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    Tyla puxou Lyra até uma das áreas mais isoladas do centro de convivência dos tributos, um canto entre colunas, onde a luz das lâmpadas era mais suave e o ruído das conversas diminuía. Sentou-se primeiro, os braços cruzados e a expressão indecifrável.

    Lyra ficou parada por um momento, olhando para ela como se dissesse apenas com o olhar: “é sério isso?”
     

    — Sim, é muito sério — respondeu Tyla, antes mesmo que Lyra tentasse disfarçar. — Você tem estado estranha esses dias, distante. E agora, no pátio, foi o cúmulo. Que raios aconteceu com você? — perguntou, em um tom que deixava claro que não ia se contentar com meias verdades.

    Lyra suspirou e se sentou diante dela, o peso da pergunta caindo como um bloco em seus ombros.
     

    — É complicado…
     

    Tyla manteve o olhar firme, impassível. Esperava. Sabia que, se ficasse em silêncio, Lyra acabaria cedendo. E cedeu.
     

    — Então… — começou, hesitando por um instante. — Sabe essa matriarca, de antes? É minha mãe.
     

    Tyla piscou, confusa.

    — A mãe que você nunca conheceu?
     

    — Sim. Ela mesma.

    O silêncio que se seguiu foi quase palpável. Tyla ficou de boca aberta, atônita. Aquilo era mais do que uma revelação, era um colapso de tudo que imaginava saber sobre a amiga. Lyra sempre fora tão aberta sobre tantas coisas, mas em relação à mãe… apenas breves menções, sempre carregadas de silêncio e mistério.
     

    — E…? — Tyla arqueou uma sobrancelha, a curiosidade vencendo o espanto. — O que aconteceu ali exatamente?
     

    Lyra baixou o olhar.

    — Eu… falei com ela. Mentalmente. Disse que era sua filha. E pelo que percebi, ela… ficou abalada.
     

    Tyla piscou, duplamente surpresa. Tinham muitas coisas que Lyra não compartilhava com ela.

    — Falou mentalmente? — engasgou Tyla. — Que outras coisas eu não sei sobre você?
     

    — Ela disse que vai me procurar. Longe de olhos e ouvidos curiosos. — O tom de Lyra soou mais temeroso do que queria admitir. — E… respondendo sua pergunta, tem um monte de coisa que eu escondi de você, recentemente.
     

    Tyla piscava devagar, absorvendo cada palavra.

    — Me explica isso direitinho, Lyra. Sua mãe uma matriarca. Aposto que esses segredos todos tem relação com esses seus treinos misteriosos.
     

    Lyra segurou as mãos dela, num gesto quase infantil, e respirou fundo. Os olhos marejados refletiam um cansaço que vinha de muito antes daquele dia. Então começou a contar. Falou sobre o que sabia, sobre o sacrifício da mãe ao se oferecer como tributo, sobre o contrabando que a tirou do Matriacharum, e como tudo tinha se encaixado de um modo que beirava o impossível. Deixou de lado seus sentimentos, sua relação com Aedena, seu pai e seus poderes. Apenas sua mãe já era coisa suficiente para Tyla absorver.
     

    Quando terminou, havia um alívio nítido em sua voz. Como se, ao falar em voz alta, tivesse finalmente tirado um peso que carregava há anos.
     

    — Uau… — murmurou Tyla, quase sem fôlego. — Tudo isso é muito…
     

    — Inacreditável? — sugeriu Lyra, com um sorriso cansado.
     

    — Eu ia dizer incrível. — Tyla sorriu de volta. — O universo é pequeno demais às vezes. Sua mãe, aqui, te encontrando assim, de repente…
     

    Lyra assentiu, mas seu olhar se perdeu por um instante. Lembrou das coincidências que se acumulavam como peças de um tabuleiro cósmico.
     

    — É… o universo é realmente pequeno — concordou ela, pensativa. — Pequeno e cheio de armadilhas.
     

    Ambas ficaram em silêncio por um momento, até que Lyra apertou a mão da amiga, quebrando o clima.

    — Vamos voltar? Amanhã temos aula da professora Nadine logo cedo, são os preparativos para nossa caçada.
     

    — Pois é — respondeu Tyla, levantando-se junto dela. — Estão reorganizando o cronograma. Não querem que saíamos por aí sem saber o que fazer ou esperar.
     

    As duas caminharam lado a lado, os passos lentos, o ar mais leve. Quando chegaram à porta, Tyla parou e a puxou num abraço repentino.
     

    — Senti sua falta, Lyra — murmurou contra o ombro dela.
     

    O coração de Lyra saltou no peito, acelerado. Mesmo com o treinamento mental, com as técnicas de controle emocional que Aedena lhe ensinara, Tyla ainda tinha esse poder, de atravessar qualquer defesa, de deixá-la vulnerável e humana.
     

    — Eu também senti a sua — respondeu baixinho, apertando o abraço.
     

    E, por um breve instante, nada mais importou além disso.

    As duas voltaram juntas para o dormitório, caminhando em silêncio, cada uma presa em seus próprios pensamentos, sem imaginar o quanto os próximos dias as colocariam à prova, dentro e fora dos limites da Academia.



    A professora Nadine caminhava diante da lousa holográfica, as mãos cruzadas atrás das costas. O mapa tridimensional de Tartarus girava lentamente sobre o painel branco, com regiões coloridas pulsando em tons de verde, vermelho e azul. Cada cor representava uma zona ecológica do planeta, florestas úmidas, desertos ígneos, tundras cristalinas, e, dentro delas, as projeções de feraethers que pareciam vivas, movendo-se, animadas.
     

    — Lembrem-se — dizia Nadine, sua voz firme, mas envolvente: — Tartarus não é um planeta que perdoa erros. As zonas de baixo e médios índices de aether costumam abrigar feraethers de classificação básica ou intermediária. Já nas regiões com fluxos instáveis, onde o solo brilha mesmo à noite, vocês encontrarão criaturas avançadas, e também a morte, se forem imprudentes. A variação de uma zona para outra pode mudar rapidamente, por isso, cuidado.
     

    Alguns alunos riram nervosos. Outros se entreolharam, empolgados. O ar na sala vibrava com expectativa.
     

    Nadine sorriu de leve, percebendo a tensão.

    — A caçada é um rito importante, mas não é um jogo. Vincular-se a uma feraether exige sintonia e preparo. Se encontrarem algo além de sua capacidade, recuem. Não tentem impressionar ninguém.
     

    O mapa girou mais uma vez, focando em uma vasta extensão verde-escura no hemisfério norte.

    — Floresta de Myrkan. Aqui vivem feraethers do tipo felino, ótimos em agilidade e furtividade. Ao sul, nas Falésias de Aram, vocês encontrarão criaturas aladas e dracônicas. A oeste, nas terras vulcânicas, estão as mais agressivas. A maioria não aceita vínculo humano.

    A projeção brilhou em vermelho, como se o planeta respirasse fogo.
     

    Os alunos começaram a murmurar, debatendo as melhores escolhas. A empolgação dominava a sala, cada um sonhando com uma feraether que refletisse seu potencial.
     

    Tyla se inclinou sobre a carteira, cutucando Lyra com o cotovelo.

    — E você? Já sabe qual tipo vai atrás?
     

    Lyra observava o mapa em silêncio. O brilho das projeções refletia em seus olhos.

    — Ainda não decidi — respondeu por fim. — Mas preciso de uma fera que seja ofensiva. Meu Kocka é ótimo pra companhia, mas inútil em combate.
     

    Tyla riu.

    — Pelo menos ele é fofo. — Depois, apontou para uma região destacada em azul profundo.

    — Aqui, ó. No cinturão gelado de Orthis. Predominância de feraethers básicas e fortes. Algumas têm resistência ele mental absurda. O problema é o frio — disse, franzindo o cenho.
     

    — E também o fato de que o frio costuma esconder predadores maiores — retrucou Lyra, com um meio sorriso. — Mas é uma opção. Vou estudar com calma antes de decidir.
     

    Antes que pudessem continuar, o pulso de Lyra vibrou levemente. O pequeno tablet preso à sua luva piscou, emitindo uma notificação. Ela abaixou os olhos e leu a mensagem. O coração bateu mais rápido.
     

    “Entrevista marcada: Tributo 1404.
    Confirmado: Inquisidor Raphael Montéquio e matriarca Alina Veyne.
    Horário: imediatamente após o término da aula.
    Local: Prédio da segurança.”
     

    Lyra ergueu o olhar, um misto de nervosismo e curiosidade no rosto.

    — Tyla… — murmurou, mostrando a tela.

    — Vai encontrar os dois? — sussurrou, incrédula, arqueando as sobrancelhas.

    Lyra assentiu devagar.
     
    — Assim que a aula acabar.
     

    Tyla soltou um assobio baixo e sorriu, confiante.

    — Vai dar tudo certo, Lyra. Só respira e vai.
     

    Lyra soltou o ar que nem sabia estar preso, tentando acreditar.

    — Espero que sim. — Seus olhos voltaram ao mapa de Tartarus, girando lentamente. Um planeta inteiro de possibilidades à frente, e, ainda assim, a ansiedade do encontro que se aproximava parecia muito mais real que todo o resto.
     



     

    A sala era estreita e fria, iluminada apenas por uma faixa de luz que caía do teto, branca e impessoal. O ar tinha cheiro de metal e desinfetante. Lyra entrou em silêncio, o coração batendo descompassado dentro do peito.
     

    Alina Veyne estava de pé, imóvel, a armadura impecável refletindo o brilho da lâmpada. Quando os olhos das duas se encontraram, algo invisível se formou, uma ligação antiga, que respondia semente à sangue.
     

    A matriarca, hesitante, fez um breve gesto com a cabeça para o homem ao lado. Raphael a observou por um instante, avaliando o momento, e então assentiu.

    — Com licença — murmurou, deixando a sala e fechando a porta atrás de si.
     

    O som do trinco ecoou como o fechamento de um mundo.
     

    Alina moveu-se com lentidão. Retirou um pequeno dispositivo preso à lateral do peito da armadura, um jammer de interferência. O ativou com um toque, e um leve zumbido preencheu o ambiente.

    — Pronto — disse, a voz abafada pelo modulador. — Podemos conversar sem que ninguém nos veja… ou nos ouça.
     

    Por um instante, titubeou. Depois, suas mãos subiram até a nuca. Um clique, outro, o som de travas metálicas se soltando. O respirador chiou, exalando vapor frio. Quando removeu a máscara, o ar pareceu prender-se na garganta de Lyra.
     

    O rosto por trás daquilo era o mesmo que ela vira em fotos descoloridas e sonhos de criança: os traços firmes, agora marcados pela exposição ao aether, o olhar forte, marejado. As lágrimas tremulavam nas bordas dos cílios antes mesmo que Alina pudesse falar.
     

    — Posso? — perguntou, num fio de voz. Não precisava explicar o que queria dizer.
     

    Lyra deu um passo à frente, depois outro. Quando se encontraram no meio da sala, o abraço veio sem hesitação, natural. Um gesto contido apenas pela força das armaduras e pelo tempo perdido. Alina a envolveu como quem temia que o mundo pudesse desintegrar-se se soltasse. Lyra afundou o rosto no ombro da mãe, e o cheiro de aether e metal se misturou ao perfume discreto de lavanda e suor humano, a prova viva de que ela era real.
     

    Ficaram assim por longos segundos, talvez minutos, até que o silêncio cedeu espaço às palavras.
     

    — Como… — Alina começou, a voz rouca — como você acabou aqui? Um tributo do Império?
     

    Lyra respirou fundo, ainda com os olhos úmidos.

    — É uma história longa.

    Sentaram-se uma de frente para a outra.

    — Tudo começou com um erro. Tio Rob desviou aether, e a Casa Sylaris usou isso pra nos culpar. A matriarca Zyab me deu uma escolha: minha família ou minha liberdade. E… — a voz falhou por um instante — eu escolhi salvar eles.
     

    Alina fechou os olhos, dolorida.

    — Zyab!? Como o universo nos prega peças! Pelo Demiurgo, ela que me ajudou a mandar você de volta pra casa, foi a responsável por trazer você de volta a isso tudo.

    Lyra assentiu.

    — Eu pensei que era o fim. Que nunca mais veria ninguém. Mas agora… — olhou para as mãos, depois para o rosto da mãe. — Parece fazer algum sentido.
     

    Por um tempo, não houve mais palavras. Apenas o som do ar condicionado, o leve ruído do jammer no fundo, e duas respirações humanas tentando se sincronizar depois de anos de distância.
     

    Alina pousou a mão sobre a de Lyra, com cuidado.

    — Eu não sei o que o futuro nos reserva, filha. Mas, por um instante, posso apenas te olhar. E saber que você sobreviveu.
     

    Lyra sorriu, e o brilho de lágrima em seus olhos era de alívio.

    — Eu sobrevivi, mãe. E agora… finalmente, te encontrei.
     

    A sala de interrogatório, fria, impessoal, cheia de sombras, tornou-se, por alguns minutos, o lugar mais humano de todo o Domatorum.

     

     

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