Por um segundo, tudo dentro de mim parou.

    Apertei o punho em torno da agulha e coloquei-a no bolso. Uma multidão irrompeu pelas portas das salas e correu em direção à saída. A mistura de passos, mochilas aos choques e vozes em alvoroço formou um ruído denso equivalente a uma maré furiosa.

    Deixei-me levar pelo fluxo de pessoas, sem saber se fugia do que estava lá fora ou do que ainda tentava nascer dentro de mim.

    Fui empurrado em direção aos portões pelo calor do pânico.

    Cortando os edifícios em pedaços e partindo postes de luz, uma criatura titânica rasgava a rua à medida que se aproximava.

    Apanhado de surpresa, não sabia se estava apenas enganado ou se aquilo era mesmo real. Tudo à minha volta vibrava. Perto de mim, ouvi um estalo de vidro e, ainda assim, a rapidez dos meus pensamentos superou a do meu corpo.

    “De onde aquilo saiu?”

    Um garoto se chocou contra mim e continuou em sua corrida após fazer cair um caderno no chão. 

    — Me desculpe!

    Não tinha como ajudá-lo. As páginas foram levadas pelo vento em um misto de números e rabiscos, pedaços de normalidade que foram pisoteados. 

    Por cada passo que eu dava, mais forte batia meu coração no ritmo da destruição.

    “Veio daquele lugar…?”

    A lembrança atravessou minha mente como um lampejo. Não um simples pensamento, mas uma certeza crua empurrando-se para fora.

    Voltei para a noite anterior.

    Tinha algo do outro lado naquela rachadura do prédio. Vi o contorno de um corpo, fingi que era um sem-teto tentando se esconder do frio, talvez drogado, mas agora… tudo encaixava.

    O Mephisto não tinha surgido do nada. Nenhuma coisa viva surge assim. Tudo tem um início, mesmo aquilo que não deveria existir.

    Algo estava sendo incubado ali e se alimentava do descuido daqueles que nunca olhavam adequadamente para o ambiente ao seu redor. À margem, respirava ódio até se transformar em algo incontrolável.

    E se o problema não fosse o monstro em si, mas o quanto permitimos que o mundo apodreça antes que algo finalmente exploda?

    A ideia de que essa criatura poderia ter surgido por descuido e negligência causou uma estranha sensação de culpa em mim.

    De certa forma, todos nós participamos disso, certo? Estamos todos culpados por fingir não ver o que existe nas sombras até que o desconforto retorne ainda maior e mais voraz.

    O barulho de ferro se partindo cortou meu raciocínio. Um pedaço do telhado caiu a poucos metros. Alguém passou arrastando o braço no meu ombro.

    — Sai daqui, porra! — berrou.

    A rua foi transformada num campo de batalha pela trovoada das colisões de carros sem rumo, estilhaços de vitrines e um som desordenado de sirenes. Todos fugiam em todas as direções na esperança de escapar do perigo.

    A U.E.C viria, mas sempre tarde demais. Enquanto isso, muitos iriam morrer.

    Por um instante, considerei ir embora. Abandonar a situação teria sido uma atitude descomplicada. Seria fácil desaparecer no e fazer de conta que aquilo não era problema meu. 

    Procurar um abrigo seguro e esperar por eles. Viver. Sobreviver. Manter essa ideia pequena e íntima, sem manchar mais nada.

    Ainda assim, um comportamento diferente surgiu diante da raiva e do medo. Caso todos optassem pela mesma alternativa, os prejudicados não receberiam socorro. 

    Não era heroísmo, era só ser útil. 

    A diferença entre alguém viver ou morrer poderia depender de um gesto prático. 

    Claro que isso não mudaria o mundo, e nem era essa a intenção, mas era possível salvar uma vida abrindo um corredor ou cobrindo os feridos até que os agentes capazes de neutralizar a ameaça chegassem.

    Lyra veio à mente. 

    — Todo mundo fala em ser bom, em fazer o certo, mas a bondade de verdade exige perder alguma coisa.

    O meu instinto de fuga esmoreceu, então corri na direção daqueles que tentavam proteger-se atrás de carros capotados. 

    Nunca pensei que conseguiria derrotar o monstro, nem que um único gesto mudaria o curso daquela tarde, mas certamente não seria um dos espectadores. 

    Desviei-me dos cacos que caíam, dos vidros espalhados e do cheiro intenso a cinzas e metal ardido nas minhas narinas. Um poste de iluminação caiu com um estrondo agudo, seguido de gritos ao longo da rua. 

    Um grupo de estudantes amontoou-se atrás de um carro como se o capô amassado fosse um escudo. Vi um deles enxugar um corte na perna com um lenço molhado; outro tremia agarrado ao celular na esperança de que este fosse um bálsamo mágico.

    — Ei, me escutem! — Abaixei o corpo, tentando não expor a cabeça. — Tem um beco ali perto, atrás da padaria. É mais fechado, dá pra se esconder.

    Um fio de sangue escorria do joelho daquela garota.

    — Consegue ficar de pé? — perguntei, passando o braço por baixo do dela.

    O seu corpo estava fraco, mas ela assentiu de forma rápida. O garoto que estava com o celular apressou-se ao colocá-lo no bolso.

    — Eu ajudo.

    Apoiando a menina com seus braços ao redor das nossas nucas, avançamos com os pés arrastados pelo chão coberto de destroços. A vibração sacudiu todo o meu corpo quando, a poucos metros de distância, um pneu estourou. Segurei-me com força.

    — Rápido.

    Chegamos, finalmente, à entrada do beco. Encostei a garota na parede e, com cuidado, verifiquei o ferimento. Havia menos sangramento, mas ainda assim o sangue não parava de fluir. Peguei o lenço e o amarrei acima do corte para improvisar um torniquete.

    — A-ah… — gemeu de dor.

    — Aprendi isso com a minha mãe. Isso vai segurar um pouco. Agora cês ficam aqui, vou atrás de mais gente.

    O garoto assentiu, tentando acalmá-la com as mãos trêmulas.

    Saí do beco fervendo de adrenalina. A fumaça e as buzinas encheram os ares, mas o vento não conseguia levar o sangue que manchava o chão. 

    O quarteirão ainda estava tomado pelo caos, mas, mesmo assim, algo me puxou para frente. 

    Pouco adiante, entre as ruínas de uma construção desabada, vi Henry arrastando-se para longe, e apesar de tudo, corri para resgatá-lo.

    Tábuas quebradas cercavam o corpo dele e prensavam sua perna contra o concreto. Perto dali, um tubo de gás em vazamento exalava um som fino e contínuo, agravado pelo cheiro forte de combustível cutucando a garganta. 

    — Ei. — Ajoelhei-me próximo ao homem. — Consegue mexer os braços?

    — Minha… perna… — balbuciou.

    — Relaxa. — Pus as mãos no entulho queimante. — Vamos lá.

    Puxei com força até que o bloco cedeu um pouco. 

    — Uuughh!!

    Aumentava o som do vazamento, e um fio de gás roçava o rosto dele. O seu peito foi batido de forma irregular com uma tosse.

    — Respira devagar, tá me ouvindo? Eu… vou te tirar daqui. — Ajustei o corpo, forçando os braços até os músculos gritarem. — Bora, caramba! 

    O concreto tremeu levemente, mas permaneceu onde estava, enterrado na lama e no sangue.

    — Tá queimando… 

    Olhei ao redor. Não havia nenhuma equipe da U.E.C., tampouco socorro. Era só gente que corria, gritava e tropeçava nas esquinas. O mundo desmoronava ao meu redor, comigo de joelhos, na tentativa de salvar alguém que o destino já pretendia tirar.

    — Escuta, eu… — Minha voz falhou. — Vou tentar te puxar, só mais uma vez!

    O seu olhar transmitia tudo o que suas palavras não diziam, ao me encarar trêmulo. Eu sabia muito bem o que aquele olhar dela estava dizendo. Medo, raiva e um pedido silencioso para não deixá-lo sozinho eram sentimentos que se entrelaçavam e formavam um turbilhão de emoções intensas.

    Apertei o corpo contra o dele e o puxei forte, então, ouvi um estalo alto de algo se partindo. 

    — Aaaahhhhhhh!!

    O grito que ele deu foi como uma flecha que me atingiu em cheio. 

    Recuei, mas sua perna ficou esmagada sob o bloco. A parte restante do corpo veio mole e escorria vida.

    — Merda!

    O tórax de Henry se elevava gradualmente sem que fosse possível perceber. Toquei seu ombro, mas não sabia o que dizer, e isso me deixava em uma situação bastante complicada. 

    O som do gás continuava a soar, enquanto o ar se tornava progressivamente mais denso e quente.

    Ele moveu os lábios. Tentava articular algo. 

    Aproximei o ouvido. 

    — Só… só me tira daqui… — Sua voz aos poucos se esvaziava.

    Uma incisão extensa percorria o ventre, extensa demais para qualquer possibilidade. 

    — Fica comigo, porra!

    — Dói… — tossiu, cuspindo sangue quente que me acertou o rosto. — Tira… tira isso de mim…!

    Empurrei o entulho com o pé, mas um pedaço de concreto prendeu sua perna até o joelho. Fiz o possível para afastar a pedra, com pouco sucesso. 

    Sua carne encontrava-se estilhaçada, com o osso em evidência.

    — Só mais um empurrão…!

    O chiado do gás ficou mais alto. Um estalo metálico ecoou de dentro do cano. 

    — Simon!

    Lyra gritou-me ao longe.

    Arregalei os olhos, e naquele instante eu percebi que tudo ia explodir.

    — Vamos… — Tentei puxá-lo mais uma vez. — And…

    Sem que eu pudesse tomar qualquer atitude, fui puxado pelo carinho para longe.

    Perdi o chão, o mundo virou fumaça. No outro instante, uma explosão foi seguida por tudo sendo rasgado. 

    Fui jogado contra a parede. Minha pele ardia; meu corpo latejava. O som ficou muito alto, abafado e distante. Por um segundo, achei que tinha morrido.

    Ao abrir os olhos, com a visão ainda embaralhada, vi que Lyra estava ajoelhada ao meu lado, suja de fuligem.

    — Tá vivo… por pouco. Que porra foi essa, Simon? 

    Busquei dizer alguma coisa, contudo, unicamente o gosto amargo que me habitava a boca retrucou. Eu vi o lugar onde o homem estava com os escombros ao redor, sem nada além de brasas e um contorno humano carbonizado.

    Minhas mãos tremiam por estarem ainda estavam sujas do sangue dele. Me corroía a sensação de que podia ter feito mais a tempo.

    — Ele já tava morto antes de explodir. — Lyra apoiou o braço no meu ombro. — Não tinha como salvar alguém que já tinha ido.

    O olhar dela tentava me ancorar à realidade, mas, por dentro, tudo afundava, e eu não conseguia me livrar daquela sensação de vazio e desespero. O rosto dele era por mim visto — e, a despeito disso, estava convencido de que ele poderia ter sido retirado dali.

    Olhei em volta. A via serpenteava entre as labaredas, destroços com corpos caídos e gritos retumbando no ar. Na extremidade da avenida, o Mephisto vinha, a qual tudo o que ele tocava era destruído.

    Lyra direcionou meu rosto com a ponta dos dedos no meu queixo para seus olhos outra vez. 

    — O outro também não conseguiu, mas a gente ainda tem quem salvar. Vem!

    Pelo menos por um instante, eu fiquei sem conseguir me mover, a batida do coração em um ritmo diferente fez com que me sentisse como se o meu corpo estivesse pedindo para não sair do lugar. No entanto, tinha consciência de que, se não se levantasse naquele momento, provavelmente não o faria nunca mais.

    — Tá… tá bom.

    Nossos passos repercutiram o vazio de uma promessa de desabamento naquele chão. Desviamos de blocos de concreto fumegantes, fios elétricos estourados no ar de um lado para o outro; meu único pensamento era continuar correndo, até que a voz de Lyra se fizesse ouvir logo atrás de mim.

    — Esquerda! — gritou.

    Nós viramos a esquina e, a partir de então, o nosso destino era incerto, visto que havia um edifício parcialmente destruído, sustentado por uma viga quebrada em meio a paredes cobertas por manchas de fuligem. 

    — Não dá, Lyra. Isso vai cair a qualquer hora!

    Mesmo assim, a garota foi na frente para abrir caminho entre os escombros, exatamente quando ouvi o barulho. Um chiado estridente seguida da rápida cedência de algo. Olhei para cima e vi um tanque de combustível solto no que restava do segundo andar.

    — Sai!

    Ela refletivamente olhou para trás, mas, naquele milésimo de segundo, um estrondo ensurdecedor tomou conta como um jato de fogo após o tanque atingir o chão em alta velocidade. 

    Pedaços de metal afiados como navalhas se espalharam em todas as direções. Um deles era provavelmente um pedaço de válvula retorcida e incandescente, que a atingiu em cheio.

    O impacto resultou na abertura do lado esquerdo do corpo dela. Não foi um corte limpo, mas uma ruptura brutal por onde o metal atravessou o tórax e saiu pelas costas, levando consigo carne, sangue e pedaços do colete. 

    O som foi estridente e horrendo, como tecido rasgando ao se quebrar contra osso. O sangue respingou no meu corpo antes do seu corpo se curvar para trás para então desabar de lado.

    O seu olhar cruzou-se com o meu por uma fração de segundo, antes de se desviar, ela sorriu, igual da última vez, só para me dizer que estava tudo bem.

    O tempo parecia não avançar, era difícil de acreditar que aquilo estava acontecendo.

    Ali, o calor me cercava, a pele ardia, e eu tinha a certeza de que, por mais que eu corresse, tudo sempre acabaria rápido demais para entender ou aceitar.

    De repente, ouvi uma criança a gritar. Foi um momento de realismo cruel, que me fez lembrar quão vivas ainda havia pessoas naquele lugar. Pessoas com medo, perdidas e desesperadas por se agarrarem ao que restava do seu mundo, à medida que este desmoronava. 

    Eu já não sabia quanto tempo estava correndo. Minhas pernas doíam como se o chão tivesse cravado ganchos nelas, mas não havia espaço para parar.

    Foi estranho perceber como alguém tão efêmero, tão recém-chegado à minha vida, podia ter deixado algo tão fundo.

    Estava com fome, e a sede secava meu raciocínio. Tudo em mim dizia para desistir, mas era curioso como o medo e o dever coexistiam. Um nutria o outro. Quanto mais medo eu sentia, mais entendia que não podia parar, porque alguém, em algum lugar daquele lugar de sofrimento, dependia de alguém. 

    Talvez não soubessem que eu existia, nem sobrevivessem para lembrar, mas… eu precisava ir.

    Então, segui. 

    Se houvesse uma voz, mesmo que fosse só uma, eu não poderia parar.

    Pude ver uma menina encolhida atrás de uma pilha de entulho de joelhos arranhados. O seu vestido estava rasgado, enlameado e manchado de sangue. Entre os braços tremiam os dedos que seguravam um gato minúsculo, uma bola de pelos cinzentos que miava baixinho, assustado.

    Com cautela, eu me aproximei, na esperança de não assustá-la ainda mais. Os olhos dela me seguiam o tempo todo, tensos e desconfiados, de um jeito que parecia ser um sinal de que ela me via como aquela coisa.

    — Ei, tá tudo bem agora. Eu tô aqui.

    Ela forçou um aceno, ao mesmo tempo em que apertava o gato contra o peito. A pele dela brilhava de suor, e seu rosto, pálido demais, mostrava os tremores das pernas. 

    Devia estar ali há horas, sozinha.

    Mostrei um sorriso pequeno, sem força, mas sincero o bastante para tentar devolver um pouco de humanidade àquela cena. 

    — Você cuidou bem dele. — Apontei para o gato. — Ele vai ficar bem.

    Um estalo alto soou distante.

    O Mephisto estava vindo.

    Entre o véu de fumaça, estava aquela coisa monstruosa. 

    A menina começou a chorar. Eu me posicionei à frente dela, e estendi o braço no intuito de transmitir mais firmeza.

    Levei a outra mão ao bolso da calça, fechei os dedos sobre a agulha e a retirei.

    Firmei os pés. A garota soluçava atrás de mim, com o gato escondido em seus braços.

    Inspirei profundamente. Não tinha tempo de pensar nem de hesitar.

    A extremidade da agulha cintilou sob a luminosidade alaranjada das labaredas. E, por um efêmero minuto, antes que o mundo se submeter a uma convulsão de movimento, eu me vi incapaz de conceber qualquer pensamento, a não ser uma frase que se repetia na minha mente:

    “Eu tô cansado, mas não tenho medo.”

    — Corajoso. — falou alguém atrás de mim. — Enfrentar um Mephisto com uma agulha? Isso é novo pra mim, mas ainda assim… bonito de ver!

    Virei devagar.

    Ele era alto, imponente, com cabelos loiros reluzindo sob a luz das chamas. Os olhos, de um vermelho intenso, brilhavam como faróis em meio ao caos. Vestia o uniforme da U.E.C., impecável apesar da sujeira do campo.

    — Mikael….

    Meu coração acelerou. 

    — Devia guardar isso pra costurar ferimentos, não monstros. — Apontou para minha mão, onde ainda segurava a agulha.

    — É… o que eu tinha. — respondi, ofegante.

    — O que você tinha foi suficiente pra segurar o tempo. — Sorriu. — Isso já salvou mais vidas do que imagina.

    Atrás dele, duas figuras emergiram da neblina. 

    — Desculpa o atraso. — Ela limpava os a bainha de sua arma enquanto olhava o entorno. — O caminho tava um inferno. Literalmente.

     — A U.E.C. devia pagar hora extra pra quem entra nesse tipo de situação. — O ruivo comentou.

    — Ou terapia!

    Uma resposta não foi dada por Mikael. Todo o seu foco estava na criatura.

    — Escuta, leva a criança pra antiga estação de metrô. — disse sem desviar a atenção. — A Raven e os Médicos de Campo estão abrigando os feridos lá. Diz que fui eu quem mandou. Pode ser?

    Mesmo sem olhar para mim, assenti. Não precisei dizer nada, eu acho que ela tinha entendido antes mesmo que eu falasse. Com muito cuidado, estendi a mão e ela aceitou, os dedos pequenos e frios envolvendo os meus.

    — Vamos.

    — Meow. — O gato miou.

    — Você também vem com a gente.

    A antiga estação de metrô ficava a poucos quarteirões de distância, envolta em fumaça e barulho. Conforme nos aproximávamos, o panorama caótico se tornava mais evidente à medida que vozes se sobrepunham, ordens eram bradadas e luzes piscavam em meio à poeira. Um caminhão da U.E.C. bloqueava parte da entrada; suas portas estavam abertas com caixas de suprimentos e macas manchadas de sangue visíveis em seu interior.

    A visão me atingiu de uma só vez quando eu adentrei o local. Médicos de campo circulavam rapidamente de roupas manchadas pela sujeira e com as mãos cobertas por luvas enegrecidas. Com o que tinham à mão, alguns improvisavam curativos, enquanto outros aplicavam injeções naqueles que mal se mantinham conscientes. O odor que se impregnava no ar era uma combinação agridoce de sangue fresco, álcool e fumaça.

    — Luna!

    Entre a multidão, vi uma mulher a abrir caminho na nossa direção. Estava com os olhos arregalados em lágrimas secas e o rosto coberto de fuligem. Tropeçou numa maca, encostou-se a um pilar sem deixar de gritar pelo mesmo nome, embora agora com menos força, mas ainda com o mesmo desespero.

    A menina ao meu lado olhou para ela.

    — Mãe?

    A mulher derrubou uma bandeja de metal para o chão e ignorou os protestos de uma enfermeira antes de abraçá-la como se esta fosse escapar-lhe. 

    O gato, que estava preso entre ambas, soltou um miado abafado.

    Tremia e chorava alto. Passou os dedos pelo cabelo da criança até ter a certeza que ela ainda estava ali.

    — Você… você fugiu, Luna… — Sua voz wstava presa entre o alívio e a raiva. — Eu disse pra não sair dali…

    A criança soluçou contra o peito da mãe.

    — O gatinho ficou lá… eu não podia deixar ele lá…

    Esta fechou os olhos, exausta, e beijou o sua cabeça.

    — Meu Deus… — respirou fundo, e só então me notou.

    Olhou para mim de uma forma que me fez pensar que estava a tentar descobrir se era real. Ao ver a sujidade nas minhas roupas e o sangue seco nos meus braços, a sua expressão mudou de desespero para uma gratidão silenciosamente expressada.

    — Foi você quem trouxe ela?

    Assenti.

    Ela apertou os lábios, tentando conter o choro.

    — Luna fugiu pra resgatar esse gato. — Fez um gesto pequeno com a cabeça em direção ao animal aninhado no colo da menina. — Eu achei que tinha perdido minha filha… pra sempre. Então, obrigada. De verdade.

    Não consegui encontrar palavras para responder. O meu fracasso em salvar o que estava lá fora era algo que nenhuma palavra conseguia compensar. Limitei-me a abanar a cabeça e a olhar para o chão, onde o sangue escorria por baixo das macas num rastro escuro.

    — Com licença.

    Virei-me para a pessoa. Ela estava parada a poucos metros, encostada em uma das colunas da estação.

    Vestia o uniforme padrão da U.E.C, tinha a pele pálida que refletia a claridade fria das lâmpadas, e o cabelo, liso e escuro, descia pelos ombros como um traço de tinta em meio à poeira.

    — Quero falar contigo por um momento.

    Dei alguns passos na direção dela, ainda sem entender o motivo de estar sendo chamado

    — Foi você quem trouxe a criança, e também quem improvisou o torniquete na garota ferida. Ela me contou. Disse que você apareceu do nada, ajudou e sumiu antes que chegássemos. — Sua testa se contraiu por um instante, mas o rosto logo voltou à rigidez anterior. — A maioria corre quando o fogo chega perto. Você correu para dentro.

    — Eu só… — As palavras ficaram presas na minha garganta. Respirei fundo e tentei pensar em algo que não soasse como uma desculpa. — Eu só fiz o que achei que devia.

    — Isso costuma ser o que todos dizem antes de perceberem o quanto custa.

    Deu um passo mais próximo.

    — Aquele ser… o Mephisto… deixou muita coisa pra trás. Gente morta. Gente que vai morrer nos próximos minutos. — Respirou fundo com o olhar desviado, talvez para esconder algo. — E no meio disso tudo, um estudante fez o que alguns agentes experientes hesitam em fazer.

    Pensei que fosse ironia, mas o seu olhar não deixava margem para dúvidas. 

    Ela deu outro meio passo à frente, o suficiente para que a luz fria que pendia do teto destacasse os fios escuros grudados à sua testa. Sua mão pousou até meu cabelo, passando de leve pelos meus fios escuros desalinhados.

    — Se não fosse o que fez, aquela garota não estaria viva, só… não espere que isso torne as coisas mais fáceis.

    Fiquei em silêncio com o toque dela ainda preso no meu couro.

    — A bondade é uma dessas invenções humanas que a gente insiste em carregar. Bonita no papel, mas suja demais quando sangra. Heroísmo é outra palavra dessas. Costuma morrer junto com quem tenta provar que ela ainda vale alguma coisa. , — Desprendeu o palmo da sua mão da minha cabeça. — Mesmo assim… fico aliviada por ainda existirem os que tentam.

    O olhar se perdeu nos feridos, nas macas, nos vultos que gemiam sob o clarão intermitente das lanternas.

    — Humanos… sempre tentando salvar o que o próprio mundo decidiu quebrar. — murmurou.

    Ela se afastou sem mais uma outra palavra. 

    Percorri o espaço entre as macas, evitando o contacto com os Medido de Campos e os cadáveres cobertos por lençóis. No canto mais silencioso do abrigo, vi uma mão enrugada a segurar outra.

    — Vó… 

    Ela estava deitada, o seu rosto tinha um tom pálido. Ao lado dela, minha mãe, ainda jaleco, virou-se ao ouvir minha voz.

    — Simon… — O alívio quebrou o tom profissional. — Graças a Deus…

    Eu me ajoelhei, sem saber por onde começar. O cheiro de antisséptico tentava, em vão, encobrir o odor da morte. 

    — Ela vai ficar bem. — Colocou uma mão sobre o meu ombro.

    Mesmo naquele estado, o sorriso que esboçou fez com que eu me sentisse aliviado.

    — Mãe, onde Lily tá?

    O meu estômago ficou pesado só com ela a desviar o olhar por um instante.

    A minha avó ajeitou a manta sobre o colo, evitando, ao fazê-lo, encarar qualquer um de nós.

    — Ela tá viva, meu filho. É isso que importa.

    — Viva onde? — insisti.

    O seus olhos ganharam uma tonalidade encarnada, que não se deveu apenas ao esgotamento. 

    — Os agentes levaram ela pra outro setor. Disseram que era por causa das condições dela, que precisava de observação especial.

    — Que condições, mãe?

    — Eles… não quiseram explicar. Só garantiram que ela tá segura… e que não podemos visitá-la ainda.

    O “ainda” soou pior do que qualquer outra coisa negativa.

    — Eu tô tentando descobrir mais. Prometo.

    Ajeitou a prancheta sobre a mesa de forma mais dissimulada do que organizada. A forma apressada e descuidada como prendia o cabelo traía o quanto os últimos dias tinham corroído a pouca paciência que lhe restava. A minha mãe sempre foi prática e metódica, e tinha um instinto de resolver tudo antes que o mundo percebesse que ela também podia desabar.

    — Simon… — começou, mas travou no meio. O seu hábito antigo de procurar a palavra certa era tocar no colar que usava ao pescoço. — Eu vi o vídeo.

    O ar se fechou dentro de mim. 

    — Eu só quero entender o que aconteceu. Não pra te punir, nem nada. Eu sei que você tem passado por muita coisa desde… — A frase ficou incompleta, talvez porque desde Lily fosse um lugar que nenhum de nós soubesse atravessar. — Mas, Simon, aquilo foi grave.

    — Não quero falar sobre isso. Já deu.

    — Você acha que pode ignorar as coisas até que elas parem de doer. Eu entendo, também fazia isso na sua idade. Mas o mundo não funciona assim.

    — Eu não tô ignorando, só não quero falar sobre isso.

    Ela mordeu o lábio inferior, e pela primeira vez, o controle dela se desfez. 

    — Eu sei. Mas me deixa ajudar, por favor. 

    Até pensei em responder só para dizer que eu me sentia exausto e que os outros me encaravam como se eu fosse o culpado pela situação. Contar que sentia raiva e vergonha, mas também um vazio interior. 

    Acabei por não o fazer.

    — Eu só não quero te perder também.

    As palavras tocaram num ponto demasiado fundo, uma zona onde nem eu gostava de ir.

    Ao tentar encará-la, vi que já estava de costas, a reorganizar frascos e papéis.

    Esse era o jeito dela de lidar com o amor. Transformar em tarefa.

    As suas mãos tremiam discretamente, agarrando um peso que já não podia ser escondido. As horas eram marcadas com uma quase insólita regularidade pelo relógio no seu pulso, e ela era lembrada em constante consciência de que horas que nunca lhe pertenceram estavam a ser perseguidas.

    — Eu sei que não estive presente o suficiente — Não era apenas culpa, mas também vergonha que estava no tom da sua voz. —, me escondi atrás do trabalho, fingindo que era por vocês, só que, no fundo, era por mim. Era mais fácil lidar com plantões do que com o que tava acontecendo dentro de casa.

    Quando olhou para mim, vi, ainda que por um breve instante, uma mulher exausta, não a figura distante que eu reconhecia. 

    — Quando seu pai foi embora, eu tentei compensar ficando ocupada. — Ela riu, um som breve e amargo. — Que piada, né? Achar que dá pra consertar uma família trabalhando até tarde.

    Não sentia ódio, apenas uma curiosidade intrigante, por entre a minha alma, ao estar diante de uma revelação que não consegui escutar no momento certo.

    — Eu devia ter estado lá pra você. Devia ter feito algo, só não sabia o que fazer, Simon. Você sempre foi forte demais pra sua idade, e por causa disso… deixei que isso me convencesse de que você não precisava de mim. — Esfregou o rosto na tentativa de apagar anos de omissão com as próprias mãos. — Às vezes penso que, se eu tivesse parado por um minuto, só um, pra te ouvir de verdade, talvez as coisas fossem diferentes.

    A nossa relação era marcada pelo silêncio e pela estranheza de dois mundos que, embora ligados pelo sangue, orbitavam em direções opostas. 

    — Tô tentando ser melhor, mesmo que já pareça tarde demais.

    Olhava-me com os olhos marejados, esperando qualquer palavra.

    O rosto dela parecia mais pequeno e frágil do que me lembrava. O mesmo rosto que, quando criança, eu procurava entre a multidão, acreditando que era um porto seguro contra a ausência. Nas suas rugas, vi o traço de quem lutou calado por demasiado tempo, convencido de que amar era o mesmo que resistir.

    A vida tinha sido difícil para ela, eu compreendia. Ninguém mostra a uma mãe como evitar erros; apenas esperam que ela acerte sempre. Apesar disso, lá estava ela, na tentativa de se redimir diante do filho e se tornar a pessoa que quase perdeu a chance de ser.

    Isso era admirável, essa teimosia em continuar buscando uma solução, mesmo quando tudo aparentava ser irremediável. 

    Uma coragem simples, porém imensa.

    Então, dei um passo à frente. Confusa, ela esperava mais uma resposta fria, mas eu só fiz o que o coração me mandou, que foi abraçá-la.

    Não disse nada, porque, por vezes, as palavras eram desnecessárias. O corpo dela tremia e os soluços abafados contra o meu ombro mostravam a sua aflição. Percebi quão poderosa a bondade podia ser quando vem daquilo que temos em abundância, em vez daquilo de que nos falta.

    Nesse abraço transcendia o perdão; nossas almas cansadas reconheceram-se mutuamente e, apesar de tudo, simplesmente existiram. Talvez amar alguém significasse compreender que, por muito magoado que esteja, pode optar por ser gentil.

    Ao afastarmo-nos, ainda com o resquício daquele silêncio a respirar por si só, vi a minha avó ao fundo. Deu um piscar de olhos à minha mãe. 

    — Alguém viu uma agulha de campo? — perguntou um médico, revirando uma bandeja metálica sobre uma das macas. — Precisamos dela agora.

    A palavra “agulha” acendeu algo dentro de mim. Quase instintivamente, minha mão foi ao bolso e a tirei.

    — Vó… isso aqui… — Levantei o objeto, sem saber se devia devolvê-lo ou deixá-lo. — Onde estava ainda vai querer

    — Então estava contigo? — Procurei por isso o dia todo. Jurava que tinha sumido pra sempre.

    — Eu… achei no chão. Pensei que fosse uma daquelas descartadas, sabe? Ia jogar fora, mas… fiquei com medo de errar e acabar jogando algo importante.

    Levantou uma sobrancelha, e o seu olhar denegria qualquer desculpa mal formulada. 

    — Tudo bem. Pode entregar pro médico, então. Ele vai saber o que fazer com isso.

    O médico estava debruçado sobre uma maca onde se encontrava um indivíduo com um ferimento no ombro, tentando estancar o sangramento. Ao aproximar-me, ele levantou o olhar, suado e com as luvas manchadas de vermelho.

    — Trouxe isso — falei, estendendo a agulha.

    Quando pegou da minha mão, primeiro avaliou.

    — Hm. Não é exatamente o que eu tava procurando, mas talvez sirva. — Guardou no bolso do jaleco e se virou para o paciente. — Obrigado, garoto.

    O som metálico da bandeja ecoou quando ele retomou o trabalho. Ali fiquei plantado com o olhar perdido no movimento frenético à minha volta dos corpos que iam e vinham.

    No meio desse caos controlado, uma voz familiar cortou o ambiente.

    — E aí, pessoal!

    Logo à frente, vi Mikael com o uniforme chamuscado nas bordas e o sangue seco à altura da gola. Atrás dele vinham o ruivo e a garota com a sua katana.

    — Mephisto tá neutralizado, a cidade tá segura por agora.

    Como se todos esperassem a confirmação de que aquilo era real, um silêncio breve acompanhou esta frase. Logo depois, palmas foram ouvidas. “Conseguimos!” foi o grito que uma outra pessoa proferiu. O ambiente foi tomado por uma celebração espontânea, um alívio genuíno que se entrelaçou com a euforia quase culpada de quem sobreviveu.

    O garoto de cabelos vermelhos deixou escapar uma risada.

    — Finalmente um respiro, hein? — Caiu na cadeira. — Eu juro, se esse bicho levantasse de novo, eu ia pedir transferência pra área de faxina.

    A jovem que o acompanhava riu.

    — Faxina não tá parecendo uma má ideia, viu!

    Lá fora, o céu já começava a escurecer. As centelhas que antes consumiam o horizonte tornaram-se brasas distantes, tal como feridas difíceis de sarar. 

    Parecia que tudo tinha deixado de existir: a agitação, o medo, o sangue. 

    Tudo estava em silêncio.

    Olhei em redor, à procura de algo que fizesse sentido. A minha mãe conversava com um enfermeiro e a minha avó, exausta, mas com o mesmo tranquilizador olhar de sempre, sentava-se.

    Talvez o mundo nunca mais fosse o mesmo, mas, de algum modo estranho, também não queria que voltasse a ser.

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