Capítulo XXVII – Revelações de Renyan

    A paisagem noturna naquele mundo era diferente da minha terra natal.

    Na minha terra natal, havia apenas um satélite natural, uma única lua meio azulada, meio esverdeada, que iluminava o céu nas noites sem nuvens.

    Em Daolong, em vez de uma pequena lua distante, um enorme corpo celeste dourado dominava o horizonte, e iluminava o céu ao refletir a luz da estrela. Ao redor dele, quatro esferas menores, uma verde, duas azuis, e uma de tom amarelado completavam o cenário, lado a lado com as estrelas.

    Olhei para cima, com um sorriso discreto. 

    Naquela imensidão de luzes, onde estava o meu lar? Será que eu conseguiria o achar?

    Eu não era do tipo nostálgico, ou muito sentimental. Mesmo assim, olhar para as estrelas, me dava uma sensação estranha, saudade de casa talvez? Não fazia sentido, aquela não era a minha primeira viagem para um mundo distante e diferente do meu. 

    — Thomas? — Lefkó quebrou a minha reflexão, e me trouxe de volta a realidade. — Thomas! 

    Controlei-me para não agarrá-la, e manter a calma. Ela não confiava nas minhas habilidades? Para que tanto alarde?

    — Não precisa gritar — respondi, com um suspiro irritado.

    Me levantei da pedra onde eu estava sentado, no centro de uma clareira, cercado por uma floresta de pinheiros, mognos, ciprestes e abetos.

    Levei a mão na boca para cobrir um leve bocejo. 

    Eu sentia a aproximação de vários homens ao longe. Renyan não havia aceitado o meu acordo, ele não desejava uma luta de igual para igual.

    — Eles estão vindo, de todos os lados — disse Lefkó, ao usar sua sensibilidade incomum como animal mágico.

    — Eu sei… — Apesar de eu não ser um animal mágico, o uso constante da carta do Louco me permitia também uma sensibilidade sobre o que acontecia ao meu redor.

    — Pensei que eles teriam honra… — murmurou ela, com um tom entre desprezo e decepção, e então, se escondeu dentro do meu casaco.

    Não consegui conter o riso.

    — Não me faça rir numa hora dessas — disse, ao cobrir o rosto com a mão e tentar conter o meu sorriso. — Preciso parecer sério.

    Luzes começaram a surgir entre as árvores, tochas e lanternas. A noite em Daolong não era exatamente escura; o brilho dourado do corpo celeste no céu tornava tudo mais visível que uma noite de lua cheia na minha terra natal.

    Os homens se aproximavam em formação ordenada.

    Não eram guardas da cidade, a maioria deles vestia os trajes típicos dos discípulos da Seita Hua Yuling. Quase todos eram de baixo nível, com menos de uma dúzia de discípulos internos e apenas três anciões entre eles.

    Mas quem liderava a comitiva não era nenhum deles.

    Era Hua Yuling Renyan, ele vestia um manto amarelo bem simples, sem muitos detalhes ou inscrições. Era um estranho contraste com as luxuosas roupas de seda bordada que costumava usar.

    Deixei que se aproximassem até pararem a uns cinco metros de mim.

    Cruzei os braços e ergui o queixo.

    — Pensei que tinha sido claro — disse eu, com um meio sorriso. — Era para vir sozinho. Um duelo justo.

    Renyan avançou alguns passos, o rosto tenso.

    — Senhor Thomas… você tem ideia do que fez?

    — Tenho, sim. Achei que o duelo tivesse resolvido tudo — respondi, e dei de ombros. Afinal, Hua Yuling Kai havia prometido isso.

    Um dos anciões tomou a frente, a voz firme, diferentemente dos outros discípulos, ele não demonstrava medo ou qualquer outra emoção. Sua voz era fria e cuidadosa.

    — O duelo removeu as acusações de assassinato, mas você ainda responde por falsificação de moedas.

    — Isso nem faz sentido. — Revirei o olhar, ainda incrédulo com tudo aquilo.

    — Jiahao nos contou tudo. — O ancião ergueu o dedo, teatral. — Sobre o seu método de criar moedas com ligas de cobre barato, revestidas por uma fina camada de ouro.

    — O quê? — Por um instante, fiquei completamente confuso. E então, comecei a rir. Rir alto, como um completo lunático.

    Os discípulos me olharam com certa estranheza, porém, os anciões e Renyan mantiveram-se com suas expressões congeladas.

    — Isso nem faz sentido, meu artefato copia exatamente a composição da moeda original — expliquei com uma gargalhada.

    — Então você admite! — O ancião apontou para mim, um tanto satisfeito pelas minhas palavras. — Você é um falsificador! E ainda usa um artefato roubado do santo palácio do Imperador Dragão! Nós, da seita Hua Yuling, iremos trazer justiça! Entregue imediatamente o artefato para que este seja devolvido para o seu lugar de origem.

    — É o quê? — Olhei para ele, e cocei a minha orelha.

    Tudo se resumia em ganância.

    Jiahao e o patriarca Kai se juntaram em um complô para tentar extorquir minha “riqueza”. Lefkó tinha razão, eu me exibi demais, e agora pagava o preço de chamar tanta atenção.

    Coloquei a mão no bolso, e mostrei a bolsa de moedas para eles. Os olhos dos anciões brilharam mais que a luz das luas acima de nós. Renyan, no entanto, manteve a expressão séria.

    — Vocês não vão saber usar a “Bolsa de Midas”. Mas se a querem tanto, venham pegar ela. — Guardei ela novamente no bolso, e retirei meu baralho, pronto para a batalha.

    Os homens trocaram olhares e se ajeitaram em postura de combate. Renyan estendeu sua mão para cima num gesto de comando; e todos ficaram em silêncio. Embora tivesse dezessete anos, seu papel como herdeiro lhe garantia hierarquia sobre a maioria ali.

    — Senhor Thomas… — começou ele, a voz calma escondia um certo ressentimento e raiva — Acredito que não saiba o que aconteceu com seus comparsas. Fugiu tão depressa que os deixou para trás.

    — Não deixei ninguém para trás — murmurei, desconfiado. Meu dedo inquieto girava a carta de dez paus, a escolhida para aquela noite.

    Nela, um homem de rosto pintado com linhas vermelhas e pretas montava um cavalo em disparada. Empunhava uma carabina em uma mão e segurava as rédeas com a outra, e avançava contra inimigos de armaduras reluzentes e capacetes morrión, recém-desembarcados de suas caravelas.

    Renyan me encarou com raiva e desprezo.

    — Meu pai não teve escolha. A falsificação de moeda é um crime gravíssimo. A punição não podia ser branda.

    Inclinei um pouco a cabeça, e questionei:

     — E qual foi a punição?

    Antes que Renyan respondesse, um dos anciões deu um passo à frente, o tom impiedoso:

    — Extermínio Familiar.

    O termo não era incomum para mim. Se fosse o tipo de punição que eu imaginava, meu próprio povo a aplicava também, e eu já havia participado de uma dessas punições.

    — O que seria isso? — perguntei, embora já soubesse, em parte, a resposta que seria dada.

    — Toda a família, e os envolvidos serão mortos, e suas residências queimadas. O nome da família foi desonrado, e o preço deve ser pago.

    Fiquei em silêncio por um instante, ao juntar as peças do quebra-cabeça. Hua Yuling Kai havia preparado algo, e de alguma forma, eu havia caído em sua armadilha.

    — Eu não sei do que vocês estão falando — murmurei, o dedo já inquieto, pronto para invocar o poder da carta e transformar a conversa em combate.

    — Boa tentativa, Senhor Thomas. — O ancião sorriu, com o tom venenoso de quem saboreia uma vitória pessoal. — O clã Wen Qishu já foi exterminado enquanto o senhor tentava fugir.

    — O quê? — Arregalei os olhos.

    Renyan deixou sua expressão fria se esvair, e o seu rosto foi tomado pelo ódio e pela fúria.

    — Wen Qishu Jiahao tentou lutar contra o meu pai, e proteger sua família. É claro que fracassou. Agora, ele está preso, e será executado em breve.

    — Ué, achei que ele tivesse me “dedurado”. — Fiz uma expressão de aspas com os dedos. A história contada por Renyan não fazia sentido, tinha que haver alguma coisa a mais.

    — Ele confessou — disse o ancião, a malícia na sua voz. — Depois de ser capturado, tentando salvar os que restavam. Chorou como uma criança quando seu primogênito foi…

    — Cale-se! — Renyan o interrompeu com um grito de raiva.

    Nada daquilo fazia sentido. O tempo entre o duelo com Lingxin e minha fuga da ilha fora curto demais para tudo isso acontecer.

    Agora eu via meus erros com clareza. Jiahao nunca havia se aliado aos Hua Yuling. E provavelmente, nunca havia confessado nada.

    Suspirei fundo, tentei reorganizar meus pensamentos e pensar em algum novo plano.

    A ideia surgiu clara na minha mente.

    Era obvio, eu só precisava prestar um pouco mais de atenção no comportamento de Renyan.

    — E quanto a Mei? — perguntei, com calma.

    Notei o leve tremor no maxilar dele antes mesmo da resposta. Era claro: ela era o verdadeiro motivo por trás de toda aquela raiva.

    — Você é o culpado de tudo isso! — Ele apontou o dedo para mim, e libertou sua fúria. 

    Uma intenção assassina descomunal se espalhou pela clareira, direcionada totalmente para mim.

    — Eu? — Não pude deixar de rir. — Eu sou apenas um viajante, e agora você me culpa pela morte dela?

    — Meu pai irá perdoá-la, tenho fé, ele fará isso por mim… — Renyan deu um passo a frente. — Isto é, se eu provar o meu valor, ao trazer sua cabeça…

    Perdoá-la? A ideia de que Mei pudesse ser perdoada indicava algo que eu não esperava: talvez ela ainda estivesse viva.

    — Ela está viva? — pressionei, eu queria arrancar dele cada informação possível.

    — Será encontrada em breve — respondeu Renyan, com um brilho obsessivo nos olhos. — Quando isso acontecer, eu terei sua mão em casamento. Vou salvá-la do destino que sua família lhe impôs.

    — Esqueça isso garoto, nem em mil anos você conseguirá me derrotar… — Suspirei, ao prever o final daquela luta. E então, levantei a carta que eu segurava para cima para ativar a sua habilidade. — Cavaleiro de Paus!

    A carta brilhou em dourado e se desfez num pó fino que caiu no ar como faíscas.

    — Um talismã de papel? — murmurou um dos discípulos, meio descrente.

    — Não tenham medo! — gritou o ancião para os demais, ao tentar encorajá-los. — Somos mais fortes que esse patético sem Dantian! Ele recorre a truques para nos derrotar!

    — Senhor Thomas, renda-se agora e eu lhe darei uma morte limpa e honrosa. — Renyan, desembainhou uma espada comprida e a apontou para mim. — Somos mais de cinquenta. Muitos nas últimas camadas do primeiro reino, e alguns na segunda camada. E quanto ao senhor? O que tem para nos desafiar?

    — O que eu tenho? — Eu sorri com ironia. — Que pergunta bela, e aguarda uma resposta mais graciosa que ela.

    Senti a terra tremer sob meus pés; uma vibração sutil. Eram os sinais da ativação da habilidade.

    — Então me responda, o que você tem? — Os olhos de Renyan exibiam uma aparência diferente de antes. Até mesmo sua espada parecia ter vontade própria, louca para me cortar ao meio.

    — Vou te dizer em breve… — murmurei, e mantive o meu sorriso desdenhoso. Minha armadilha estava quase finalizada.

    Renyan fez um gesto e os discípulos avançaram, um só corpo: lanças erguidas, vozes uníssonas.

    — Matem-no! — ordenou ele.

    A horda lançou-se em minha direção; a clareira tornou-se linha reta de madeira, lâminas e botas. Lambi os beiços e gritei com toda a garganta:

    — Barril!

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