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    O cheiro de café fresco e pão assado ainda pairava no ar quando Aedin ergueu o olhar do prato.
    A mesa era simples, ou o mais simples possível para uma realeza. O grande salão de refeições da fortaleza estava banhado por uma luz suave da manhã, entrando através das janelas altas, quebrada por faixas das cortinas.

    Melissa folheava relatórios ao lado dele, sem comer direito, enquanto Eldrik bebia o café com um ar que misturava disciplina e sonolência.

    — Dormiu? — Aedin perguntou, sem tirar os olhos da caneca.
    — Mais ou menos — respondeu Eldrik, com aquele meio sorriso que o pai já conhecia. — O cheiro das bestas queimadas não ajuda, parece ficar impregnado no nariz.
    — Pelo menos é cheiro de cidade viva — retrucou Aedin, antes de beber o resto do café.

    Melissa não comentou, apenas passou a mão pelos papéis. Sua expressão era de cálculo.
    — A reconstrução quase finalizada, as casas já estão erguidas a muralha já foi finalizada, falta apenas a pavimentação da nova avenida de acesso a área, mas os pedreiros estão no limite. Vamos precisar redistribuir mais homens do leste. — Ela suspirou, sem emoção visível. — E antes que pergunte, sim, eu já mandei preparar novos contratos.

    Aedin soltou um som que era quase uma risada.
    — Eu não ia perguntar.
    — Ia sim. — Melissa respondeu, seca, sem olhar para ele.

    Eldrik riu baixo.
    O clima estava leve o suficiente para ser raro. Apesar da tragédia sobre a cidade, Eldrik estava feliz em ver a sua família começando a se reconstruir.

    Foi quando a porta do salão se abriu com um estalo.
    Um mensageiro atravessou o corredor, suando, o elmo pendurado no braço. Parou diante da mesa e fez uma reverência rápida.

    — Majestade, Alteza, Senhora Valcor — disse em um fôlego só. — A caravana de Altheria foi avistada nos portões sul. Estão entrando na cidade neste momento.

    O ar pareceu mudar.
    Melissa ergueu o olhar devagar, as sobrancelhas arqueadas apenas o suficiente para revelar atenção.
    Aedin recostou-se na cadeira, o corpo pesado, mas o olhar súbito e desperto.

    — Já tão cedo… — murmurou. — A viagem deles foi rápida.

    Eldrik se levantou de imediato.
    — Devo preparar o pátio para recepção formal?
    — Não. — Aedin se levantou também, ajustando a postura. — Vá vestir o traje cerimonial. — Olhou para o filho com firmeza. — E se assegure de estar elegante..

    Eldrik arqueou um sorriso cansado.
    — Com relação a isso, pode ficar despreocupado..

    Melissa já estava em pé, organizando os papéis em um feixe único.
    — Eu o acompanho — disse segurando o braço de Aedin, Eles se viraram para o corredor e seguram para o quarto.

    O mensageiro saiu correndo avisando as serviçais e guardas da corte. O som dos passos se perdeu nas pedras.


    O quarto do casal real ainda carregava cheiro de óleo de lâmpada e essências.
    Melissa entrou primeiro, empurrando a porta com suavidade. Aedin a seguiu, fechando-a atrás de si.
    Por um instante, o silêncio os envolveu.

    Melissa se aproximou da penteadeira, o reflexo do espelho capturando metade de seu rosto.
    — Aedin… — disse, e o tom dela mudou. A formalidade se dissolveu, cedendo lugar à precisão fria e íntima. — Antes que desçamos, precisamos alinhar algumas coisas.

    Ele a observou, já sabendo que aquele “alinhar” significava.

    — Não provoque ninguém — ela começou, virando-se para ele. — Não tente medir força, nem brincar com sarcasmo. Essa visita é uma ponte, não um campo de prova.

    Aedin ergueu uma sobrancelha.
    — Eu aprendi umas coisas com você nesses anos, lembra?

    Ela o ignorou com maestria.
    — Quando Lysvallis for apresentada, não a trate como convidada. Trate-a como igual. Ela é uma rainha agora, e o gesto de igualdade vai definir como esse encontro será lembrado.

    Aedin cruzou os braços.
    — Não vou me esquecer disso.

    Melissa se aproximou um passo, firme.
    — E, Aedin… — ela olhou diretamente nos olhos dele. — Depois das formalidades, desça do trono. Fique ao lado dela para conversar. Nenhuma distância deve parecer hierárquica.

    Ele soltou um riso breve, quase carinhoso.
    — Eu já tinha planejado isso.

    Melissa o encarou com descrença.
    — Tinha?

    — Claro. — Aedin ajeitou o cinto do traje cerimonial que descansava sobre o móvel. — A parte mais difícil vai ser não chamar a Rainha de pequena Lys.. vai ser difícil afastar a imagem da menina que roubava vinho com o Eldrik e fugia das aulas de etiqueta a essa Rainha.

    O olhar de Melissa se suavizou, apenas um pouco.
    — A velha Lysvallis não existe mais.

    — Eu sei — disse ele, puxando o sobretudo vermelho e cinza. — Mas é impossível não lembrar.

    Por um momento, o silêncio os cercou de novo. Ele a olhou pelo reflexo do espelho com um sorriso curto, e ela, por um instante, pareceu querer dizer algo, mas se conteve.
    Aedin apenas terminou de se vestir. O traje formal, com o brasão dourado da casa Valcor no peito, refletia o homem e o rei que ele precisava ser.

    Quando saíram, o corredor principal já estava preparado. Guardas em formação, tochas apagadas, luz natural entrando pelos vitrais reconstruídos.
    Eldrik esperava no final, trajando a farda escarlate e cinza dos herdeiros reais. O tecido impecável contrastava com o cansaço visível nos olhos, mas havia orgulho na postura.

    Melissa o avaliou de cima a baixo e assentiu com aprovação.
    — Está impecável.

    Eldrik apenas sorriu de leve.

    Aedin passou entre eles, a mão roçando brevemente o ombro do filho, um gesto silencioso de aprovação.

    A grande porta dupla da sala do trono estava aberta, e além dela, a varanda que dava para o pátio já exibia uma mesa montada para o banquete sugestão de Melissa, para que o primeiro contato não fosse apenas diplomático, mas também humano.

    O salão estava em silêncio e curiosamente vazio sem os nobres.
    Aedin e Melissa tomaram seus lugares nos tronos. Eldrik posicionou-se um pouco atrás, postura firme, olhar atento.

    Um guarda real aproximou-se, voz grave:
    — Majestade, a comitiva de Altheria aguarda audiência.

    Aedin assentiu, o tom mudando, o peso real voltando à voz.
    — Que entrem.


    O salão de recepção de Cervalhion exalava a energia de uma cidade que vivia sempre à beira do combate, mas que ainda sabia exibir elegância quando exigido. Lanças cerimoniais cruzavam-se sobre o arco da entrada, tapeçarias sob o brasão dos Valcor pendiam em coluna, e, logo além, o azul prateado dos convidados de Altheria atravessava o corredor em contraste gritante.

    Ian caminhava em silêncio ao lado de Lysvallis e Aisha, como uma sombra que se recusava a ser lida. O Guardião observava as vigas altas, a circulação dos guardas, as distâncias e as rotas de fuga. Mas havia algo e estranho ali, uma mana velha impregnada nas paredes, diferente demais para ser natural uma vibração que destoava do clima do castelo. Aisha, por sua vez, tentava absorver tudo o movimento frenético, as pessoas, a sensação de estar em um lugar tão vivo. Lys, sempre impecável, caminhava com o porte de alguém que conhecia o valor do próprio nome.

    O som das portas sendo abertas ecoou como um trovão contido.
    Aedin ajeitou o manto nos ombros.

    As portas da sala do trono se abriram devagar, o som do ferro das dobradiças deslizando ecoando como uma pequena tempestade contida entre os pilares.

    O primeiro passo dentro do salão foi acompanhado por silêncio absoluto.

    A caravana de Altheria da Névoa entrou em formação perfeita.

    À frente, Lysvallis caminhava com o porte de quem não precisava de coroas para ser reconhecida. O vestido longo azul-escuro desenhava-se pelo corpo com elegância calculada, o tecido movendo-se como água sob luz pálida. O decote discreto realçava o pescoço ereto, e sobre os ombros repousava uma capa azul mais profunda, com bordas de arminho branco. Os cabelos estavam presos num coque alto, duas mechas soltas caindo pelas laterais do rosto, destacando os olhos.

    À direita dela, Ian, e bastava um olhar para entender por que chamavam-no de Guardião do Norte. O traje era da mesma paleta fria, mas de corte militar, com o sobretudo curto realçando a postura. O cabelo penteado para trás, realçava o rosto firme e os olhos escuros, densos. Caminhava em silêncio quase sem emitir som, como se sua existência fosse uma miragem, mas a presença dele preenchia o espaço como se o próprio ar e a mana o reconhecesse vibrando ao seu redor.

    À direita de Ian, Elenys mantinha uma postura altiva, olhar observador, vestida em tons de prata.
    À esquerda de Lysvallis, Alexia, matriarca da segunda casa, trajando azul pálido com fios de ouro, o símbolo da casa brilhando no broche preso ao ombro.
    Logo atrás, Aisha, o passo leve e silencioso, o vestido branco contrastando com os tons frios dos outros. Ela olhava ao redor com curiosidade mal disfarçada um traço quase humano demais para aquele cortejo.

    O restante da comitiva, quinze representantes das casas nobres de Altheria, formava uma disposição em ponta de lança, os mais importantes à frente, os aprendizes e assessores recuados. Cada um vestia tons de azul, branco e cinza metálico, as cores da cidade da Névoa.

    O salão inteiro parecia ter ficado mais frio.

    Aedin percebeu Melissa endireitar-se levemente no trono ao lado dele, o olhar avaliando cada movimento com interesse controlado. Eldrik, ao fundo, manteve a postura firme, mas o olhar traiu um breve espanto ao ver Ian e Lysvallis.

    O orador de Aedin avançou um passo, abrindo o pergaminho cerimonial.
    Sua voz ecoou, grave:
    — Diante de Sua Majestade Aedin Valcor, Rei de Cervalhion, Senhor das Planícies do Sul e defensor da—

    Aedin levantou a mão, interrompendo-o.

    — Não há necessidade de títulos — disse, com a voz firme. — A caravana de Altheria veio de longe. Vamos poupá-los das formalidades.

    O orador hesitou, mas obedeceu.

    Aedin voltou-se para Lysvallis.
    — Sejam bem-vindos a Cervalhion.

    Lysvallis respondeu com uma reverência elegante, que foi acompanhada de forma impecável por todos os membros da comitiva exceto Ian que continuou firme de pé, enquanto observava os monarcas, o tom de voz controlado, doce e distante de Lys respondeu a fala de Aedin ao mesmo tempo.
    — Em nome de Altheria da Névoa, agradeço a recepção, Majestade. —
    Ela voltou o olhar para Melissa.
    — Lady Valcor… é uma honra finalmente revê-la. Parece ainda mais deslumbrante do que da ultima vez que a vi. Ouvi dizer que sua sabedoria continua a sustentar este reino tanto quanto as muralhas.

    Melissa sorriu, discreta, perfeita.
    — Digo o mesmo, Vossa Majestade. Sua cidade inspira admiração há gerações.

    Lysvallis assentiu, com aquele olhar que pesava mais do que as palavras.
    Depois, voltou-se para Eldrik, e o cumprimento foi rápido, quase afetuoso:
    — E você cresceu… — disse apenas, num tom que fez Melissa levantar as sobrancelhas.

    Aedin apenas manteve o semblante neutro com seus olhos analisando cada um ali presente..

    Lysvallis retomou a postura e prosseguiu:
    — Trouxemos quinze representantes das Dez Casas Nobres de Altheria. Permita-me apresentá-los.

    Ela indicou um a um:
    — Alexia Vallen e Elenys Seryn, Matriarcas e representantes de suas linhagens. —
    Ambas inclinaram levemente a cabeça.
    — E Aisha, aprendiz do nosso Guardião do Norte. —

    Quando o nome foi dito, Aedin direcionou o olhar para a jovem. A jovem sustentou o contato por um segundo antes de baixar os olhos em respeito.

    Lysvallis deu um passo atrás, encerrando a apresentação.
    O silêncio se prolongou apenas o suficiente para se tornar tenso.

    Aedin se levantou do trono.
    O tecido cerimonial arrastando-se pelos degrais, todos os guardas endireitaram a postura.
    Aedin desceu as escadas lentamente, seguido por Melissa e Eldrik.

    Parou diante deles com a expressão levemente inclinada, como alguém que avalia armas num suporte.

    — Altheria chega armada e silenciosa demais para quem veio em busca de diálogo — disse o rei, o tom suave demais para não ser calculado.

    Lys permitiu-se um sorriso fino.

    — Apenas trouxemos aqueles que precisamos. Nem mais, nem menos. Imagino que entenda, majestade.

    Aedin respondeu com o mesmo sorriso, ligeiramente mais afiado.

    — Imagino — repetiu ele. — Que bom que somos todos tão… prudentes.

    Aisha encarou Ian, como se perguntasse silenciosamente: isso é normal?

    Ian apenas respirou fundo.
    Sim. Era normal. Política sempre é uma luta maquiada de diplomacia.

    Ele se virou e se aproximou de Ian.
    De perto, a diferença entre eles era ainda mais nítida, Ian era menor em estatura.

    — É uma honra receber o Guardião do Norte em Cervalhion. — Aedin disse, com voz firme, sem elevar o tom ou se deixar afetar. — Sua ajuda e experiência serão muito bem-vindas em nossos tempos de reconstrução.

    Por um instante, o ar pareceu prender-se entre os dois.
    Ian inclinou levemente a cabeça.
    — A honra é minha, Majestade. —

    Melissa soltou o ar que nem sabia estar segurando.
    Aedin não tinha provocado nada. Nenhuma tensão, nenhum duelo de egos, e isso, para ela, já era uma vitória.

    — Venham. — Aedin fez um gesto, abrindo caminho. — Sejam nossos convidados. Por enquanto.

    A comitiva começou a se mover em direção à varanda.

    Aedin observava Ian com atenção demais. Quase expectativa.
    Quase provocação.

    Ian não respondeu ao olhar. Como se não representasse ameaça alguma.

    Lys sorriu de canto.
    Ela entendeu.
    Os Valcor não estavam acostumados a lidar com alguém que não jogava o jogo deles.

    Aisha, nervosa, ajeitou a capa no ombro e murmurou:

    — Você acha que vai dar briga?

    — Sempre dá — Ian respondeu, sereno. — A diferença é quando.

    O som das botas e tecidos finos misturava-se ao barulho distante das forjas e do vento que soprava do sul e alcançava a varanda.

    Eldrik ficou um instante parado, observando Lysvallis atravessar o salão.
    Ela não olhou para trás, mas havia algo no modo como os passos dela soavam, firme e leve, que trouxe de volta memórias que ele achava ter enterrado com a neve.

    E, enquanto o banquete começava, uma única certeza se firmava dentro dele:
    nem todas as tempestades chegam com trovões.
    Algumas entram sorrindo, vestidas de azul.

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