Capítulo 95 - Bar do Lince
O Bar do Lince vibrava como sempre, música alta, cheiros fortes, mesas lotadas, risadas e uma leve euforia que só lugares populares demais conseguem manter. Naira o escolhera justamente por isso, rostos desconhecidos se perdiam na confusão, e conversas demais preenchiam o ar para alguém prestar atenção em uma mulher discreta no balcão.
Ela vestia roupas comuns, adequadas ao bairro e ao clima. Nada que chamasse atenção. Levava seu copo à boca devagar, enquanto tentava se convencer que era mais pela necessidade de se misturar do que pela vontade de ingerir álcool. E fingir simpatia sóbria não era exatamente seu talento.
O bar estava cheio quando um grupo de cinco jovens entrou empurrando a porta com risadas e energia demais. Eles se destacavam na hora: roupas caras, capas com bordas limpas demais para alguém que frequentava aquela parte da cidade. Nobres ou filhos de nobres, procurando diversão onde não deveriam.
Um deles que usava uma jaqueta de couro mais discreta, a notou sentada sozinha.
Ele caminhou até ela com calma, com passos medidos mostrando a autoconfiança de alguém acostumado a ser bem recebido. E sua aparência fazendo jus a confiança, bonito, sorriso leve e com um porte atlético.
— Boa noite bela dama. — disse com um gesto cortês. — Me concede uma dança?
— Não. — respondeu Naira, sem desviar os olhos do copo.
Ele piscou, surpreso. Não parecia ofendido, só não estava acostumado ao sabor do “não”.
— Bem… então posso pelo menos fazer companhia? Uma mulher sozinha bebendo aqui a noite costuma chamar atenção indesejada.
— Fala de você? — disse ela, seca. — Tarde demais para isso. E prefiro ficar só.
O sorriso dele desapareceu por um instante. Ele respirou fundo, aceitando a recusa.
— Certo. Sem problema.
Ele deu um passo atras.
Mas um dos amigos dele, já tropeçando nas próprias pernas gritou.
— Ei! — ele avançou, apontando o dedo torto para Naira. — Tá tirando com a gente?
— Calma, Moris. Ela só quer ficar só — o jovem da jaqueta tentou contê-lo, segurando seu braço.
— Vai sentar, cachorrinho. — disse Naira, num tédio quase educado. — Faz xixi lá fora.
O bêbado ficou vermelho como brasa. Num movimento rápido e completamente mal calculado, se soltou da pegada do amigo e agarrou o braço de Naira, tentando puxá-la do banco.
Ela suspirou, não irritada, mas cansada.
O soco veio natural, preciso. O bêbado apagou antes mesmo de começar a cair… mas a força do impacto o jogou para trás, colidindo com uma mesa onde dois homens já bem alterados pela bebida tentavam jogar dados.
Os dois se levantaram como se tivessem esperado a primeira desculpa para brigar.
— QUAL DE VOCÊS FEZ ISSO?! — berrou um deles.
O nobre bonito ergueu as mãos, percebendo o problema que se formava.
— Calma, nós não—
Não adiantou.
A primeira cadeira voou. Depois, alguém escorregou, outro empurrou, e em segundos o Bar do Lince virou um redemoinho de empurrões, copos quebrando e gritos bêbados.
Naira fechou os olhos por um instante, resignada.
— Isso é… parcialmente culpa minha. — murmurou, virando o resto do copo.
Então entrou na briga. Não por necessidade, mas quem recusaria uma boa briga?
Em pouco tempo derrubou dois, desviou de outro e chegou a rir quando um copo passou raspando pela cabeça dela. Era libertador demais para admitir.
Os jovens faziam o possível para se proteger naquele caos.
Mas a farra durou pouco.
A porta se abriu com um baque, e três guardas entraram batendo lanças no chão.
— CHEGA!
O bar inteiro congelou. Até os bêbados pareciam ter recobrado o juízo.
Todos foram empurrados para fora: o nobre atordoado, o amigo desmaiado, o outro grupo furioso… e Naira, que saiu com as mãos levantadas e cara de “ok, já passou”.
Do lado de fora, os envolvidos foram alinhados sob o vento frio da noite, o guarda mais velho esbravejou:
— Vocês querem ferrar com tudo?! Bem hoje?! Justo hoje?
Ninguém respondeu.
— O Capitão Danurem tá voltando da região Oeste ainda essa noite. E vocês fazem ESSA bagunça na véspera?
O silêncio que se seguiu era quase reverente. Até os mais bêbados pareceram ficar sóbrios a reação incomum chamou a tenção de Naira.
— Isso é serio? — O Jovem bonito perguntou preocupado.
— É sim Ronan — O Guarda olhou para o jovem — Eu não ligo para o que você ou seu grupo faz, mas não vem na minha área e cria confusão.
— Peço desculpas Cian — Ronan falou olhando para o soldado que respirava pesadamente — Não era nossa intenção, mas não vai se repetir.
— Acho bom, agora vão embora da minha área, antes que eu decida registrar o que houve — O guarda Cian falou gesticulando para eles se apressarem.
O grupo de jovens começaram a andar e em poucos instantes sumiram da vista ao entrar em uma rua que levava ao centro.
O Guarda, olhou para os dois restantes que compraram a briga, eles estavam de cabeça baixa:
— Que merda Declan, tu quer morrer seu idiota? Você comprou briga com os filhos do Lorde Valcir. E justo na tua folga!
— Desculpa Capitão — O Homem falou sem levantar os olhos — Eu só estava jogando com meu irmão quando aqueles idiotas chegaram e atacaram a moça.
Nesse momento o capitão finalmente direcionou os olhos para Naira.
— Isso é verdade?
Naira ergueu uma sobrancelha, não esperava conseguir uma desculpa pronta dessas para se livrar do problema.
— Isso é verdade! — Ela falou olhando para baixo.
O Guarda Cian respirou fundo passando a mão no rosto:
— Vão embora vocês três. E você, moça… — encarou Naira — Não é seguro pra uma dama andar por aqui desacompanhada. Tenha isso em mente.
Naira fez um aceno breve e se afastou. A mente era um turbilhão.
Quem diabos era esse Danurem, pra deixar até bêbado em silêncio?
A praça central estava mais calma que o bar, mas ainda viva o suficiente para encobrir seus pensamentos. O rio corria ao lado com aquela luz prateada que dava a Cervalhion um ar mais nobre. As lamparinas iluminavam as ruas de acesso, guiando guardas e os poucos transeuntes da noite.
Naira andou alguns passos até perceber alguém parado próximo a uma barraca de carne assada. Ronan. A jaqueta dele estava um pouco amassada e o cabelo desalinhado, marcas discretas do caos no bar. Ele encarava o rio como quem tentava voltar a respirar normalmente.
Quando ela passou, ele a reconheceu e levantou a mão num gesto quase tímido.
— Ei… espera. — Ele caminhou até ela. — Me desculpa pela confusão de antes. Moris é um idiota quando bebe. Não devia ter puxado você daquele jeito.
Naira cruzou os braços, avaliando a sinceridade no rosto dele.
— Você não foi o responsável, porque pede desculpas?
— Devo pedir desculpas já que sou o mais sóbrio do grupo, e o que falhou em impedir o idiota bêbado de te puxar.
— Idiota só quando bebe? — ela provocou.
Ele riu, envergonhado.
— Mais quando bebe. — Depois completou: — Mas você… lutou muito bem. Talvez tenha sido a melhor parte da noite inteira.
Ela deu um meio sorriso, discreto.
— E seus amigos?
— Foram beber mais. — Ele fez uma careta. — Acharam que era boa ideia depois do esporro do Cian. Eu preferi algo mais… sólido. — apontou para a barraca.
Naira se aproximou da mesa improvisada onde o vendedor servia comida quente. Ronan aproveitou a brecha.
— Você não é daqui, né? — ele disse, se apoiando casualmente no balcão. — Seu jeito… não combina com essa parte da cidade.
Naira ergueu uma sobrancelha.
— Isso é a sua tentativa de puxar conversa?
— Só se funcionar. — Ele sorriu. — E funciona?
Ela teve que admitir internamente: funcionava. Ele era ousado, mas não irritante. E claramente não tinha ideia de que estava conversando com alguém que poderia, literalmente, derrubar uma taverna inteira se quisesse.
— Talvez.. mas tem uma coisa que quero saber, quem é Danurem, para todos vocês ficarem com medo?
— Você definitivamente não é daqui.. — Ronan falou ajeitando o cabelo com a mão
Ronan continuou, com o olhar mais atento:
— Se você quer saber quem ele é… posso te contar. Mas quero algo em troca.
— Algo como?
— Uma conversa. — Ele deu de ombros. — Você come comigo, faz uma pergunta, eu respondo. Depois eu posso perguntar algo também. Troca justa?
Naira encarou o jovem por dois segundos longos, tentando entender se aquilo era coragem, inocência ou pura burrice nobre. No fim, decidiu que era entretenimento.
— Tudo bem. — ela respondeu. — Fala.
Ronan pegou dois espetos de carne da barraca e ofereceu um pra ela antes de começar:
— Danurem é o Capitão da Guarda da capital. Mas isso você já deve ter ouvido falar. O que importa mesmo é que ele é… diferente. — Ronan girou o espeto na mão. — É um dos poucos usuários de Ordo que existem por aqui. Ele e forte e Teimoso. Meio doido. Ele adora uma desculpa pra entrar numa briga.
— Um capitão da guarda que gosta de brigar? — Naira tomou um pedaço da carne, mastigando devagar.
— Gosta não… — Ronan sorriu torto — precisa. Dizem que quando ele usa Ordo, fica impossível de parar. Por isso a cidade inteira se acalma quando sabem que ele e sua guarda está voltando. Nenhum bêbado quer virar exemplo.
Naira observa os olhos dele. Medo? Respeito? Os dois.
— Então ele aparece em bares pra bater em quem começou a confusão? — ela pergunta.
— Isso. — Ronan mordeu o próprio espeto. — E às vezes bate até em quem não começou, se achar que merece.
Ela engoliu a carne e limpou os dedos na calça.
Uma figura forte, imprevisível, temida.
Ótimo. Exatamente o tipo de homem que ela precisava entender.
Ronan então encostou-se na mureta da praça, olhando para as lamparinas refletidas no rio.
— Agora é minha vez. — disse. — Quero saber seu nome.
Naira respirou fundo, como quem ponderava se valia a pena ser honesta.
— Naira.
— Um nome bonito. — Ronan respondeu, com aquele sorriso que ele claramente achava irresistível. — Bem-vinda a Cervalhion, Naira. Espero que… — ele olhou para a rua de onde vieram — …o resto da sua noite seja menos caótico do que a primeira parte.
Ela riu de canto.
— Não prometo nada.
Os dois continuaram conversando enquanto comiam, Ronan apontando pontos importantes da cidade, indicando ruas que eram seguras, comentando sobre o mercado de amanhã e sobre as pontes que levavam à área nobre.
Naira ouvia com atenção, não porque precisava, mas porque era útil deixar o garoto falar. E porque a espontaneidade dele, uma coisa tão humana e simples, era quase agradável.
Ronan terminou o último pedaço de carne. Olhou para Naira com aquele sorriso fácil de quem sempre tem mais assunto para puxar.
— O bar melhora depois da segunda rodada — disse ele. — Me acompanha?
Naira arqueou uma sobrancelha.
— É mesmo?
— É muito cedo para se despedir — ele rebateu, levantando as mãos. — E eu ainda quero saber de onde você veio. Posso tentar adivinhar enquanto você bebe.
Ela poderia ter recusado. Deveria, talvez. Mas Ronan aparentemente gostava falar, e isso funcionava perfeitamente para os propósitos dela.
— Então vamos — ela respondeu.
Ronan deu uma risada satisfeita e a guiou para a rua principal norte.
Eles caminharam por alguns minutos até entrarem em outro bar, menor, com mesas de madeira escurecida e cheiro forte de bebida doce.
Assim que atravessaram a porta, Naira percebeu a presença.
No fundo do salão, sentado sozinho, havia um soldado usando uma armadura escura, negra como ferro queimado, com detalhes profundos que lembravam rachaduras em pedra. A postura dele era rígida, atenta, e mesmo sem ver o rosto já que estava de costas, era óbvio que ele estava ali para tenso.
Ronan abriu um sorriso largo.
— Ah, perfeito. — Ele bateu no ombro de Naira, empolgado. — Ele vai adorar você.
Antes que ela protestasse, ele já estava indo na direção do soldado, e ela não teve escolha além de acompanhar.
— Hark! — Ronan chamou, sentando-se sem pedir permissão. — Traz mais duas canecas. Hoje estou apresentando gente nova.
O soldado — Hark — voltou o olhar para Naira. Avaliou. Sem pressa.
— “Outra amiga” sua, Ronan? — a voz dele era baixa e áspera, com o tipo de calma que vinha de quem já viu muita coisa.
— Conhecida recente — Ronan corrigiu, animado. — Naira, este é Hark. Ele é… bem, você vai ver. Hark se apresenta.
Hark inclinou a cabeça em um cumprimento mínimo.
— Seja bem-vinda.
Naira retribuiu, mas seus olhos se prenderam nos detalhes da armadura. Não era apenas ornamentada. Era funcional, reforçada de forma diferente, quase como se fosse feita para aguentar impacto direto ou suprimir algo… vivo.
Com a chegada das bebidas, Ronan começou a falar, como sempre.
— Naira está conhecendo a cidade. Caiu aqui recentemente. E, veja só, já nocauteou um bêbado hoje. Foi lindo de assistir.
Hark olhou para ela de novo, dessa vez, com um traço de interesse real.
— Usa mana?
— Sou uma maga da terra, mas não bati nele com mana — ela respondeu rapidamente. — Só o punho mesmo.
Isso pareceu relaxar o soldado. Ronan apoiou o cotovelo na mesa.
— Ela perguntou sobre Danurem, inclusive. Achei que você podia explicar melhor. Você fala com mais autoridade do que eu.
Hark assentiu.— Faço parte da Unidade Negra. — Ele tocou levemente no próprio peitoral. — Somos responsáveis por conter magos perigosos quando necessário.
Esse era exatamente o tipo de informação que Naira queria.
— Então a unidade de vocês caça magos? — perguntou ela, fingindo casualidade enquanto bebia. — Deve ser bem complicado.
— Apenas quando necessário, e sim as vezes é bem problemático, mesmo com a maioria de nos sendo usuários de ordo — Hark respondeu, sem dar muita importância ao interesse dela — Danurem comanda todos nós. Mas ele parece gostar de se enfiar em problema.
— Ele mesmo apareceu outro dia no meio de uma briga na Rua Sul. Derrubou seis homens e dois magos só porque estavam quebrando barracas. — Ronan riu. — Ele gosta de manter a cidade funcionando.
Naira bebeu, satisfeita. Estava a pouco tempo na capital e já havia descoberto duas coisas úteis: o nome do comandante, e que ele liderava uma unidade inteira capaz de suprimir magia.
Exatamente o tipo de perigo que ela precisava mapear.
E, se Ronan continuasse falando desse jeito… ia ser uma noite muito produtiva.
A mesa deles virou ponto de passagem do bar, gente entrando, saindo, música subindo, luzes mudando e, quando Naira percebeu, o ar já cheirava a madrugada. Ela não estava ali para isso. Mas acabou ficando mesmo assim.
E quando os três brindaram de novo, rindo por motivos que nenhum deles lembraria ao amanhecer, ficou claro que a noite ainda ia longe.

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