vai vir, não.
Minha respiração se acelerou, e o corpo travou, dividido entre a vontade de gritar e a certeza de que não adiantaria.
— Vai ser rápido — continuou com sua atenção de volta em mim —, se não encher o saco.
Acertou-me um soco que apagou qualquer ordem no pensamento.
A pancada fez com que um calor se espalhasse pelo meu rosto. Misturou-se à minha saliva o gosto de sangue.
Recebi um chute na costela e outro nas pernas. Com isso, caí. Ao tentar me apoiar, o cimento rasgou a pele das minhas mãos.
Fui cercado pelo som de risadas nervosas e excitadas.
David agarrou minha camisa e me levantou à força. Uma das pontas da camisa apertou meu pescoço para, mais uma vez, acertar-me um soco.
Minha cabeça balançou com o impacto. Tudo vibrou.
Perdi o equilíbrio, o joelho falhou e bati o ombro na parede. Aí veio mais um chute. Dessa vez, o ar esgotou-se dos pulmões. Fiquei sem forças, arrastado por um instante antes de desabar.
Ouvi muitos passos se aproximando. Vozes baixas e animadas. O brilho dos celulares invadiu a luz do local.
Vários alunos se aproximaram abertamente para conseguir um ângulo melhor para filmar. Eles me olharam em diferentes perspectivas e ajustaram a distância para enquadrar melhor a cena.
Eu não conseguia controlar os movimentos do meu corpo enquanto era agredido pelos dois.
Senti o sangue escorrer do meu nariz e cair no chão.
E ali, encurralado, percebi o quanto fui idiota por acreditar que a bondade tinha algum valor.
A bondade em si não protege. Pelo contrário, deixava marcas fáceis de atingir. Como uma tatuagem estampada no rosto, ela convidava os covardes a testarem seus limites.
Quando entreguei aqueles dois para o professor, achei que estava fazendo o certo, o tipo de atitude que alguém forte tomaria.
No fundo, eu queria provar que ser bom valia a pena.
Mas não valia porra nenhuma.
Não inspirava respeito. Infelizmente, inspirava desprezo. Além de ser um pedido para que a violência se manifestasse, sua fraqueza deixava claro para quem não entendia o peso de segurar o próprio ódio que ela não tinha forças para isso.
Ser bom seria o mesmo que baixar a guarda. Quer dizer entregar o pescoço na esperança de que alguém fosse perceber o sacrifício.
Ninguém percebia e se aproveitavam disso.
Eles continuavam filmando para ver até onde eu aguentava.
A compreensão veio quando eu estava deitado, degustando o sabor adstringente do sangue que escorria do meu nariz de que o mundo só temia a dor quando ela se apresentava como uma ameaça.
A compaixão não tinha valor em um lugar que só reconhecia o medo.
E talvez eu tenha merecido isso. Por acreditar que justiça era uma questão de caráter, e não de força. Por achar que o certo dependia de coragem, e não de violência.
O chão estava frio. Aquelas vozes se afastavam. O vídeo já tinha tudo o que era necessário.
Fiquei ali, ouvindo meus próprios pensamentos ecoarem e refletindo sobre onde a bondade se encontrava com a estupidez.
— Larguem ele agora!
Outra ordem veio quando um segundo professor baixava com a mão os celulares dos alunos
— Guardem esses aparelhos!
Os dedos de Henry se abriram em meu braço, e David recuou. O ar que entrou em meus pulmões arranhou minha garganta e trouxe uma sensação estranha de alívio e medo ao mesmo tempo.
Os professores cercaram o canto atrás do ginásio como uma barreira viva entre mim e eles. A maioria dos alunos se afastou, enquanto outros abaixaram os celulares sem olhar diretamente.
— Simon, o que aconteceu?
No meio da movimentação, reconheci a voz do professor de matemática, mais grave e contida.
Abaixou-se ao meu lado para alcançar meu olhar, tendo inclinado o corpo. Levantei o rosto e enxerguei o reflexo das luzes no vidro dos óculos dele.
Com uma preocupação real, ele me observava, mas esse tipo de preocupação me irritava, já que me lembrava de que ainda existiam pessoas assim.
Passei a manga da blusa no nariz e respirei fundo.
— Foi nada.
— Nada? — Franziu o cenho, caiu com o olhar sobre a sujeira, o sangue e meu cotovelo ralado. — Tem certeza disso?
— Relaxa com isso. Já tô indo pra casa.
O professor endireitou o corpo, olhou ao redor. Os últimos alunos se afastavam.
— Tá bom. Cuide disso, Simon. Vá direto pra casa.
Ainda sem encará-lo, assenti.
Levantei-me com esforço sob o peso da roupa colada ao corpo. As coisas à minha volta pareciam distantes e amortecidas. A dor já não incomodava; o que restava era um tipo de torpor.
Caminhei em direção ao portão devagar para manter o equilíbrio, com os dedos crispados nas alças da mochila.
As vozes no pátio perderam forma, tornaram-se um zumbido constante, mas os olhares não se dissolviam. Eu os sentia aderindo à minha pele como marcas invisíveis que não se esvaem de lembranças do espetáculo ao qual haviam acabado de assistir.
Conforme dava cada passo, meu corpo ficava mais leve e mais denso ao mesmo tempo. Leve por querer desaparecer; denso pelo peso das memórias recém-criadas.
Sei que o vídeo sairá do pátio antes de mim, se multiplicará, ganhará versões, piadas, edições e se transformará em conteúdo.
Com ele, um novo modo de existir.
Ao alcançar o portão, segurei a barra metálica com força para não tremer. O barulho dos outros atrás de mim não cessava, mas, pela primeira vez desde o início de tudo, olhei para a frente. E, ainda que o corpo estivesse exausto, uma faísca de algo diferente se acendeu em minha mente e me trouxe uma intuição sobre como me levantar de verdade, mesmo caindo.
Andei por vielas pelas quais a luz do fim da tarde escorria preguiçosamente entre os prédios corroídos pelo tempo.
Todo o ambiente exalava sujeira somada a um sentimento difuso de raiva contida.
Os becos exalavam fumaça, urina e graxa. Era o atalho mais rápido até minha casa, e também o mais podre.
O chão estava coberto por papéis amassados com propagandas do Partido da Ordem, ala autoritária surgida no governo após a derrota da Europa. As promessas de segurança e pureza nacional apareciam junto a rostos sorridentes em preto e branco.
Entre eles, estavam vários desenhos grotescos de políticos — o presidente atual tinha olhos saltados e um sorriso de arame, enquanto um senador era retratado com tentáculos no lugar dos braços, abraçando uma pilha de corpos.
O rosto de um general adornava a parede mais larga, coroado por suásticas e slogans apagados a murros.
Caminhei devagar, tentando não olhar demais.
O barulho da cidade aos poucos se desfazia. O beco era estreito o suficiente para que o ar se tornasse espesso.
Sob o fraco reflexo de uma lâmpada de emergência, latas amassadas e seringas secas brilhavam no chão.
Um tremor subiu pelas solas dos pés. A princípio, pensei que fosse um caminhão passando, mas o som vinha de baixo e era um ronco entumecido que fazia o chão vibrar em ondas curtas.
Um ruído se iniciou dentro da parede à direita, grave e irregular, acompanhado por um zumbido úmido.
A superfície possuía rachaduras em veios finos, dando a impressão de que alguém tentou abrir o interior.
Escapou de uma das rachaduras um vapor branco. Aos poucos, o som ganhou uma cadência com um ritmo de batimento irregular e doentio.
Eu não sabia se vinha da parede ou da minha cabeça.
De repente, o barulho cessou.
Concentrei o olhar para enxergar por dentro das fissuras, visto que dali não alcançava a luz dos postes.
A curiosidade venceu o medo e aproximei o rosto.
Uma claridade suja pulsava no fundo. Cogitei ser reflexo de algum fio elétrico, mas o brilho aparecia e desaparecia em intervalos.
Então, vi a silhueta de um homem de costas. Ele estava encurvado. As bordas de seu corpo tremulavam na penumbra, sem forma exata. Vestia um terno, ou o que restava dele, com manchas na altura das mangas.
Fiquei imóvel. Não estávamos muito distantes, e mesmo assim o ar entre nós pesava.
Não consegui entender o que fazia, além de ouvir o som de algo arranhando o cimento, repetido, contínuo e metódico.
O homem parou.
Seus ombros se elevaram um pouco sob tensão provocada por um olhar queimando em suas costas.
Meu coração disparou.
Devagar, ele virou o rosto. Não o suficiente para revelar tudo, mas o bastante para que um olho surgisse naquela escuridão com sua palidez de círculo morto refletindo a fraca luz de onde eu estava.
“Merda!”
Dei dois passos para trás e tropecei numa lata. Caí sentado, mas rapidamente me levantei para correr o mais longe possível.
Quando cheguei à avenida, olhei por cima do ombro.
O beco estava quieto naquela obscuridade intacta, só que meu coração ainda batia fortemente.
— Espero que aquele cara não tenha me visto…
As últimas cores da tarde eram engolidas por um céu tingido por um roxo apagado.
As luzes das casas se acendiam uma a uma, enquanto o cheiro de terra molhada grudava na pele.
Olhava para trás a cada esquina com a sensação de que ouvia um arrastar nas brechas do som.
Logo que avistei o portão de casa o peso dos ombros dissipou-se. Girei a maçaneta e abri a porta com pressa, deixando o trinco ranger.
Minha avó estava na sala próxima à estante costumeiramente costurando algo com a TV ligada nos noticiários. O barulho da porta a fez levantar os olhos. Tinha o rosto fino enrugado, com vincos acentuados nas expressões de preocupação, e o cabelo grisalho prendido em um coque frouxo do qual fios escapavam em torno das orelhas.
Com o cenho franzido, ela pousou a linha sobre o colo ao me ver.
— Simon…? — A agulha caiu ao se levantar.
Aproximei-me sem tirar as mãos dos bolsos por vergonha do braço ralado e de ver o sangue seco no cotovelo.
O olhar dela vagueou pelo meu rosto lenta e atentamente.
— O que aconteceu? — perguntou, com um tremor discreto na voz.
Evitei responder. Tirei a mochila e a deixei pendurada na cadeira. Sentei-me na beirada do sofá com os cadarços nas mãos; fingia ajustá-los.
Naquele momento, ela se aproximou e apoiou uma das mãos no braço da poltrona.
Tocou meu queixo e virou meu rosto para examinar os machucados.
As mãos dela cheiravam a sabão de cinza e ervas secas.
— Está acontecendo alguma coisa, Simon? — sussurrou, os olhos fixos nos meus.
Engoli seco. O relógio da parede marcava a passagem dos segundos num tic-tac incessante que batia fundo na minha cabeça.
— Foi só uma queda. Um cara tropeçou na escada e caí junto. Só isso. — falei numa naturalidade que nem eu acreditava.
— Na escada da escola?
— É. — Desviei o rosto para o chão. — O piso tava escorregadio.
Respirou fundo, apertou o pano nas mãos e o colocou sobre o braço da poltrona. Olhou fixamente para o noticiário na televisão por alguns segundos, antes de voltar a falar:
— Você devia cuidar mais por onde anda, meu filho. Tem voltado distraído demais.
— Eu sei. Só quero tomar um banho e deitar um pouco.
Ela ajeitou os óculos na ponta do nariz e encostou o corpo no encosto da poltrona.
— Tomar banho é o mínimo, mas deitar? Antes vai comer alguma coisa, nem que seja só o que sobrou do almoço.
Balancei a cabeça, fingindo concordar.
— Tô sem fome, vó.
— Ah, claro. Os jovens de hoje vivem de drama. Já vi isso antes, sabia? Seu avô fazia a mesma cara quando queria esconder alguma besteira.
Revirei os olhos e tentei desviar do assunto.
— Não tem besteira nenhuma. Só quero descansar, tá?
Ela levantou devagar, ajeitando a manta no sofá.
— Tá bom. — murmurou, com um tom que não convencia ninguém. — Mas se esse descanso for pra esconder problema, melhor confessar logo, que eu ainda sei usar a colher de pau.
— Vó… — Sorri. — Eu juro, tá tudo bem.
Ela deu um leve tapinha no meu ombro ao passar por mim.
— Tá bom. — murmurou, desconfiada. — Tua mãe ligou mais cedo. Disse que vai passar a noite no hospital de novo, parece que entrou mais gente no pronto-socorro.
— Como sempre. — disse, ajeitando o tênis com a ponta do pé. — Isso não é novidade.
— Enfermeira não tem descanso, meu filho. Ainda mais do jeito que esse país anda. Disse também que passou no quarto da tua irmã antes de entrar no plantão. A médica acha que ela tá reagindo melhor. Movimentou um pouco a mão, coisa pequena, mas é sinal.
Um nó se formou no fundo da minha garganta.
— Isso é bom.
Ela assentiu, mas sem sorriso.
— É, bom… Agora só falta você não se desmontar no meio do caminho. — Sua voz recuperou o humor, ainda que com um peso guardado atrás das palavras. — Vai pro banho, antes que eu te bote debaixo do chuveiro à força.
— Haha, belê.
— E vê se come alguma coisa depois. — Andou em direção à cozinha, mas continuou falando: — Tua mãe se preocupa demais com vocês.
Esbocei um sorriso tímido e agradecido.
A atmosfera da casa esquentou naquele instante, embora não fosse pela temperatura, e sim pelo modo como ela transformava seu cuidado em brincadeira — um disfarce tão convincente quanto o meu.
O som da TV preencheu o espaço quando ela se afastou.
Mesmo se eu já estivesse a caminho do corredor, algo na voz da repórter me fez parar no meio da sala.
A imagem mostrava a fachada de uma escola coberta por fitas amarelas, uma poça escura iluminada por luzes piscantes e o chão pontilhado pelas marcas de sangue.
— Quarenta mortos em um ataque brutal na escola de Boston. — informava. — Testemunhas afirmam que o aluno responsável não portava nenhuma arma. A Unidade Expedicionária de Caça assumiu o controle da investigação após sinais de natureza anômala serem identificados na cena.
O controle remoto estava sobre o sofá. Toquei nele sem querer mudar o canal.
O volume do noticiário aumentou tanto que se tornou um zumbido difícil de ignorar.
A câmera mostrava corpos cobertos por lonas e pais impedidos de entrar. Um deles gritava o nome de alguém.
Minha avó, da cozinha, falou:
— Simon, quer que eu esquente alguma coisa?
— … já vou. — Minha voz saiu arrastada.
As mesmas palavras giravam em um ciclo que não se rompia na minha mente: aluno, massacre, sobrenatural, intervenção.
A repórter falava de um estudante que perdeu o controle. Ninguém sabia como ele fez aquilo, mas todos sabiam o que ele fez.
Minhas mãos se fecharam sem que eu percebesse. Senti as unhas pressionando a pele.
Pisquei para cortar a cena, mas ela ficou gravada. Havia um corpo pequeno coberto por um lençol branco e o número quarenta repetido por baixo da legenda vermelha.
— Nenhuma identidade foi divulgada até o momento.
O rosto de Henry passou pela minha cabeça. Em seguida, o de David.
Lembrei-me do círculo de alunos, dos risos, das câmeras…
Uma ideia rasgou o abismo entre quem eu sou e quem eu não queria ser. Se um garoto foi capaz de matar quarenta pessoas sem encostar em nenhum objeto, o que restava dentro de alguém para fazer isso? Que tipo de coisa nasceria dentro de uma pessoa para fazê-la agir assim?
O rosto dele foi imaginado por mim. O que se passou pela sua mente antes de tudo acontecer. Se o medo foi sentido por ele. Se ficou com raiva. Ou, quem sabe, ele simplesmente ficou cansado de segurar tudo e, de repente, parou de segurar.
Pensei nisso e senti uma coisa incômoda, um tipo de ruído interno que me corroía de dentro.
A palavra massacre não soava absurda, só próxima demais.
— Simon? — A voz da minha avó voltou, mas distante e abafada.
Assenti, mesmo que ela não pudesse ver.
Com os tons frios da tragédia ainda brilhando na TV, meu olhar já não estava mais nela. Estava em minhas mãos. Elas tremiam. Não estavam trêmulas pelo medo, mas de algo que eu não queria nomear.
Enfim, desliguei-a. O farfalhar da panela na cozinha, o tique-taque do relógio; o mundo retomava seu ritmo como se nada tivesse acontecido.
Porém, dentro de mim, um sentimento estranho tomou conta aos poucos, quente e inquietante. Uma fagulha tão ínfima que mal se percebia, mas que queimava em um lugar do qual sequer eu sabia da existência.

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