1.

    A poeira ainda caía do teto, e cada respiração lhe deixava ainda mais ansiosa. Helena rastejava, arrastando-se por entre destroços, sentindo o frio do chão grudar na pele. Quando enfim encontrou um enorme cilindro de madeira, apoiou-se nele, tentando respirar. 

    Foi então que algo surgiu à distância — um borrão em meio a escuridão, e dentro dele, uma cor hipnotizante.

    Um vulto vermelho, que se misturava à escuridão com naturalidade.

    O formato daquele mesmo ser que a perseguia nos pensamentos e devaneios — agora, materializado.

    Conseguia ver sua brutalidade.

    Atirando. Correndo. Matando.

    Partindo uma pessoa, duas.

    “Aquela coisa está viva? Como…?”, internalizou, sua respiração acelerou, curta e irregular.

    De repente, um dos soldados de preto avistou Helena em seu devaneio e atirou na sua direção, acertando na madeira em que estava escorada.

    Lascas voaram.

    No susto, Helena fugiu, tropeçando, e se escondendo atrás de prateleiras e máquinas quebradas enquanto corria. Ainda assim, seus olhos seguiam aquela coisa — o vulto vermelho — mesmo em sua evasão.

    “Isso é real? Ela está viva afinal…”, repetiu para si enquanto a observava e escutava o grito dos desafortunados que se esbarravam com aquilo.

    Uma curva errada e a perdeu de vista.

    Desapareceu, como se nunca estivesse a princípio.

    E então um barulho correu de seu lado, um inimigo surgiu no meio do corredor: o soldado que a perseguia.

    Helena sentiu um resquício de medo com aquela arma apontada para si.

    O dedo dele já quase concluía o movimento no gatilho — mas não houve tempo. Com um estalo seco, o corpo desabou como um peso morto antes que pudesse reagir.

    *BANG!*

    Sua cabeça perfurada por um projétil preciso.

    O sangue espirrou no rosto de Helena — quente, fresco.

    Atrás dele, sob a luz fraca de uma lamparina, estava aquela coisa.

    Segurava uma arma com uma lâmina acoplada à ponta.

    Sorria — um sorriso inocente como o de uma criança, ou uma princesa, ou um demônio.

    [“Pegue-a”, disse a criatura, “Meu presente para ti.”]

    Helena olhou para o chão: uma arma, caída, esperando.

    Mas antes que pudesse decidir, um disparo ecoou — atingindo a fonte de luz acima daquela coisa.

    Mesmo envolta pela escuridão, Helena ainda podia ver o sorriso.

    Um sorriso escarlate.

    “Péssimo momento para isso voltar…”, pensou, levando uma das mãos à têmpora.

    De repente, um vento cortante passou sob seu braço. Alvejada novamente.

    Rapidamente voltou-lhe a percepção de que nenhum lugar ali era seguro.

    Abaixou-se, pegou a arma e correu.

    Do outro lado, Melissa ainda tateava o caminho com sua fonte de luz quase morta, até esbarrar em Bravo.

    — Bravo! — chamou, aliviada.

    — Olá, Melissa — dizia meio ofegante.

    Ele ainda estava de joelhos, debilitado.

    Melissa arrancou o escudo da mão dele e o jogou no chão com estrondo. Depois deixou sua luz hesitante de lado e o ajudou a se levantar: — Vamos! — disse, apoiando-o no ombro. — Me deve uma, grandão.

    — Sabe onde está o Caio? — perguntou Bravo, arfando.

    — Não. Aquele infeliz deve estar longe daqui.

    — E a rys?

    — Me separei dela.

    Um disparo os interrompeu — cheiro de pólvora vindo de cima.

    — Merda! — gritou Melissa, exausta da confusão.

    As balas ricocheteavam no chão enquanto corriam em zigue-zague. Se jogaram atrás de um separador metálico.

    No teto, uma passarela de ferro vibrava sob o peso de botas.

    A escuridão tomava tudo — quase todas as luzes já haviam sido destruídas. Algumas mínimas fagulhas restavam se espalhando pelo chão.

    — Gente covarde! — vociferou Melissa.

    — A morte é a nossa clemência! — zombou uma voz entre as sombras.

    Então, uma figura surgiu do breu: era Caio.

    Melissa, por reflexo, quase atirou.

    — Graças a Deus estão vivos — disse ele, ainda ofegante.

    — Ow, Caio! Não assusta! Quer me matar?! — retrucou ela.

    Bravo permanecia em silêncio, atento ao som dos passos ao redor.

    — Sabem onde está a raposinha? — perguntou Caio, aflito.

    — Sério que tá mais preocupado com ela do que com a gente? — Melissa bufou.

    — Não é is—

    Uma rajada adentrou a conversa. O som reverberante dos projéteis penetrava a estrutura. 

    Melissa puxou Bravo pelo braço, e os dois se jogaram para o lado, Caio se voltou para trás. 

    Correram desordenados e se abrigaram atrás de outro maquinário, tentando recuperar o fôlego e entender de onde vinham os novos disparos.

    — Inferno, Caio! A gente precisa sair daqui! Esquece a rys! — gritou Melissa, segurando o braço machucado.

    — Melissa, você não está entendendo. Ela não é uma rys qualquer.

    — Se não é uma rys qualquer oque é? Uma borboleta?

    — Escuta só uma vez.

    — Então fala!

    — Os rys têm muito lumem, mas não o suficiente pra deixar uma plutonita em vibrância — disse, gaguejando entre as palavras.

    O teto gemeu novamente. Poeira e pequenas telhas começaram a cair ainda mais que o normal.

    Bravo foi o primeiro a perceber — olhou para cima e gritou empurrando-os: — Sai!

    Eles correram, mesmo cansados, empurrando-se uns aos outros.

    Parte do teto da fábrica cedeu.

    Escaparam por pouco e buscaram refúgio sob uma cortina de separação. Seus corpos estavam se cansando.

    — Eu concordo com a Melissa, vamos deixar a rys. Isso tudo foi culpa sua, Caio, para começar — disse Bravo, o tom de voz exacerbado.

    — Não, não, gente, aquela rys, ela é amnésica — Caio ainda tentava.

    — Isso não é da nossa conta — continuou Bravo.

    — Não, escuta, ela tem três caudas, ela mesmo disse, mas não acreditei — complementou Caio na esperança que alguém compreendesse.

    Melissa arregalou os olhos, um lampejo de entendimento atravessando o seu ser — Isso… Eu achei que era um truque dela, você acha que—…

    Antes de Melissa completar a frase, Caio assentiu com a cabeça — Ela é uma bomba, completamente — disse, concluindo.

    Melissa ia continuar, mas foi interrompida.

    Disparos vindo de um ponto cego.

    O grupo dos soldados do rei louco emergiram por de trás da cortina. Sem aviso prévio.

    Atiraram sem confirmar oque exatamente estava na frente deles.

     Um dos projéteis acertou a perna de Caio — o grito foi imediato, seguido por outra rajada ainda mais intensa.

    Eles correram.

    — Aparece logo e morre! — suplicou um dos soldados.

    — Cala a boca, seu rato! — berrou Melissa.

    Em meio a fuga, perceberam que um beco havia se armado.

    Os teocratas apareceram.

    Outro ciclo, se refugiaram com a última esperança atrás de caixas de reposição.

    Os dois grupos se matavam à distância e eles eram apenas o colateral no meio daquela digladiação.

    Bravo, com a sua força, derrubou e arrastou máquinas para retardar o avanço dos homens de preto, logo em seguida se prostrou no chão, segurando seu peito.

    Melissa buscou cobertura e pôs sua visão no alto, seu reflexo foi acurado, derrubou dois teocratas que andavam nas passarelas em poucos segundos. Outros que ousaram avançar por cima recuaram. 

    — A gente não vai aguentar mais, não conseguimos nem andar direito —  expressou Melissa em desespero.

    Caio se virou até o ponto cego de Melissa, mirou e atirou em uma pilha velha de peças que caiu sobre a passagem, tampando o corredor.

    — Não desiste! — exclamou Caio.

    Estavam cercados.

    Completamente.

    A mercê do destino.

    A esperança negava o matrimônio.

    E a insistência era a única coisa que restava.

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