Índice de Capítulo

    O fim da tarde tingia o céu de um amarelo escurecido, puxando para cinza, como se o próprio sol estivesse cansado. A fumaça que ainda escapava das ruínas subia lenta, misturando-se à névoa que sempre rondava Cervalhion ao entardecer. O cheiro de madeira queimada, fuligem e terra molhada formava um gosto áspero na boca, difícil de ignorar.

    Eldrik desceu os degraus largos do castelo. A pedra estava coberta de pó fino que subia a cada passo. Ninguém precisou dizer para onde ir, todos sabiam. Todos respiravam o mesmo ar pesado.

    As ruas estavam cheias de gente, mas silenciosas. Pessoas passavam em grupos, carregando baldes, cordas, tábuas, mas falavam baixo, como se temessem que a própria cidade pudesse se partir ainda mais se alguém levantasse a voz. Bem diferente de como costumava ser dias antes.

    Eldrik segurou o cabo do machado curto que carregava desde o ataque. Não era sua arma habitual, mas tinha sido o que ajudou a cortar a madeira de muitas casas no resgate.

    A muralha oeste já era visível à distância.

    Ou melhor, o que tinha sobrado dela.

    Pedras enormes espalhadas como ossos quebrados, cercadas por pilhas de madeira partida e telhados esmagados, haviam vigas de madeira quebradas. Ferragens retorcidas. O chão ainda tinha marcas de sangue algumas frescas, outras já escuras.. Era difícil acreditar que, três dias antes, aquela muralha parecia impenetrável um símbolo da força de Cervalhion.

    Agora era só mais uma ferida aberta, um lembrete de como tudo pode ruir rápido demais.

    Havia movimento entre os escombros. Homens e mulheres cavavam, levantavam troncos, passavam baldes de água, gritavam nomes de familiares, de amigos. A movimentação era constante. Soldados e moradores trabalhavam lado a lado. Uns cavavam. Outros carregavam cadáveres de animais e moviam entulho. Havia crianças ajudando a tirar pedaços pequenos de pedras com as mãos, porque ninguém podia se dar ao luxo de ficar parado.

    Eldrik achou Danurem primeiro pelo som.

    — — NÃO, NÃO, NÃO! EU FALEI PRA NÃO JUNTAR AS TÁBUAS ALI! — o berro reverberou, áspero, impaciente, e ainda assim repleto de uma energia estranhamente viva. — QUEREM QUE ESSA MERDA CAIA DE NOVO!?

    Eldrik quase sorriu, mesmo sem querer.

    Ele estava no centro do caos como se tivesse sido plantado ali.

    Ele gesticulava com um braço nu até o cotovelo, a pele coberta de poeira e manchas escuras de fuligem. O martelo de guerra nas costas parecia pesado demais para qualquer homem comum, mas nele parecia tão natural quanto respirar.

    Danurem. Dan.

    Corpo marcado por cicatrizes antigas e recentes, o olhar vivo como se o mundo fosse um campo de batalha que ele nunca tinha saído. E mesmo assim, mesmo em meio ao caos sorria como se estivesse acabado de ouvir uma boa piada.

    Eldrik se aproximou, pisando firme no solo irregular.

    — Dan.

    O guerreiro virou, e o sorriso que abriu era metade sincero, metade absolutamente louco.

    — Ora, ora, ora… Se não é o pequeno príncipe o que acha de dar uma mão? ou ainda se preocupa com as suas botas? — Ele olhou para os pés de Eldrik. — E elas ainda continuam limpas. Impressionante.

    Eldrik cruzou os braços.

    — Achei que tinha me esquecido.

    — Esquecer de você? — Dan bateu o punho no peito, teatral. — O filho do meu irmão favorito? Jamais. Mesmo se eu quiser.

    — Você só tem um irmão — Eldrik rebateu, seco.

    — Pois é. — Dan sorriu largo. — Melhor que ter muitos e odiar todos eles.

    Havia algo reconfortante naquela troca. Como se o caos todo tivesse parado só para permitir aquele momento familiar se encaixar no lugar.

    — Como está a situação? — Eldrik perguntou, olhando para o entulho. — Quantos ainda podem estar presos?

    Dan suspirou, esfregando a nuca.

    — Três casas colapsaram por completo. Quatro parcialmente. Já tiramos oito feridos. Dois mortos. — Ele falou isso sem abaixar o tom de voz. Dan não amenizava a verdade. — Ainda tem gente ali embaixo.

    Eldrik segurou o machado mais firme.

    — Diga o que precisa que eu faça.

    O sorriso de Dan ficou menor e mais sincero.

    — Ah, assim que eu gosto. Sem rodeios. Sem drama. — Ele apontou para um grupo de aldeões, a maioria jovens, os rostos assustados e mãos tremendo. — Ajude eles. Ensine a mover pedra sem se machucar. Acima de tudo: mantenha eles totalmente ocupados. Se eles pararem para pensar, eles podem desmoronar por dentro.

    Eldrik assentiu.

    Mas Dan colocou uma mão enorme em seu ombro antes que ele desse o primeiro passo.

    — Ah sim.. quase ia esquecendo, caso apareça um problema grande demais… — Ele sorriu de novo, mas dessa vez havia um brilho diferente no olhar. Sério — Não me procure, Não, Serio mesmo, resolva seus problemas para lá.

    Dan soltou o ombro e passou a mão no cabelo tirando a fuligem e poeira.

    — Enquanto você aprende a se virar eu vou estar caçando algumas bestas, antes que elas tomem coragem e ataquem — apontou para a borda da floresta próxima à muralha, onde sombras se moviam entre as árvores.

    Bestas.

    Dan estava indo caçar antes que a noite caísse.

    — Volto antes do jantar ser distribuído — disse ele. — Ou janto algumas bestas. De qualquer jeito, volto.

    Eldrik respirou fundo. Aquele era Dan ,mesmo em meio caos, continuava parecendo uma rocha inabalável.

    — Certo. Eu cuido daqui.

    — Eu sei que cuida. — Dan deu um tapa no ombro dele que quase jogou o rapaz para frente. — É meu sobrinho afinal, sangue bom não foge de trabalho.

    E então se afastou, puxando o martelo de guerra das costas, indo em direção às sombras como se fosse encontrar um velho inimigo para um café.

    Eldrik ficou ali por um momento, vendo-o desaparecer.

    Quando virou para os sobreviventes, viu rostos cansados, machucados, mas atentos.

    Ele inspirou. Soltou o ar devagar.
    E falou alto, claro e firme:

    — Vamos começar pela casa do meio. As vigas estão apoiadas na direção errada. Se movermos daquele lado primeiro, pode cair tudo. Sigam comigo. Sem pressa. Mas não parem.

    As pessoas olharam para ele. E por um instante um único instante algo diferente de medo e tristeza tomou conta dos seus olhares.

    Eldrik sentiu o peso daquele pequeno traço de esperança.

    Ele apenas disse:

    — Vamos.

    E começou.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota