Capítulo 18: Chamas que se Apagam

UMIDADE ESCORRIA DAS PAREDES DE ROCHA e o gotejar marcava um ritmo lúgubre no ar. Esculpido no subsolo de algum lugar, tochas fracas apenas meio iluminavam um cheiro gelado e litúrgico que impregnava tudo.
Sombras longas dançavam pelo salão aberto na pedra, revelando altares e símbolos mil dentre a escuridão. A pouca claridade laranja também expunha um imenso trono que emergia da rocha, com nele sentado uma figura, tão entalhada na pedra quanto.
Sahayaka ajoelhava-se diante de uma bacia d’água escavada no chão, que refletia vagamente sua imagem. Sua silhueta esguia tremulava à luz de chamas únicas que rodavam, suspensas, no ar logo acima. De tom esmeralda, queimavam como magia.
Enfim, uma delas se apagou depois de perder intensidade ao longo de minutos. Suspirou sozinho.
— Acabou… — murmurou. — Eda se foi.
Nenhuma voz o respondeu, mas Sahayaka falava como se houvesse alguém ali, escutando. Ele mesmo poderia ouvir além, depois de perder sua visão após um certo evento.
Uma faixa negra cobria o que sobrou de seus olhos, consoante ao restante da túnica. Os cabelos ruivos e presos num rabo-de-cavalo eram a única coisa que lhe davam cor.
— Tolo… — Falava quase como um lamento, mas cada palavra trazia soberba. — Morreu cego pela promessa de liberdade. — Ergueu a cabeça como se pudesse ver, refletido na água o fogo verde. — Pois jamais conseguiria se libertar de sua dívida, não é, Pai? — A língua serpenteou entre os dentes. — Eda ainda pagará o que deve. Todavia… não morreu em vão. Creio que encontramos, Pai… outro Deva.
As chamas tremularam mais fortes, como se reagissem à sua excitação. Sahayaka sorriu, torto e impetuoso, mesmo que a colossal estátua esculpida no trono jazesse impávida. Jurava que os penedos respondiam à sua mente.
— Isso mesmo; faltam poucos passos, meu senhor. — Sua voz se elevou num tom reverente, quase febril. — Peço-lhe que seja paciente por não muito mais. Logo, andará entre nós outra vez… Havakai.
As chamas se curvaram diante da corrente de vento subterrâneo, mas se recusaram a apagar. A morte de um de seus lacaios foi a melhor notícia possível para Sahayaka.
A manhã em Vento Gentil chegou diferente do dia anterior. Todo aquele calor deu lugar à chuva, lavando a terra ensanguentada da selva. O som das gotas nas folhas largas e no teto da cabana trazia uma falsa sensação de conforto que os hetas aprenderam bem a ignorar.
Tai estava flutuando em posição de meditação, como sempre. Diante de um vasilhame de chá, assistia o vapor subir em círculos lentos e seus pupilos conversarem.
— Eu fui o mais durão possível — dizia Tatsuo, tratando de alguns hematomas. — Afinal, não podia fazer feio na frente do Deva. Mas, vou te falar, nunca vi nada assim.
Gojin ouvia atentamente, mesmo que suas reações fossem contidas. Sentado recostado na parede de madeira úmida, brincava com faíscas de eletricidade que corriam-lhe as mãos enquanto seu colega contava cada meandro da batalha.
— Não cabe a nós lidar com estas anomalias — cortou, seco. — O protocolo a seguir é convocar os confrades.
Yuuka jogava seus olhos janela afora. Preocupada, assistia a trilha se tornar um lamaçal.
— Comunicaremos eles ainda hoje — dizia ela, apoiada no batente da janela gasta.
— Olha só, o demônio não é lá grandes coisas. Nossa fração pode ao menos prender aquela coisa até que a Confraria chegue. Eu ainda estou inteiro afinal de contas.
— Você lutou ao lado de um Deva. — Gojin controlava a ansiedade na fala com sua disciplina ímpar. — E, mesmo assim, dependeram da moça que estava com vocês. Nem mesmo o mestre Tai conseguiu o aprisionar. Não há motivos para nos arriscarmos mais.
Tatsuo bufou.
— Então deixemos esse bicho solto por aí, que tal? Se morrer gente, tudo bem, não acha?
— Deixe de ser idiota e raciocine — retrucou Gojin, árido. — Só quem consegue matar um Naraki é a Confraria, e, por isso, ela existe. Eles virão e farão a sua parte do trabalho. Nossa parte está feita; descobrimos o que causou a fenda no Tecido.
Covarde de merda.
Yuuka agora encarava Jun Lei em sua meditação, vasculhando cada veio do Tecido em Vento Gentil. Ali, estava de plantão e informaria se qualquer movimentação no véu acontecesse, de imediato.
Do outro lado da cabana, enquanto Tatsuo e Gojin trocavam farpas como sempre, Tai sentava no ar, sereno. Não demonstrava nunca a sua dor; a mesma dor que impediu que capturasse o demônio no dia anterior.
Yuuka o conhecia bem, como nenhum de seus outros alunos. Já havia percebido o mal que assolava seu mestre sempre que exigia um pouco mais de seus poderes, como um doente que não quer aceitar sua condição.
Você é teimoso demais. Invés de deixar o trabalho pesado para a gente, você…
Tai abriu os olhos. Então respirou fundo, levantando-se. Uma perturbação no ar lá fora despertou sua atenção.
— Então é hora de falarmos sobre o que realmente aconteceu. — Todos o miraram de imediato.
A porta da casa se abriu, mas ninguém estava por trás dela. Passos molhados umedeceram a madeira do piso e fizeram-na ranger, mas nada estava diante deles. Enfim, a imagem de Kiro e Yuna se formou no meio do nada, tornando-se visíveis.
Desmascarados, não tinham nada a esconder dos hetas. Kiro mantinha o semblante fechado, introspectivo, enquanto Yuna pousava uma das mãos na empunhadura de suas foices embainhadas.
— Sentem-se — pediu Tai, com um gesto calmo. — Precisamos colocar tudo em ordem.
Gojin e Yuuka se posicionaram próximos à entrada, enquanto Jun Lei seguia repousando sobre almofada, sem desviar de sua meditação.
O silêncio se fez até que Tai tomou a palavra.
— Fico feliz que tenham acatado nosso pedido de se reunir aqui, senhores — começou, com a fala calma de sempre e olhos semicerrados. — Saibam que temos em vocês a imagem de aliados, pois lutamos contra um mesmo inimigo. Inimigo este que, pelo visto, é um manipulador de artefatos muito habilidoso. — Fitou Yuna diretamente. — E o Naraki nasceu de um desses artefatos, certo?
Yuna confirmou com um aceno. Sentia-se nua sem sua máscara de ave de rapina.
— Nós vimos — dizia ela. —, mas não pela primeira vez. Dias atrás, outros homens tentaram nos emboscar, porém, antes que conseguíssemos interrogá-los, um desses amuletos o sacrificou.
— Queima de informação — apurou Gojin, da porta.
— Foi o que concluímos — completou Yuna.
Yuuka inclinou a cabeça, como se calculasse algo mentalmente.
— Então foi isso… — murmurou. — A fenda que sentimos há dias foi, provavelmente, isso que nos conta. O artefato que vocês viram deve ter sido o canal da ruptura.
Tai juntou as mãos em volta do vasilhame e deu uma generosa golada do chá. Mirava Kiro com os olhos estreitos, mas as mãos calçadas de luvas não permitiam que desse seu veredicto final sobre a natureza daquele homem. Mesmo que já tivesse certeza, queria a confirmação concreta.
Kiro não disse nada sequer. Não importa o que ocorrera no dia anterior, não confiava em ninguém. Em nenhum deles. Mais cedo, Yuna o esclareceu sobre a Irmandade e que poderiam confiar neles, pelo menos por enquanto. Mesmo com a promessa de que agiria mais do que pensaria a partir dali, o tigre não via verdade em mais ninguém além de sua companheira.
Tai encarou Kiro nos olhos.
— Você é… especial. — Sua fala silenciou o recinto.
Foi uma afirmação, não uma pergunta. As palavras de Tai repousaram no ar por um instante, fazendo com que todos os hetas focassem a atenção em Kiro. Kiro, por sua vez, nunca desviava o olhar.
— Você também — disse, como se estivessem num cabo-de-guerra. — Vi o que fez com a criatura.
— Ora, não foi nada. — Tai riu, irreverente. — Vocês o cansaram o suficiente.
Tatsuo deu um riso de canto.
— Foi uma luta e tanto, ein, Tigre Alado? E eu nem pedi desculpas por ter te distraído quando tava pra matar aquele manipulador… — Muitos achariam seu sorriso debochado. — Ainda bem que o demônio deu um jeito nele.
Kiro apenas franziu o cenho. Havia alguma gratidão pela ajuda que Tatsuo ofereceu, principalmente quando salvou Yuna da primeira investida do Naraki. Todavia, não sabia se expressar a não ser que fosse com sua amada.
— Então vieram para cá por causa da primeira liberação — afirmou Yuna, retomando o assunto. — Mas… e agora?
— Agora faremos contato com quem de fato é dono do problema — dizia o Mestre do Ar. — Sabe, nossa missão é neutralizar e identificar fendas que surjam no Tecido. Ficou claro que, tanto nós quanto vocês, podemos derrotar um Naraki como aquele, porém matá-lo é outra história. — E tomou outro gole de seu vasilhame.
— Um ser oriundo do Naraca só morre verdadeiramente queimado por Chamas Esmeraldas — completava Yuuka, de tom quase academial. — Caso contrário, podemos até mesmo arrancar sua cabeça que ele não morrerá como nós; renascerá em algum outro lugar do nosso mundo depois de algum tempo.
— Chamas… Esmeraldas? – questionou Yuna.
Tai se ajeitou no nada, suspenso no ar.
— É aí que entra o nosso próximo passo.
Tai fez um gesto com a mão e fisgou um pergaminho, que planou no ar decolando do meio das bolsas. Sob controle do regente, o documento foi até Kiro e Yuna.
— Nossos amigos da Confraria de Baaranishan — seguia ele. — Shun, seu líder, é possuidor de tais técnicas e só ele pode eliminar de vez tais seres. Vão adorar conhecer vocês dois, pois são uma organização de… pessoas especiais.
Yuna estreitou os olhos e buscou o olhar de Kiro por um instante, mas ele não desviou-o de Tai. Algo dizia-lhe para sair dali; não confiar em nenhum deles. Mais uma peça no tabuleiro de Vento Gentil era tudo o que ele não queria.
— O que você quer dizer com pessoas especiais? — Indagou Yuna, querendo que confirmassem que não era o que suspeitava.
Tatsuo bufou, impaciente.
— Devas! — Exclamou, abrindo os braços. Apontou para Kiro. — Você é um Deva, não é? Eles são como você, ora.
Kiro engoliu em seco, enquanto Yuna não soube como reagir. A indiscrição de Tatsuo serviu para tirar da frente um assunto subentendido que permeava a cabana. Mesmo que os demais hetas tenham se constrangido com a indiscrição, Tatsuo não fazia questão de ser conveniente.
— Me surpreende que não conheçam eles. Nunca vieram atrás de você? Normalmente, os confrades também procuram outros Devas para recrutar.
Kiro cerrou os dentes.
— Nunca vieram, e, mesmo que venham, não aceitarei o que quer que seja — proferia com firmeza. — Não me interessa deixar esta terra.
Os hetas se entreolharam.
— Eu pensaria com carinho no seu lugar. — Tai trazia um tom mais amistoso do que seu pupilo. — As histórias do Tigre Alado já chegaram aos cantos do mundo e já sabíamos de antemão sobre sua natureza, Vossa Santidade. De certo, os confrades também já o conhecem.
— Que resolvam o problema e se vão da minha ilha — retrucou Kiro, com a voz como rocha. — Agradeço a ajuda, mas não tenho interesse em servir a ninguém.
Tai, mais uma vez, estreitou o olhar e sorriu, amigável.
— O tigre sempre anda sozinho, não é mesmo? — Deu a última golada do chá, fazendo o vasilhame flutuar até pousar na pequena mesa de centro. — Bom, não nos diz respeito sua escolha. De qualquer forma, aconselho que ouça-os quando vierem; será uma boa oportunidade para conhecer outros como você. — Tai tossiu de lado. — O documento que lhes dei contém as informações necessárias sobre o mapa de operações que se seguirá; não mudará muito do que está aí. Não dispensamos a cooperação dos senhores.
O Tigre Alado trocou olhares. Kiro não suportaria ser subjugado por ninguém, mas foi provado diante seus olhos que aquele homem que flutuava e sorria gentil estava além de suas habilidades. O único ser que o superava em poder era seu próprio mestre, Hu, que não via havia oito anos.
Desde que deixou o Templo do Tigre Dourado, não se deparou com ninguém que pudesse derrotá-lo; nunca se sentiu vulnerável. Entretanto, a facilidade com que Tai dominou o demônio o fez se sentir… incapaz. Incapaz até mesmo de proteger Yuna, por duas vezes.
Seu orgulho estava ferido.
Gojin ouvia atentamente a reunião, mas encarando a trilha enlameada que cortava a selva fechada. O aguaceiro não parava, fazendo ser impossível ouvir algo além da chuva na mata. Contudo, alguém se aproximava da cabana.
— Temos um inimigo em comum — concluía Kiro, impassível. –, mas não seguiremos seus planos. Podem nos considerar aliados, mas não seguiremos ordens de ninguém. — Kiro se levantou e Yuna o seguiu. — Estaremos na selva.
Kiro pousou sua mão no ombro de Yuna conforme se dirigiam à porta. Antes que a passassem, ambos desapareceram, invisíveis.
O pergaminho ficou sobre a mesa.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.