Capítulo 83 - Reestruturação
O sol ainda não havia rompido totalmente a névoa quando Aedin entrou no grande salão da fortaleza. Os vitrais quebrados deixavam a luz entrar de forma irregular, projetando recortes pálidos sobre a mesa comprida de carvalho. Melissa caminhava ao lado dele, relatórios pressionados contra o peito.
Lá dentro, os nobres já os aguardavam junto de Eldric.
E não eram nobres comuns.
Eram veteranos.
Sobreviventes.
Os que sempre ficaram quando todos os outros fugiram.
Lord Valcir, ombros largos, cicatriz antiga atravessando o maxilar, levantou-se imediatamente ao ver Aedin.
Lady Avelor, que havia matado muitas bestas atraídas pelo cheiro de sangue com o próprio arco na muralha na noite anterior, assentiu com a cabeça, postura firme apesar do cansaço evidente.
Miran Dorwain, o mais jovem, mas com os olhos mais cansados, mantinha as mãos juntas sobre a mesa.
Aedin olhou cada um deles nos olhos.
— Obrigado por terem vindo — disse.
Ninguém ali estava descansado.
Ninguém fingia ser algo além de um ser humano cansado.
Melissa colocou os mapas sobre a mesa.
— Os distritos oeste e sul sofreram os maiores danos estruturais. — Sua voz era calma, prática, como sempre. — Casas destruídas, depósitos queimados, estradas parcialmente cedidas. A situação alimentar não é crítica agora, mas precisaremos garantir suprimentos até a colheita, e estamos ainda no início da primavera…
Um silêncio respeitoso se estabeleceu.
Valcir foi o primeiro a falar, direto, como sempre.
— As pessoas no meu território estão com medo, mas não pararam de ajudar. Nenhum camponês abandonou seu posto. Estão dispostos a reconstruir — disse com orgulho. — Mas precisam de direção.
Aedin assentiu.
— Terão.
Ele se inclinou sobre o mapa, indicando com um dedo.
— Não vamos apenas reconstruir. Vamos reforçar. Casas com bases em pedra, armazenamentos locais para cada três conjuntos residenciais e rotas de evacuação claras. Não haverá mais estruturas vulneráveis.
Lady Avelor respirou fundo.
— Isso vai custar tempo. E força de trabalho. Mas… — Ela ergueu o olhar até ele. — Estamos com você.
Nenhum deles perguntou se fariam.
Somente como.
Mas Miran Dorwain quebrou o silêncio, voz baixa.
— Rei… minhas terras… — Ele forçou as palavras. — Eu perdi quase tudo. Se eu desviar homens para a reconstrução da cidade, minha região ficará vulnerável. Eu não tenho mais reservas. Não tenho como alimentar meus próprios trabalhadores.
Não havia vergonha na confissão.
Somente verdade.
E aquilo doeu mais que qualquer argumento político.
Aedin se aproximou, devagar, sem pressa, como se o passo tivesse peso.
Parou diante dele.
— Você não está sozinho, Miran. — Aedin falou baixo, sem autoridade, sem postura real, só humano. — Eu vi suas terras crescerem com as suas mãos. Você plantou junto com seu povo, comeu o mesmo pão que eles. Sabemos que o seu feudo, por estar mais a oeste, foi o mais afetado, tanto pelas bestas quanto por isso agora. Você fez o que um líder deve fazer.
Miran fechou os olhos, segurando as lágrimas, mas elas encontraram abertura, finalmente caindo.
Valcir colocou uma mão forte no ombro do jovem, sem dizer nada.
Aedin continuou:
— Ninguém aqui vai carregar esse peso sozinho. Você me entende?
Miran assentiu, apesar da voz falhar.
— Sim… Majestade.
Melissa então interveio:
— Dividiremos recursos. Redistribuição temporária de cereais e sal das reservas centrais para Dorwain. Valcir, Avelor, não se preocupem: os outros nobres irão contribuir com mão de obra. O trabalho será cooperativo entre as casas.
Lady Avelor sorriu, não de alegria, mas de reconhecimento.
— Como fizemos na guerra.
Aedin respirou fundo.
— Como sempre fizemos.
A mesa ficou silenciosa.
Não de incerteza.
Mas de juramento.
Valcir bateu o punho uma vez contra a mesa, um gesto antigo entre eles, que foi seguido por duas batidas dos nobres, com até Aedin repetindo o gesto.
— Eldrik — Aedin falou, voltando-se para o filho, que fez uma saudação militar batendo o punho no peito —. Vá para o Oeste, encontre Danurem. Já o enviei com alguns guardas reais para controlar as bestas, mas eles vão precisar de ajuda, agora com tanto cheiro de sangue e as defesas da cidade comprometidas.
— Enquanto estiver nas linhas de frente, ajude a população sempre que puder — Melissa completou. — Mas não se esqueça do porquê está lá.
A fala de Melissa arrancou um pequeno sorriso de Eldrik; era bom sentir que sua mão estava de volta.
— Às suas ordens, Majestade — ele respondeu. Começou a se dirigir para a porta, mas, quando a abriu, foi interrompido pela voz de Aedin.
— Não se arrisque de forma desnecessária, filho.
A frase pegou todos de surpresa. Era muito raro Aedin se permitir tratar seu filho assim quando estavam em reunião oficial — uma quebra de protocolo que normalmente custaria uma repreensão franca de Melissa, mas, dessa vez, ela apenas deu um breve sorriso para os dois.
— Sim, pai. Seu filho retornará em segurança — Eldrik respondeu, olhando para os dois antes de sair.
A porta se fechou, e um silêncio estranho tomou conta da sala de reuniões.
O silêncio só foi quebrado quando Lord Valcir falou:
— Olha só… — Ele abriu um sorriso largo enquanto olhava para Aedin. — O velho pedregulho está mole.
Aedin deixou um riso escapar.
— Meu machado continua firme. Quer testar?
— Dispenso. — A resposta do lorde veio tão rápida que arrancou risadas contidas de todos na sala.
Mas as risadas foram interrompidas por batidas na porta.
— Entre — Aedin falou.
A porta foi aberta, revelando cinco nobres que estavam atrasados e a Guardiã de Elandor.
— Majestade — o lorde à frente fez uma reverência, acompanhada pelos outros —, espero que não estejamos muito atrasados.
— Lorde Valcir — Aedin fez um aceno breve —, estão um pouco, na verdade. Já decidimos que estamos precisando de mão de obra e materiais das suas casas.
Aedin respondeu seco, uma clara demonstração de insatisfação.
— Majestade — o lorde da casa Teryn deu um passo à frente —, claro que todos desejamos ajudar da melhor forma, mas seria prudente considerar algo assim sem ao menos a emissão de contratos para o fornecimento de materiais. Se quiser, podemos garantir que a reconstrução seja rápida, sem desperdício… temos magos e construtores à disposição.
Aedin fixou o olhar nele, calmo, mas penetrante.
— Contratos podem ser discutidos — respondeu, com firmeza —, mas somente se o objetivo final for o bem da população e da cidade. Qualquer lucro pessoal que prejudique o povo será descartado imediatamente.
Teryn engoliu, mantendo o sorriso apenas nos lábios, mas os olhos reconheceram a mensagem. Ao lado dele, a outra nobre, Lady Merina, manteve silêncio.
Melissa deu um passo à frente, suavemente colocando a mão no braço de Aedin.
— Vamos focar na organização do trabalho — disse, voz doce, mas inegavelmente firme. — Planejaremos quais áreas receberão prioridade, como alocar recursos e quais equipes farão os resgates e reconstruções iniciais. Não podemos perder tempo com disputas internas agora.
Aedin respirou fundo, assentindo para ela. A diplomacia silenciosa de Melissa era tão importante quanto sua própria capacidade de comando em campo. Ela tinha a habilidade natural de liderar, sabia suavizar excessos e focar a atenção dos nobres no objetivo real. Algo que Aedin sempre admirou.
— Quanto aos recursos — continuou Aedin —, distribuiremos trabalhadores, madeira, pedra e suprimentos de forma que as casas, torres e estruturas estratégicas sejam reconstruídas primeiro. Precisamos garantir que a população tenha abrigo e segurança contra as bestas e que as defesas da cidade estejam restauradas e mais fortes o quanto antes.
— E quanto às famílias nobres que sofreram perdas? — perguntou um dos aliados de longa data, Lorde Harven. — Alguns perderam pertences valiosos e parte de suas residências.
Aedin inclinou-se ligeiramente para ele, com um sorriso contido.
— Receberão suporte proporcional, mas quero que lembremos de uma coisa: ninguém é maior que a cidade. Nossas decisões devem beneficiar a população primeiro. Vocês sabem disso e conhecem minha postura.
Todos assentiram. Até mesmo Teryn e Merina mantiveram silêncio por alguns segundos, sabendo que não poderiam contestar sem se expor.
Melissa, percebendo a tensão sutil, interveio novamente:
— Organizaremos as equipes de reconstrução e resgate agora. Cada distrito terá um responsável. Nobres de confiança podem liderar grupos menores, mas todos estarão sob supervisão direta da família real.
— Muito bem — disse Aedin, percorrendo a mesa com o olhar. — Quero relatórios completos de cada área a cada duas horas. Precisamos de precisão e rapidez. Esta é a diferença entre reconstrução e caos prolongado.
A Guardiã enviada por Elandor permaneceu de pé em silêncio ao lado, observando o plano ser traçado. Aedin percebeu seu olhar preocupado.
— Majestade — disse ela finalmente, erguendo a voz com firmeza —, sinto muito trazer um comunicado em um momento como esse… mas os nobres de Elandor exigem uma resposta sobre por que representantes das casas perderam suas vidas no distrito oeste e por que não estavam abrigados em uma área mais protegida da cidade.
O silêncio caiu no salão. Cada palavra pesava como pedra.
— Entendo… diga a eles que eu mesmo irei escrever uma carta explicando o ocorrido — disse Aedin à Guardiã.
A Guardiã assentiu, respirando fundo.
Aedin voltou seu olhar para os nobres:
— A cidade foi ferida, mas não quebrada. Cada decisão que tomamos daqui em diante terá consequências diretas na vida de cada habitante. Tratem isso com respeito, e não como oportunidade.
— Vamos começar. Precisamos medir o tamanho dos danos e organizar as equipes — Aedin falou para os nobres na sala.
Havia muito trabalho para ser feito. Mas Aedin sentia algo que havia muito não sentia: propósito, e a certeza de que Cervalhion voltaria a se erguer mais forte do que nunca.
A reunião acabou se mostrando mais longa para Aedin do que de costume, estendendo-se até o meio da tarde.
— Comecem — disse ele. — Cada minuto agora importa.
Os nobres deixaram o salão um a um, já discutindo ordens, rotas, equipes, listas de nomes vivos e mortos.
Melissa ficou por último, olhando para o mapa ainda aberto, para as marcas de destruição como cicatrizes sobre a cidade que ela também amava.
— Vai ser difícil — ela disse.
— Vai — respondeu Aedin. — Mas já passamos por situações piores.
Ela tocou seu ombro. Apenas isso.
Um gesto simples.
Mas que o ancorou.
Eles saíram juntos, atravessando o corredor com a luz da tarde iluminando seus rostos e corpos cansados.

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