Capítulo 57: O Conselho dos Cinco (1)
“O amor é cego, surdo e mudo, e tantas vezes tão transformador quanto uma porta numa corrida.”
Izandi, a Oniromante

— Acalme as lágrimas, Pequena Rainha — acenou e ergueu o queixo, dando uma piscadela sugestiva para o príncipe de Aavier. O cão latiu baixinho e manhoso. Fora tão manhoso, e com um sorriso tão manso, que Ezekel e a Pequena Rainha suspiraram de alívio juntos. — Veja — continuou Randi —, nossos cães são muito bem treinados. Não são do tipo que desobedecem, e são melhores do que qualquer cavaleiro que pode-se encontrar pernoitando nas estradas. — Sorriu para a pequena ruiva. — A fêmea deste meu rapagão deu à luz a seis machos imponentes. — Estendeu os braços para todos. — Estarei mais do que contente em entregá-los a vós.
— É uma gentileza grandiosa, Vossa Alteza Randi — falara rainha Kya Mynsom, passando o dorso da mão no queixo. Era uma mulher de cabelos negros ornados com fitas verdes e brancas, alternando entre as madeixas negras e as poucas e elegantes grisalhas. — Soube que os cães de Kielrun seguem seus donos lado a lado, até protegem seus mestres na cama. Companheiros de lealdade irrefutável.
Princesa Randi fez um sorriso quase sem curvas. Ezekel sentiu um calafrio, como se o grama dos olhos da rainha de Flassam houvessem incendiado uma chama negra nos da princesa.
— Não há ser mais leal que um bom cão — dissera, enlaçando o indicador na corrente. — Eles te seguem, te obedecem, te amam incondicionalmente e — parou, fitou Ezekel e devolveu: — acima de todas as coisas, não pisam no próprio chapéu porque Deus não fez chover. São animais demasiado inteligentes, se me cabe o comentário.
— Creio que lhe caiba muito bem, princesa — dissera, com o rosto impassível, e volveu as costas à espaldeira. — Certamente, são inteligentes e adoráveis.
“Os comentários de Ofina sobre as amigas são mais sutis…”, pensara Ezekel. Balançou bruscamente a cabeça e olhou rapidamente para o teto. Ignorou um comentário de Randi e deu um longo passo à frente, um pouco para a direita a fim de evitar as proximidades do cachorro, cuja língua azulada balançava como o de uma criança. Sua capa esvoaçou por um breve momento quando os cuidadores-de-dragão fecharam as portas duplas, forradas de veludo e borracha recifana.
Ezekel ergueu o peito. Seus passos ecoaram enquanto se dirigia ao centro do salão. A mesa redonda era repartida em duas, separadas por pouco mais que meio metro. No entanto, tinha quase quinze metros de diâmetro, e no centro do piso, o brasão de Wouleviel fora entalhado e pintado perfeitamente sobre a rocha-anciã. “Cinquenta, não dez nem cem.”
— Vir ered duharazhi — cumprimentou-os, traçando o sinal de seu padroeiro no peito. — Que os Deuses nos protejam e nos guiem para o bem destas terras.
— Que sejam louvados e adorados — responderam em uníssono…
— Que Ele tenha misericórdia de nós — respondera Randi. Rainha Lycia Troikg ficou calada, se encolhendo nos ombros.
Fitou o irmão. Vestido com um gibão de brocado sobre a camisa, mantinha sua expressão séria — trazia conforto para Ezekel. Fitou príncipe Howan Bloemennen, o único que mantinha sobre a mesa papéis, tinta e pena — estava com olhos semicerrados, como se cercado de inimigos desprezáveis. Fitou rainha Kya Mynsom. Um vestido alvo e verde caia em camadas de tecido sobre a pele tisnada. Fitou de esguelha a garota ruiva, cujos olhos verdes não conseguiam decidir se focavam no cão grande como um urso ou em Ezekel.
Fitou Randi, que acenava com a mão livre e sorria.
Fitou as próprias pernas, trêmulas e fracas. “Cale-se! Não cabe ao id Baene demonstrar fraqueza.”
— Como é de tradição, eu, Ezekel Ainee Godwill, atual id Baene da Cidade de Diamante e diplomata dos Cinco Reinos saúdo-vos. — Rapidamente, retirou do peito um pergaminho novo, ainda selado com cera. Rasgou a borda do papel vagarosamente e abriu-o: — Antes de tudo, como também é de tradição, lerei as recomendações dos sábios do Cirdário. — Pigarrou, focou os olhos e começou:
Labutamos nosso conhecimento sobre tal
Chegamos em resposta racional:
Conflito é indesejado e terá consequência abismal.
Por duas noites jejuamos, lemos os acontecimentos e meditamos
Derrota nos espera? Tal não concluamos!
— … — Ezekel fechou os olhos e suspirou. “É a cara do reitor…”
— A métrica é-é pé-péssima — falara timidamente Lycia Troikg. Assim que recebeu olhares, recuou a cabeça para dentro dos ombros.
— …Peço perdão por isso… Tentarei traduzir para algo mais formal. — Ergueu os ombros e endureceu a voz. — Traduzirei. — Fez um esforço para não suspirar. O erro já fora cometido.
— Seria muito bem-vindo — avisara príncipe Howan, cerrando os dentes.
— Aham… Os ciles do Cirdário receberam relatos de cile Henri, do Olho que Chora, que serve diretamente ao duque Theolor Beesh de Aavier. Eram relatos de pessoas, algumas vítimas, portanto, não poderiam afirmar com toda certeza. As vítimas do ataque alegaram sentir cheiro de groselha, ervas de cheiro forte. Um ou outro reportou odor de alenísea. Concluíram que foi peralhe. — Olhou rápido para o irmão. — Erva eztrieliziana. Fora plantada em Aavier antes da reconquista. Tem capacidades calmantes se bebida, paralisante se comida, e mata pelo pulmão se respirada, mas é difícil queimá-la devidamente. Relaxa os pulmões e dificulta a respiração…
— Se foi plantada aqui, qualquer um de Aavier poderia tê-las — cortou Howan. — Toda maldita vez que Aavier foi invadida pelos Imperiais, a primeira coisa que fizeram foi agricultura!
— Esquece-te de que tudo relacionado ao Império fora derrubado e queimado durante a Reconquista — refutou rei Rikard. — Foram imperiais.
— Aavier é grande, Vossa Majestade! — príncipe Howan cerrou os dentes. Rikard continuou impassível. — Muito maior que os outros Reinos, e não carece de terras intocadas e florestas velhas. Ode dos Pássaros até hoje conta com cavernas não tocadas e flor-de-cítara.
— Então concorda que foram aavienses quem tentou matar a nobreza de Aavier? — questionou princesa Randi, escorada no trono. — Que Deus tenha misericórdia: invés de um inimigo, temos um traidor!
— Isso não procede! — bramiu príncipe Howan, batendo na mesa. — Meu povo…
— Seu povo? — questionara rainha Kya. — Ainda não é rei, Alteza. O homem que apressa a morte de parentes é cem vezes amaldiçoado.
— Não disse nada disso! — gritara o príncipe, batendo os punhos na mesa com tanta força que o tonel de tinta caiu da cadeira. — O que diabos passa-se em suas cabeças?!
— Se acalm…
— Não, não! — interrompeu Randi, deixando Ezekel a quase morder a língua. — Quero ouvir o jovem príncipe. — Apoiou a cabeça na mão livre. — O que diabos se passa em nossas cabeças?
O príncipe enrubesceu. Não o corar que Ofina fazia em Ezekel: era um rosto vermelho de constrangimento misturado com um cerrar de dentes estralando. Seus cabelos tricolores balançaram ao menear a cabeça furiosamente.
— Se acal…
— Eu — suspirou o Bloemennen; veias saltavam o rosto — apenas estou dizendo: pode não ser um imperial. — Cerrou os punhos. Seu peito subia e descia fervorosamente. — As consequências das ações de meu tio. Era disso que estava tentando falar. Ocorre que desde que o exilamos, Aavier nunca esteve plenamente em paz. O Sanguinário foi um monstro de carisma proporcional, tamanho que ainda compram suas blasfêmias! Sempre há um grupo ou outro de dissidentes saudosistas.
— E tanto seu pai quanto duque Theolor Beesh estavam no mesmo lugar, com sua família completa e em paredes fechadas — falara a Mynsom. — É de grande engenhosidade. Seguindo seu raciocínio, o facínora seria conhecedor de ciências, teria boa comunicação com seus dissidentes aliados e conhecimento de que Vossa Majestade estava dirigindo-se para o Olho que Chora. — Apontou a ele seus olhos duros. — O jovem príncipe tem uma grande missão a lidar, vejo eu.
Os olhos de Howan arregalaram.
— Theolor Beesh já o encontrou — afirmou rei Rikard Godwill, franzindo o cenho. — Chamava-se Lefed Jander. Expulso de Ocas Ciled. Lutou por Better Bloemennen em sua infantaria. Era jardineiro o Olho que Chora. Os seus foram enforcados na sua frente. Ele, decepado pelas mãos do duque.
— Vejam só: solucionado! — falara o rapaz. — Agora acordemos com a paz. Meu pai precisa de mim ao seu lado.
Ezekel se calou. Suas pernas tremiam e estava pálido. Ainda não era o meio da primavera. Por que estava tão suado? “Isso poderia terminar assim?”, pensara. Um leve sorriso lutava para aparecer nos seus lábios finos. “Talvez, só talvez… haja paz? Por que descartei essa possibilidade e me preparei para guerra? Por quê?!”
— Re-retorne… à ca-carta. Por favor…
— Ah. — Pigarrou. As voz infantil da Pequena Rainha quase o fizeram saltar. “Não deve haver nada de pior…” — …respiração. No entanto, para que pare os pulmões de um… homem adulto… ela precisa ser misturada com ferned… outra planta nativa do império. Esta… tarda trinta anos para crescer e é rara de se achar até no Império, segundo relatos de imperiais desertores.
Howan empalideceu. Rainha Lycia Troikg abaixou a cabeça e fungou, apertando as mãozinhas. Parecia sussurrar coisas dolorosas. “Por que tenho que ser o mensageiro da desgraça?!”, crocitara Ezekel. “Não, ainda há chances.”
— Isso só quer dizer que a planta pode ter sido plantada aqui também — falou o id Baene. Rikard olhou-o de esguelha. “Por que seu olhar está furioso?!”
— A planta demora trinta anos para crescer — suspirou um pálido Howan Bloemennen, cobrindo o rosto com as mãos. — Se fora plantada na Reconquista, teria crescido após e ninguém notaria.
Ezekel suspirou. “Sim, pode ser isso!” No entanto, a carta tinha mais sobre a ferned. Muito mais. Descrevia folhas lilases, galhos e tronco retorcidos. Começara a ficar tão pálido quanto o príncipe Bloemennen.
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