Ele caminhou até a escotilha de saída do Kation. O ‘Espectro’ não era um mecha qualquer saído da linha de montagem. Era uma relíquia, um veterano, assim como ele. Um modelo de comando da classe ‘Assombração’, modificado para guerra furtiva e infiltração. Sua blindagem era mais leve, seus sistemas de camuflagem mais avançados, seus motores mais silenciosos. 

    As placas de metal cinza-escuro eram um mapa de sua carreira compartilhada: o arranhão profundo de uma lâmina de energia Quimeran em Cygnus X-1, as marcas de queimadura de plasma da campanha em Dione, a pintura nova cobrindo os amassados profundos e os reparos apressados onde garras monstruosas de alguma bio-arma da Coalizão haviam rasgado o metal perto da junta do ombro na última missão infernal na última missão em Ganimedes. 

    De fora, era uma máquina de guerra angular e letal,  um predador silencioso construído para caçar nas sombras. Por dentro, era seu santuário, seu casulo, o único lugar onde o universo fazia algum sentido, onde as ordens tinham um propósito claro e a execução era uma questão de habilidade e vontade. O único lugar onde ele não era uma aberração em suas memórias nubladas.

    A escotilha se abriu, revelando a vastidão do hangar principal da mega-nave Nasus. A nave, um colosso de quilômetros de comprimento, estava em órbita alta sobre o globo vermelho e enferrujado de Marte. 

    O hangar era uma catedral de metal, grande o suficiente para abrigar um regimento inteiro de mechas. O ar estava impregnado com o cheiro de metal quente, propelente e o suor de centenas de técnicos e pilotos. O som era uma sinfonia industrial: o grito de guindastes magnéticos, o zumbido de transportadores de carga e os anúncios metálicos que ecoavam pelos alto-falantes.

    Zeon ativou as botas de antigravidade de sua armadura. Com um leve zumbido, ele flutuou para fora da escotilha do Kation e desceu os dez metros até o chão do hangar, aterrissando com um baque suave que mal perturbou a poeira metálica no chão.

    Dois outros pilotos, já fora de seus mechas, se aproximaram. Seus rostos carregavam a mesma fadiga sombria que ele sentia. Eram os únicos outros membros da unidade DK-78B02 que haviam sobrevivido à carnificina recente. Os fantasmas do que aconteceu pairavam entre eles.

    “Capitão”, disse a primeira, uma mulher chamada Anya, sua voz, como sempre, calma e controlada, um contraponto à tensão que vibrava no ar. Sua armadura de reconhecimento era visivelmente mais leve e esguia que a de Zeon, uma cruzadora de Kation modelo de reconhecimento da classe ‘Vidente’, marcada com os símbolos desgastados de uma especialista em sensores e guerra eletrônica. 

    “Algum problema? Você demorou a sair”. Havia uma preocupação genuína sob a formalidade, uma preocupação que ele sabia que vinha de anos de parceria e de traumas compartilhados.

    “Apenas o bastardo do Hesperus sendo o cachorro que lambe as botas do Alto Comando”, respondeu Zeon, seu tom cortante, a raiva fervendo sob a superfície de sua disciplina. Ele não tinha energia para gentilezas. “Arrume suas coisas. Fomos reposicionados”.

    O segundo piloto, um jovem impetuoso chamado Jax, cujo mecha da classe ‘Martelo’ ainda cheirava a tinta nova, bufou. “Reposicionados? Mas a luta está em Io! Finalmente teríamos a chance de acertar as contas com aqueles desgraçados da Coalizão pelo que fizeram aos nossos dias atrás!”. A dor crua em sua voz era palpável, a fúria justa de um soldado que vira seus amigos serem abatidos.

    “Nossas novas ordens são Saturno”, disse Zeon friamente, observando atentamente a reação deles.

    Anya ergueu uma sobrancelha escura, seu rosto normalmente impassível se fechando em uma máscara de suspeita e cansaço amargo. “Saturno? O Pavilhão de Adel?”. Sua voz era baixa, incrédula. 

    “Nada acontece lá há duzentos anos. É uma missão de guarda glorificada, um posto de sentinela cerimonial. Eles estão tirando o que sobrou da melhor unidade de assalto da Terceira Frota da linha de frente… agora… para uma missão de guarda? Depois de tudo o que passamos? Depois do que perdemos? Não faz sentido nenhum, Zeon”. O uso do nome dele, não do título, era um sinal da gravidade que ela sentia, uma quebra rara no protocolo que sublinhava a sua profunda desconfiança.

    “Exatamente!”, Jax praticamente cuspiu as palavras, o desapontamento inicial azedando rapidamente em fúria impotente. Ele deu um passo à frente, seus punhos cerrados dentro das luvas de sua armadura. 

    “Nos colocando no banco? Depois do inferno que passamos em Ganimedes?! Depois de perdermos Roric, Lena e Kai?! Eles morreram por nada?! Íamos fazê-los pagar! Por quê?! O que fizemos de errado? Falhamos na missão?! É isso? Estão nos punindo por sobrevivermos?!”. A voz do jovem piloto tremeu na última pergunta, uma mistura volátil de raiva justa e uma súbita e terrível insegurança juvenil. 

    A dúvida torturante de que talvez eles tivessem falhado, que a morte de seus companheiros tivesse sido em vão, um erro tático pelo qual agora pagavam o preço com uma humilhação pública.

    “Controle-se, Jax”, disse Zeon, sua voz cortante como um chicote, mais dura do que pretendia, um escudo erguido não apenas contra a explosão do jovem, but contra a própria onda de emoção que ameaçava engolfá-lo. 

    Ver a dor deles espelhava a sua, e ele não podia permitir essa fraqueza. 

    “Nossas ordens não são um debate. O Alto Comando exige nossa presença em Saturno. A ordem é absoluta. Preparem-se para o salto em uma hora”. Ele fez sua voz soar final, inquestionável, o Capitão no comando, não o homem quebrado por dentro. 

    A máscara estava de volta no lugar, fria e impenetrável. Ele não podia se dar ao luxo de fraquejar agora, não na frente deles. A dúvida era um veneno, e ele não podia deixá-la infectar o que restava de sua unidade. Mas enquanto se afastava, a pergunta de Anya ecoava em sua própria mente: Não faz sentido. E essa falta de sentido cheirava a perigo.

    Ele não esperou por uma resposta, não podia arriscar ver a dor ou a raiva nos olhos de seus subordinados, pois poderia quebrar sua própria fachada. Virando-se abruptamente, ele caminhou em direção à sua própria escotilha nos alojamentos do hangar, seus passos pesados e deliberados. 

    Precisava de um momento sozinho, longe dos olhares acusadores, longe do peso de sua responsabilidade. Sentia o eco persistente do antigo pesadelo — algo correndo pelos corredores vermelhos — misturar-se insidiosamente com a dor crua e recente do que havia testemunhado e sofrido em Io dias atrás, ambos os fantasmas o atormentando, sussurrando dúvidas e medos. 

    A menção de Saturno, o lugar supostamente mais seguro e monótono de todo o sistema solar, pareceu, naquele contexto, uma piada particularmente cruel e sinistra do destino. Ou talvez, uma armadilha óbvia demais para ser ignorada.

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