Capítulo 91 - Diplomacia.
O sol iluminava as ruas e os telhados de Cervalhion quando o banquete foi servido na varanda anexa à sala do trono.
A manhã subia lenta e fria, e a luz atravessava o ar como um véu pálido.
O cheiro de pão quente e especiarias misturava-se ao das flores que enfeitavam a mesa, e por um instante, tudo parecia mais sereno do que realmente era.
A mesa era longa, cerimonial, mas a disposição dos corpos dizia mais que os títulos.
De um lado, os tons quentes e dourados de Cervalhion; do outro, os azuis e prateados de Altheria.
Aedin ocupava a cabeceira, com Melissa à direita e Lysvallis à esquerda.
O contraste entre os dois monarcas era quase como uma pintura o fogo e o gelo sentados frente ao mesmo prato.
O primeiro brinde foi breve, formal.
Depois, o jogo começou.
— Soube que Cervalhion resistiu bem à última investida das bestas — comentou Lysvallis, voz doce, estudada. — Ouvi dizer que a muralha oeste precisou ser reconstruída. Espero que já esteja segura.
Aedin apoiou o cálice.
— Está. — O tom era simples, quase cortante. — Reconstruímos nossas muralhas ainda mais fortes. Como tudo que temos construído.
— Que curioso… — Lys sorriu, inclinando-se levemente. — Altheria se acostumou com o silêncio de Cervalhion. Especialmente quando envia pedidos de ajuda e não obtém resposta. Mesmo tendo sido uma relação forte por gerações.
Aedin desviou o olhar, sustentando o ar de quem se recusa a ceder o terreno.
Melissa observava, sentindo as tensões sutis nos ombros dele.
— Está se referindo às cartas — disse ele, enfim.
— Às três cartas. — Lysvallis corrigiu, polida. — Nenhuma respondida.
— E, mesmo assim, vocês vieram até aqui.
Lys levantou o cálice, o gesto lento e preciso.
— Não porque ainda acredito em alianças antigas. Mas não se engane, o gelo não se esquece.
Melissa se inclinou um pouco, quebrando o clima antes que as palavras afiadas se tornassem farpas abertas.
— Que bom que atenderam ao nosso pedido — disse, serena, mexendo o vinho no cálice. — O calor da proximidade sempre ajuda a derreter dificuldades.
O olhar de Lys encontrou o dela. O tom de voz suavizou um pouco.
— Sempre diplomática, Lady Valcor. Sorte a sua, rei Aedin.
— Tenho sorte, sim — respondeu Aedin, com um meio sorriso. — Mas não vamos deixar crises passadas ditarem como será o nosso relacionamento daqui pra frente. O que acha, rainha Lysvallis?
A conversa seguiu por alguns minutos entre testes e cortes sutis, até que a tensão começou a rarear.
Os dois monarcas ainda se mediam, mas agora com o respeito de duelistas que reconhecem o nível um do outro.
As taças esvaziavam, e o burburinho dos nobres preencheu o espaço que antes era só gelo e política.
Conforme o clima entre Lysvallis e Aedin se estabilizava, Melissa se permitiu focar a atenção na segunda peça-chave daquele encontro: Ian.
O Guardião estava afastado da mesa, junto ao parapeito de pedra.
O sol matinal dourava-lhe o cabelo escuro, penteado para trás com um cuidado improvisado, o que lhe dava um certo charme.
Ele observava a cidade abaixo enquanto comia distraidamente um pedaço de pão e algumas frutas.
A forma como se mantinha em silêncio não era altiva. Era… natural.
Como se aquele silêncio fosse o seu estado original.
Melissa hesitou, depois levantou-se da mesa com delicadeza.
— Com licença.
Aedin apenas assentiu, ainda atento à conversa de Lys.
Ela atravessou o pórtico e se aproximou.
O vento da manhã soprava contra o rosto, trazendo o cheiro das flores que desabrochavam nas margens do rio.
— O banquete não lhe agrada, Guardião? — perguntou, com voz leve.
Ian virou o rosto apenas o bastante para olhá-la.
— Agrada, sim. Só… estou mais acostumado a comer sozinho do que com gente. Quando se passa muito tempo isolado, socializar pode se tornar um desafio.
Melissa riu de leve.
— Então Cervalhion vai lhe dar dor de cabeça, Guardião. Aqui, até o vento conversa.
— Provavelmente. — Ele observou as ruas lá embaixo. — Mas gosto do caos daqui. Parece… vivo.
Ela se encostou ao parapeito, ficando lado a lado com ele.
— Nunca pensei que ouviria o Guardião do Norte falar de caos como algo bonito. As lendas o descrevem como um homem de gelo que parou guerras e moldou o tempo.
— Lendas exageram. — Ele respondeu, calmo, com um sorriso quase imperceptível. — Memórias enfraquecem, histórias se distorcem. A maioria está errada.
— Então você é o mesmo das histórias. — Ela o observava agora com curiosidade genuína. — O mesmo Guardião que selou os portais e manteve as muralhas do norte erguidas quando o resto do continente caiu.
— Depende de quem conta as histórias. — Ele pegou outro pedaço de pão. — Às vezes sou o herói. Às vezes, o vilão.
Melissa franziu o cenho.
— E o que diz você?
Ian demorou a responder.
— Digo que os dois são verdadeiros.
Ela o estudou em silêncio por alguns segundos. Depois, mudou de assunto, mais leve.
— Cervalhion também tem suas lendas. — Ela olhou para a cidade abaixo. — Dizem que o primeiro rei plantou as fundações com as próprias mãos, e que elas crescem um pouco toda vez que a cidade se defende.
Ian arqueou uma sobrancelha.
— Uma fundação que cresce com a vontade do povo? — disse com humor discreto. — Isso explica o tamanho.
A conversa seguiu nesse tom leve, inesperadamente natural e confortável.
Falaram sobre o vento de Altheria, sobre o frio do norte e o calor das planícies, sobre política e guerras sem heróis.
Melissa se surpreendia com o quanto ele ouvia e com o quanto dizia sem se impor.
Ela não esperava que o lendário Guardião do Norte conversasse tanto. E com ela.
O tempo passou sem pressa.
Quando ela percebeu, o som da mesa distante havia se tornado ruído.
Apenas o vento e as vozes permaneciam.
Mas conforme a conversa avançava, uma pergunta começou a martelar em sua mente.
Então, enfim, ela perguntou:
— E por que sumiu por tanto tempo, Guardião?
Ian olhou para ela, de forma demorada, antes de responder.
A voz veio sem peso, mas com a honestidade de quem não precisa se defender.
— Tenho a estranha sensação de que você vai entender, rainha… Foi porque perdi alguém importante. E quando se perde assim… às vezes o mundo fica opaco demais pra simplesmente continuar vivendo nele.
Melissa não respondeu.
A frase a atingiu de uma forma que ela não esperava, porque havia sentido o mesmo desde a morte do primogênito.
Ela apenas assentiu, levemente, e ficou em silêncio com ele.
Foi então que o som de passos rompeu a calma.
Aedin atravessou o limiar, os passos firmes.
O olhar pousou primeiro em Melissa, depois em Ian.
— Está tudo bem? — perguntou.
Melissa assentiu, mas a leve tensão no rosto foi suficiente para acender algo nele.
O rei fitou Ian.
— Então é você o grande Guardião do Norte. Pensei que fosse mais alto.
Melissa ergueu o olhar, em aviso.
— Aedin—
— Está tudo bem. — Ian interrompeu, tranquilo. — E eu esperava um rei com menos necessidade de provar alguma coisa.
Lysvallis se levantou discretamente da mesa, o olhar fixo neles.
— Aedin, peço que repense o que pretende fazer.
Aedin cruzou os braços.
— Mas eu não pretendia fazer nada. Mas você Lysvallis, você é cheia de segredos. Acha que eu não sei que trouxe mais pra minha cidade do que o que anunciou?
Lys tentou falar mas foi cortada por ele.
— Eu acredito que tenha sido um mal-entendido, Lys — cortou ele, com um sorriso frio — e estou disposto a fazer vista grossa dessa vez. Mas, como sinal de perdão, peço apenas um favor.
Deu um passo à frente.
— Um duelo. Oficial, simbólico. Entre Altheria e Cervalhion.
Melissa ficou imóvel.
Lys fechou os olhos, respirando fundo.
E Ian apenas assentiu.
— Interessante…
O vento soprou forte sobre o parapeito, fazendo os estandartes de ambos os reinos vibrarem ao mesmo tempo.
A manhã clara pareceu mais cortante.
O banquete havia terminado.
E o verdadeiro encontro, enfim, começava.

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