Capítulo 85 - Dan
Narrado por Eldrik
Eu não sei que horas eram quando tiramos os último pedaços de madeira de cima dele.
A noite já tinha caído há um tempo, mas eu só percebi quando a luz das tochas começou a projetar sombras longas demais nos escombros. Minhas mãos tremiam, mas eu continuei puxando, levantando, segurando peso onde dava. O machado já não era uma ferramenta, era extensão da minha vontade. Eu já não sentia o braço direito inteiro, só o calor pulsando dentro dele.
O homem estava preso entre duas vigas. Ainda respirava, fraco, mas respirava.
— Vamos com cuidado — eu disse, mais para mim do que para os outros.
A madeira estava úmida, pesada. Se escorregasse, esmagava o peito dele de vez.
Alguém segurava a viga do outro lado. Não sei quem. Já não distinguia rostos.
Só vozes cansadas, corpos cinzentos de poeira, como se todos tivéssemos saído do mesmo incêndio.
— Agora — puxei o ar — juntos.
E levantamos.
A madeira cedeu com um estalo grave.
Duas pessoas se arrastaram para puxar o homem para fora. Ele estava inconsciente, sangue seco na testa, a perna dobrada em um ângulo errado. Mas vivo.
Vivo.
Eu soltei o ar como se só agora me permitissem respirar.
Alguém agradeceu. Alguém tocou meu ombro. Alguém chamou mais gente. Mas as vozes eram distantes, como se eu estivesse ouvindo debaixo d’água. Vi o homem sendo carregado para onde tinham colocado os feridos. Médicos. Magos. Esperança, se ela ainda existisse.
Fiquei ali.
Ajoelhado no meio do que restou da ultima casa que faltava verificar.
Tomei consciência do meu corpo de repente, a adrenalina tinha segurado tudo até agora.
Quando ela foi embora, o peso veio inteiro.
O cansaço bateu forte.
As mãos ardiam. Os dedos tinham cortes finos, cheios de poeira.
A roupa estava rasgada em vários pontos.
Meu rosto devia estar irreconhecível de terra e fuligem.
E então eu percebi os olhares.
Moradores. Soldados. Jovens que tinham passado o dia todo tremendo.
Eles me olhavam diferente agora.
Não como alguém distante. Mas como um deles.
Eu… não sabia o que fazer com isso.
Levantei devagar. O ar estava frio, mas o corpo queimava, como se meu sangue ainda estivesse tentando correr mais rápido do que devia.
Fui andando até onde estavam distribuindo a comida. Um caldeirão grande, bancos improvisados, gente sentada no chão, comendo devagar. A fumaça subia fina, cheirando a caldo de ossos, legumes e sal, um cheiro que teria sido reconfortante se o mundo não estivesse caindo aos pedaços.
Quando cheguei, um soldado veio até mim. Reconheci o rosto, mas não lembrava o nome.
— Alteza — ele se endireitou, mas o cansaço fez a postura vacilar. — A janta… acabou. Posso pedir no castelo. Eu vou buscar agora, será rápido!
Balancei a cabeça, respirando fundo.
— Não precisa. Está tudo bem.
Ele hesitou.
Eu não dei chance para insistir.
Me afastei alguns passos e sentei perto do posto de guarnição, O chão estava frio, Fiz uma pequena fogueira que estalava baixo, consumindo lenha úmida e espalhando aquele cheiro de madeira fria
Eu não liguei, Mas Dan estava demorando.
Olhei para o oeste, onde era a muralha, Ou o que sobrou dela dela. Eu fechei os olhos um instante.
Foi aí que ouvi passos.
Passos leves. Precisos. O tipo de passo de alguém que sabe se mover sem fazer barulho. Mas não estava tentando se esconder.
Eu abri os olhos e virei o rosto.
Uma mulher aproximava-se na penumbra. A capa de viagem dela estava puxada para trás, os cabelos claros presos em tranças longas, o semblante firme como pedra e, ainda assim, gentil.
A Guardiã de Elandor.
— Príncipe Herdeiro — ela inclinou a cabeça em cumprimento. A voz dela era calma, como água correndo entre raízes. — Soube que ainda havia buscas por terminar. Vim oferecer ajuda.
Eu quis responder algo inteligente.
Ou respeitoso.
Ou útil.
Mas o cansaço tinha roubado todas as palavras que exigiam esforço.
— Obrigado — foi tudo o que saiu.
Ela se aproximou um pouco mais, inclinando o corpo para me ver melhor.
— Há algum problema?
Eu passei a mão no rosto, sentindo poeira soltar da pele.
— Só… cansaço. Nada demais.
Ela assentiu devagar, não insistiu. Respeitou o espaço.
Por um instante, ficamos em silêncio.
E então eu perguntei, sem pensar:
— Como é… Elandor?
Ela piscou, surpresa verdadeira.
Por um segundo, eu achei que tinha falado algo estúpido.
— Você já esteve lá — ela disse, suave.
— Já — respondi. — Mas de forma breve e quero saber como você a vê.
Ela respirou fundo, olhando ao redor como se pesasse se responderia ou não, por fim ela acabou falando.
— A cidade cresce constantemente junto com a floresta — ela começou. — As raízes sustentam as casas. As folhas filtram a luz. O ar é úmido, mas leve. As pessoas… vivem com tempo diferente. Não é como aqui. Lá, a terra fala devagar. E ouvimos devagar.
Eu ouvi com mais atenção do que pretendia.
Quando ela terminou, acrescentou, retomando o tom formal:
— Também tenho uma pergunta Príncipe herdeiro—
Eu me levantei, Não devagar sacudi a poeira das roupas e o máximo que consegui retirar a sujeira das mãos antes de estender.
— Me chmae de Eldrik Guardiã. Só Eldrik.
Ela parou.
Os olhos dela se arregalaram só por um instante, parece que o meu pedido a pegou desprevenida. mas após alguns segundos com a mão pendurada ela finalmente colocou a mão sobre a minha, com um sorriso curto.
— Então, me chame de Aura.
— Nesse caso, prazer em conhece-la Aura — Falei retribuindo sorriso.
Sinalizei para ela se sentar, e para a minha surpresa ela se sentou sem cerimonia, ficamos em silencio por um tempo, o que fez a minha mente viajar um pouco, eu estava começando a ficar preocupado.
Dan devia ter voltado já faz tempo.
Eu tentava não olhar para a trilha escura além do portão, mas meus olhos teimavam em ir até lá, como se esperassem vê-lo surgir a qualquer momento, reclamando, rindo ou falando alto demais como sempre fazia.
Aura estava sentada próxima de mim, mas agora mexia em uma pequena faca de caça afiando a lâmina curta que trazia presa à perna. Movimentos tranquilos, precisos, sem pressa. Como se o silêncio não a incomodasse nem um pouco.
— Você está inquieto — ela disse, sem me olhar.
— Dan sempre volta antes da lua subir. — Eu respondi. — Ele… não gosta de perder o jantar.
Ela deu um meio sorriso leve, mas real.
— Então vocês são próximos.
— É. Algo assim. — Cocei a nuca, tentando encontrar palavras melhores. — Ele é tecnicamente meu tio, soube que ele salvou a vida do eu pai três vezes em Altheria.
— Ah — ela ergueu o olhar, curiosa. — Você já esteve em Altheria?
— Eu? — Ri baixo. — Ainda não. Nunca tive a chance.
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa sincera.
— Mas pensei que… com Aedin sendo tão respeitado nos outros reinos… você teria viajado com ele.
— Aedin já viajou — respondi, olhando o fogo. — Eu não. Alguém precisa manter as coisas funcionando quando ele não está. Além disso… eu não sei se estou pronto.
— Pronto… para quê?
Pensei um instante.
— Para ver o mundo lá fora e descobrir que ele é maior do que eu consigo imaginar. — Suspirei. — Cervalhion é tudo que eu conheço. Às vezes eu acho que se eu sair… posso não saber onde é meu lugar.
Ela ficou em silêncio por um momento franzindo a testa… era uma expressão estranha vinda de uma Guardiã.
— Eu não posso dizer que entendo, mas… — disse enfim. — Antes de ser Guardiã, eu era parte do Conclave de Elandor. Cresci entre árvores que cantavam e raízes que se moviam. Eu achava que aquilo era o mundo e que era assim que todas as plantas eram. Que aquela floresta era tudo. Mas quando fui chamada para além dela… precisei aprender tudo novamente.
Ela respirou fundo, buscando algo na memoria.
— Quando deixei Elandor, eu senti como se uma parte de mim tivesse sido arrancada. Mas… — Ela olhou para mim — …foi só assim que eu descobri que outras partes de mim podiam nascer.
Eu fiquei quieto. Porque havia algo na voz dela, não era dor, exatamente…. Talvez saudade, daquelas que não curam.
— E como você se tornou Guardiã? — perguntei.
Os olhos dela refletiram o fogo, suaves. Mas firmes.
— Eu fui escolhida pela Árvore Anciã. Não no sentido romântico que contam nas histórias. Eu estava morrendo. Havia… muito mana selvagem no meu corpo, mais do que eu podia controlar. Eu estava me desfazendo por dentro. Então fui colocada sob as raizes, e quando achei que ia morrer, A Árvore me chamou. Me reescreveu. Me fez parte dela. — Ela tocou o próprio peito. — Eu não sirvo à Árvore. Me tornei parte dela.
Eu senti a garganta apertar. tentando digerir essa historia louca, e acabei deixando escapar a coisa mais esperta que consegui pensar nessa situação.
— Isso parece… enorme.
— É. — Ela sorriu de leve. — Mas também é só viver. Como você faz aqui, todos os dias.
O silêncio depois disso foi… confortável. Como se o ar soubesse como ficar entre nós.
Mas o desconforto não demorou a voltar.
Dan ainda não tinha voltado.
Eu me levantei.
— Eu vou procurá-lo.
Aura ficou de pé no mesmo instante. Como se já esperasse.
Fui até a guarnição. Peguei uma armadura leve, couro reforçado, acostumado ao meu corpo, quase parte de mim. A espada curta. A lança de viagem.
Quando saí, reconheci alguns guardas reais que estavam reunidos.
Um me reconheceu primeiro, mesmo sujo de poeira, roupas gastas, olhos cansados.
— Jovem mestre?… — ele chamou, quase sem acreditar.
Eu assenti brevemente.
— Senhores, estou indo verificar os arredores.
O mais velho dos guardas se levantou rapidamente e chamou os mais novos — Vamos.
Ninguém questionou.
Passamos pelos portões. O vento lá fora estava frio e carregado cheiro de ferro, madeira… e algo ácido, que me arrepia só de tentar nomear.
Seguimos a trilha. por alguns minutos já mata a dentro, a floresta estava anormalmente silenciosa, para uma noite como essa.
Foi Aura quem parou primeiro.
— Eldrik…
Eu segui o olhar dela.
E vi.
Corpos.
Não humanos.
Bestas, dezenas empilhadas em montes irregulares.
Feras que quebrariam um homem ao meio.
Criaturas que exigiam soldados bem treinados para serem contidas.
Estavam abertas. Rasgadas.
Algumas carbonizadas.
Outras simplesmente… partidas ao meio.
Uma trilha de destruição seguia mata adentro, como um caminho violento apontando direto para as Montanhas Centrais.
Não houve batalha.
Houve avanço.
Algo passou por aqui.
Sozinho.
Ou alguém.
Meu sangue gelou.
Dan não teria feito..
Um assobio curto, baixo, saiu do guarda mais velho. Não de surpresa, de reconhecimento.
— Ele se empolgou mesmo… — disse, como quem comenta o clima.
Eu virei o rosto devagar.
— Como é? — minha voz saiu áspera. — Está me dizendo que isso foi o Dan?
O guarda me olhou como se eu tivesse acabado de perguntar se o sol nasce no leste.
— Jovem mestre… — ele inclinou levemente a cabeça. — O senhor já viu o capitão lutar sério?
Eu abri a boca para responder. Fechei. Pensei.
— Eu já vi ele treinar com meu pai.
— Então não viu. — interrompeu outro guarda, com um meio sorriso cansado. — Quando seu pai e o capitão treinam, eles se seguram. Se não fizessem isso, nos estaríamos com problemas toda vez.
Uma risada nervosa escapou de um dos recrutas.
Ninguém mais riu.
Aura passou os dedos pelo ar, como quem escuta algo que nós não podíamos.
— A mana está… alterada — ela sussurrou. — Distorcida por pressão, parece até que foi apagada.
O guarda mais velho assentiu, olhando a trilha de cadáveres.
— Por isso chamam ele de Touro Louco.
O nome bateu no peito como um golpe.
Eu conhecia Dan.
Eu achava que conhecia.
Tio. Protetor. O homem que não segurava o riso.
A voz mais alta nas festas.
A primeira pessoa a me levantar quando eu caía.
Eu nunca tinha visto isso.
A floresta parecia menor agora.
Ou talvez ele fosse maior do que eu imaginava.
E, pela primeira vez na noite inteira…
Eu senti medo.
Não do que nos esperava nas montanhas.
Mas do que Dan estava correndo para enfrentar.
Ou fugir.

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