Daten correu para tirar os reféns da linha de fogo. Dhaha e Mirena seguiram na direção oposta, de frente para as criaturas metálicas.

    O forte cheiro podre revelava sua origem: o sangue pingava das garras do trio de animais.

    — Animais mecânicos, que divertido… — comentou Dhaha com um sarcasmo quase tão sólido quanto sua arma.

    — Acha que conseguimos derrotar eles? Só tem esses três — disse Mirena ao erguer o cano quebrado.

    — Sem dúvida nenhuma… — completou Dhaha, com os olhos fumegantes pelo brilho pálido.

    As criaturas avançaram sobre eles, seus ataques eram os mesmos de animais sedentos. O coelho azul saltou sobre Dhaha, tentando esmagá-lo com seu peso, mas o garoto desviou com um salto para trás.

    — [Metalóxis] — Com o erguer do martelo, golpeou a lateral da máquina e moldou sua arma em uma alabarda, cravando-a na superfície azulada.

    O coelho segurou o cabo da arma com seus braços roliços e puxou Dhaha para perto. Seu dente gigantesco caiu sobre o ombro do garoto.

    O douradiano tornou sua alabarda em um par de espadas curtas e se livrou do agarrão com um giro de corpo na direção da parede.

    Ao colidir com o concreto, Dhaha sentiu o corte queimar sobre a pele.

    Rápido como o vento, ele fez um corte cruzado na barriga saliente da máquina, que saltou para trás e depois para a parede.

    Seu ataque foi rápido e poderoso: ele usou as paredes para ricochetear seus saltos e acertar o guerreiro de vários lados. 

    As espadas colidiram com as placas da besta metálica na esperança de reduzir seu impulso, mas apenas geraram clarões e faíscas. 

    Em um dos saltos, o coelho acabou usando o autômato marrom, que lutava não muito longe, como plataforma.

    As paredes agora possuíam incontáveis buracos e amassados no formato de patas.

    “Ok, plano B: fazer ele ficar parado”, pensou o garoto, encurralado pelo coelho distorcido. “E já sei como…”.

    Ele parou de revidar, moldou as espadas em um único martelo e juntou as mãos. Seus olhos se fecharam e seus pulmões respiraram profundamente.

    Cedendo sua visão, pode se concentrar em seus outros sentidos. O tato que sentia a força dos golpes, e a audição que seguia a trajetória do coelho.

    “Agora!”.

    Com um giro veloz e sem aviso, o douradiano realizou um ataque em arco completo com o martelo e rebateu o coelho para a parede.

    Um forte som de “bonk” ecoou no local. Dhaha e o coelho se encaram, o garoto tinha um sorriso confiante no rosto.

    — Agora você vira camisa de saudade…

    O azul voltou ao seu padrão, rebatendo pelas paredes, mas foi rapidamente impedido por mais uma martelada. 

    A sequência se manteve por mais três vezes, até que o coelho estivesse lotado de rachaduras.

    Antes, qualquer um pensaria que a máquina estava na vantagem, mas agora era o completo oposto: Dhaha estava sem novos ferimentos, enquanto a máquina estava caindo aos pedaços. 

    — Não consegue mais pular, dentuço? — Ele avançou com outra martelada, desviando dos buracos pelo chão, e acertou a face em forma de coelho.

    Sem perder tempo, ele remodelou seu martelo em uma washizaki e ergueu a lâmina.

    O garoto partiu para dar o golpe final, mas hesitou ao ver a face que realmente havia por baixo da máscara metálica: um corpo humano. Não era um autômato, mas sim um ciborgue. 

    Mesmo que a carne estivesse desfigurada, ainda era possível ver uma sombra negra exalando de dentro da armadura.

    — Droga! — Após um recuo, ele avançou implacavelmente, partindo o coelho azul e pançudo ao meio.

    O sangue e o óleo se misturaram no chão, as sombras se dissiparam junto da vida da criatura. O garoto parou diante do sangue e se curvou

    — Que Nahhashir forje seu caminho… — ele realizou uma breve reza, seu braço formava uma espécie de “S”. 

    Se levantou o mais rápido que conseguiu, o combate estava longe de acabar.


    Mirena ergueu a arma improvisada para bloquear o bico da galinha amarela, o cano lutava bravamente para separar os dois.

    Com um chute, Mirena conseguiu se afastar e encaixar um golpe giratório na cabeça da ave metálica.

    A cabeça da criatura girou no próprio eixo incontáveis vezes, sendo parada apenas pela própria galinha que a segurou.

    — Mas o que é isso? Um exorcismo? — perguntou Mirena, incrédula com tamanho avanço tecnológico. Talvez nem tanto.

    A ave fez outro ataque com o bico, desta vez mais forte. A mulher bloqueou, mas a galinha foi quebrar o cano e derrubá-la no chão.

    A ardenteriana se ergueu em um instante e encarou o monstro, parado de pé. 

    Diante de seus olhos havia uma cena incomum: a galinha havia parado por alguns segundos para recuperar fôlego.

    “Essa coisa funciona a bateria?”, pensou Mirena, passando os olhos pelas ventas da criatura, em busca de algum detalhe. Viu o cano jogado pelo campo de batalha, partido em dois.

    “Não conseguirei vencer em força física, nem em velocidade…”, analisou ela ao procurar uma solução em meio ao local. Ameaçou colocar a mão por dentro do colete, mas mudou de ideia em seguida. “Não posso usar isso, aquelas placas são duras demais”.

    Os sons da outra luta chegaram aos ouvidos da garota. Não muito longe, Dhaha estava cercado pelo coelho, que ricocheteava pelas paredes lotadas de canos.

    “Canos…”, pensou a garota.

    O construto amarelo fez outro avanço, seu bico girava como uma brota de mineração. Mirena não pode fazer nada além de rolar para o lado ao desviar.

    A ave mecânica parou, respirou fundo e voltou a mirar em Mirena.

     “Entendi. Tenho uma ideia!”.

    Ela levantou em um salto e moveu seu corpo o mais rápido que pode na direção de uma das paredes encanadas.

    — Ei! Por aqui, frango assado! — gritou ela ao balançar os braços de forma frenética.

    A galinha mecânica se enfureceu, mesmo não sendo uma galinha de verdade, e se jogou em outra corrida contra Mirena.

    Quando a máquina chegou perto o suficiente, Mirena saltou para o lado e fez a galinha colidir com a parede. Os canos se romperam e liberaram o vapor fervente, mas esse não foi o toque final.

    O monstro agora estava preso nas ferragens e tubulações.

    — Quem disse que só homens podem operar uma máquina deste tamanho? — zombou a mulher.

    Sem perder mais tempo com piadas de quinta categoria, ela pegou um dos canos partidos e procurou algumas frestas no autômato. Não demorou para ela encontrar um núcleo de cristais de carma que brilhava como uma lamparina na região das costas.

    A visão era ameaçadora, os cristais estavam envoltos em carne viva e em sombras que faziam questão de saltar para fora do corpo.

    Com um único e preciso golpe, ela perfurou o núcleo. A criatura teve um curto-circuito dramático e depois apagou de vez.

    O mesmo cheiro terrível de antes voltou com força total quando a armadura revelou outro cadáver lá dentro. Mirena fez uma careta, segurando o vômito.

    — Sério?! Qual o fetiche estranho destas pessoas em brincarem com cadáveres?! — A indignação era, de longe, mais forte que o nojo.


    Seguindo as ordens da ardenteriana, Daten guiava os ex-prisioneiros em direção à saída. Fez o mais rápido que pôde, mas somente atrasou o inevitável.

    O som dos passos pesados e metálicos esbravejou como um trovão.

    — Oh droga… — falou o garoto, com seu bastão de ferro já sacado.

    O autômato marrom se aproveitou da distração causada pelos outros dois e avançou para trás das defesas, direto para o garoto e os reféns.

    Sem muito tempo para pensar, Daten se protegeu com seu bastão e foi arremessado contra a parede por um dos socos da criatura canina.

    — Isso vai deixar uma mar… — Antes que pudesse completar a piada, saltou para o lado e desviou de mais um soco. — Qual foi? Me deixa zoar pelo menos!

    O garoto golpeou as pernas do urso mecânico, a criatura era alta demais para ser golpeada em outros lugares. 

    O corpo do ardenteriano estremeceu com o impacto, era completamente diferente de golpear um dos guardas de antes.

    “Esse cara é de aço ou o que?”, pensou ele. “Não, pera. Ele é de aço sim…”

    Com um chute, o urso afastou Daten outra vez. O pequeno sentiu seus ossos se racharem, como o chão onde ele colidiu.

    O autômato se aproximou com o punho erguido, pronto para esmagar o garoto contra o chão, quando algo colidiu com suas costas e o fez cambalear.

    Era o coelho, que em meio a seus saltos desgovernados pelas paredes, não notou o colega de luta e o usou como plataforma para avançar.

    O urso o olhou com descrença, tamanha era a indignação de ser acertado pelo próprio aliado.

    Daten se ergueu do chão e sacou sua arma, agora coberta pelas chamas de seu carma.

    Ele golpeou o chão abaixo da criatura, agora distraída, e a fez ficar de joelhos. Em seguida, ele realizou uma série de ataques sobre a face mecânica.

    “Não posso deixá ele chegá nos reféns…”, pensou o garoto, com o corpo que ardia em cansaço. 

    Os ataques do pequeno ergueram uma nuvem de poeira do chão, tapando seus olhos. Daten sentiu seu estômago se contrair e sua garganta arder. O urso o acertou com um soco na região do umbigo.

    O pequeno mal teve tempo de cambalear. O construto o segurou pela cabeça e arrastou-o contra a parede. Pedaços dos tijolos voaram para todos os lados.

    Após deixar o corpo do loiro sobre os escombros, o canino metálico se virou para o grupo de pessoas.

    Os tremores de seus passos eram abafados pelo som das outras lutas, mas o piso quebrava por onde ele andava.

    Foi então que uma pedra acertou sua nuca. 

    No meio dos escombros, Daten segurava o bastão em uma mão e algumas pedras na outra.

    — Cai dentro… gogoboy do capeta… — falou Daten, com a voz ofegante e lenta.

    Seu corpo estava coberto pelos ferimentos e o sangue, o olho esquerdo mal conseguia abrir-se e a perna direita se esforçava para mantê-lo de pé.

    A chuva de pedras começou, Daten as arremessava o mais rápido que podia. O urso virou seu corpo e caminhou até o garoto outra vez.

    Contrariando os ataques, ele segurou o garoto pelos braços e o ergueu na altura da cabeça.

    — Argh! Me… larga… Seu…

    O ardenteriano se debateu entre as garras da criatura, mas seu corpo não tinha mais forças para resistir. Ele soltou o bastão, já sem forças para segurá-lo.

    Quando perdeu a capacidade de se debater, Daten se deu conta da realidade: ele era fraco.

    Ele estava derrotado, coberto pelo próprio sangue. O autômato estava quase sem arranhões.

    — Eu não consigo… vencer nem um…  autômato — murmurou o garoto, com os olhos vermelhos de sangue e raiva.

    Daten encheu as bochechas e cuspiu sangue no rosto do animal.

    — Engole essa…

    O autômato não reagiu à provocação.

    Ele abriu sua boca, esticando sua mandíbula. A máquina aproximou o garoto e encaixou sua cabeça entre os dentes.

    “Uma criança com a cabeça presa na boca de um autômato de urso humanoide, onde que eu já vi isso…?”, pensou o garoto, enquanto esperava o fechar dos dentes.

    Quando o urso mecânico ameaçou fechar os dentes, uma mão segurou a parte superior e outra a inferior. Pousado sobre os ombros da criatura, estava Dhaha, a única coisa que separava Daten de uma morte dolorosa.

    Aos pés da criatura estava Mirena, portando o martelo do amigo em uma mão e seu cano na outra.

    Ela acertou-lhe o martelo em uma das pernas e segurou a criança que despencou de sua boca.

    — Você foi bem, moleque. — falou Dhaha, enquanto pegava seu martelo e exibia um sorriso no rosto. — A gente assume daqui.

    Foram aventureiros que avançaram dessa vez, Mirena distraia com golpes leves de seu braço e Dhaha causava o dano  bruto com  seu martelo imbuído em carma.

    Aquele sorriso era belo, mas não apagava o que Daten sentia. Ele se ajoelhou no chão, sem forças para lutar com a criatura metálica em forma canina.

    Não pôde proteger sua irmã, não pôde roubar as armas, não pôde invadir a fábrica sozinho… nem pôde derrotar um simples inimigo.

    As lágrimas do garoto caíram igual ao óleo que caía do autômato. Daten cerrou os punhos em sua impotência, amaldiçoando o corpo fraco que tinha.

    — Hahaha… Que merda…

    A besta era, sem sombra de dúvidas, mais forte que as demais, mas eram dois contra um.

    A criatura desferiu chuvas de socos na dupla, mas Mirena era esguia demais para que ele acertasse, e Dhaha era resistente demais para ter sua postura abalada.

    Com uma oportunidade no meio dos golpes do monstro, Mirena forçou-lhe a ficar de joelhos com um soco na perna danificada.

    — [Metalóxis]! — gritou Dhaha, ao transformar sua arma em um machado de batalha e golpear o pescoço da criatura.

    O corpo mecânico tombou para o lado, seu interior era como o dos outros autômatos: um cadáver coberto por uma sombra viva.

    — Bom, acho que conseguimos… — Dhaha se apoiou no machado.

    — Vamos levar aquelas pessoas, e então procurar pela irmã do Daten — completou a mulher.

    — Meus parabéns… — A voz aveludada e grave de Belmorth veio do final do corredor. — Nem em minhas melhores previsões, eu diria que vocês venceriam meu trio de ciborgues. 

    — Belmorth… — Os olhos de Mirena caíram sobre o homem como adagas.

    Ele caminhou para a visão dos três a passos calmos, os passos de quem tem o mundo nas mãos. O nobre sorriu, abrindo os braços como quem recebe convidados em sua própria casa.

    Atrás dele, a escuridão do corredor pulsava como se respirasse.

    — Mas, é claro… podemos resolver isso sem demora…

    O ar ficou pesado, os reféns do outro lado da porta estremeceram, e até o chão pareceu vibrar com algo que vinha na retaguarda do vilão.

    Dhaha apertou o cabo do machado, com as poucas forças que ainda tinha, e Mirena manteve os olhos fixos no inimigo.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

    E então, a sombra atrás de Belmorth abriu os olhos.

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