Capítulo 20: Carne Fresca
Era mais um fim dia na fábrica de armas Rubrae. O céu cinzento de fuligem e fumaça dava lugar a uma vista completamente escura, sem estrelas.
A maioria dos trabalhadores já tinham batido o ponto e ido para os barracos que chamavam de casa, apenas três homens haviam restado: Um supervisor e dois funcionários.
O supervisor, um humano já na velhice, caminhou até uma mesa metálica enferrujada. Ele carregava nas mãos uma garrafa marrom com um rótulo extravagante.
— Que ideia idiota foi essa, rapazes? — Ele bateu fraco a garrafa sobre a mesa, enquanto encarava o funcionário: um douradiano de barriga avantajada. — Apostar em um jogo de cartas no meio do expediente?
— Desculpe, chefe… — disse o segundo funcionário, também sentado à mesa. Um gelariano de chifres cotocos.
— E se o patrão tivesse pego vocês? Esqueceram o que aconteceu com o Alastor? — O velho continuou o sermão.
— É que o Elias tinha apostado um encontro com a irmã dele… — O douradiano tentou se defender, em vão.
— Argh… Vocês não tem jeito… — O idoso virou um copo pela garganta.
Enquanto estavam distraídos, uma batida na porta chamou a atenção dos três.
— Eu atendo! — disse o gelariano, se levantando em um pulo e correndo para a porta.
Não demorou para que ele a alcançasse, os três não podiam beber na parte mais interna da fábrica. Com o abrir da porta, uma mulher de armadura verde e cabelo longo e preso apareceu diante dele.
— Em que posso… — começou o gelariano.
Sem perder tempo, a mulher estendeu um distintivo de um pássaro azul para o rapaz.
— Guilda da Folha-de-Louro. Posso entrar?
A criatura fitava diretamente o grupo, com seu olho, solitário e amarelado. Seu massivo corpo de carne viva e retorcida mal estava oculto pela escuridão do lugar.
O servo pulsava com ritmo, tão audível quanto um coração gigante. O som das vozes em agonia era um sussurro que penetrava o ar.
O corpo da garota paralisou sob o olhar da besta, segurado pela sensação de que morreria caso se movesse.
Belmorth deu um passo à frente, ainda com a expressão imponente em seu rosto. Ao seu redor flutuava um pedaço de papel, destacado nas roupas brancas do nobre.
— Ah não… — murmurou a garota, de volta à realidade.
A folha era exatamente como tinham descrito:
Uma página de caderno antiga, escurecida pelo tempo, com uma composição que misturava papel e folha de árvore. Ela era capaz de flutuar quando perto de uma superfície, sustentada pelo carma que queimava ao seu redor.
Era uma das folhas que Mirena tanto procurava.
— Eu pensei que vocês abraçariam a beleza que estávamos oferecendo — disse Belmorth, com os braços abertos e um sorriso perturbadoramente alegre. — Mas parece que eu estava…
— Beleza? Isso aqui? — apontou Dhaha para uma das celas, sem desviar o olhar do homem bem vestido. — Você tem um péssimo gosto pra decorações.
— Pessoas sem qualquer educação, com uma mente completamente fechada, nunca entenderiam a verdadeira perfeição que há nisso. — O mago loiro colocou a palma da mão sobre a bochecha, arfando em êxtase.
— Não, você só tem um péssimo gosto mesmo. — Agora foi Mirena que retrucou, ao tentar diminuir a tensão que cruzava seu corpo.
— Parece algo que uma criança de cinco anos faria com uma massinha de modelar, e você ainda teve a cara de pau de usar cadáveres pra isso — alfinetou Dhaha, com uma face de nojo e escárnio.
— Fiquem quietos, em breve vocês se juntarão à minha obra de arte. — O artista ergueu os braços em um gesto de superioridade.
O homem de branco se aproximou de uma das celas, ele já não conseguia segurar o sorriso insano de orelha a orelha.
— Veem? Eles estão belíssimos, desfigurados, deformados. Aaaah… que inveja… — riu ele, tão entretido que não notou a língua escapando de sua boca.
— Esquisitão… — Dhaha continuou, com a simplicidade de quem diz que o céu é azul.
— Acho que ele apenas é louco mesmo, o culto de Nazhur possui vários membros como ele. — Mirena completou a sequência de ofensas.
As veias de Belmorth estavam sobressaltadas, ele cerrou os punhos na tentativa de controlar sua raiva.
— Louco? Hahaha… Não, não — corrigiu Belmorth, de volta ao olhar sério. — Os loucos são vocês, que tem desafiado minha Signore… e atrapalhado o belo plano dela.
— Plano? Você… estava nos observando? — falou Mirena, ao erguer seu cano, com dificuldade. Suas mãos estavam trêmulas.
— O que achou que eu faria com aqueles que cometiam vandalismo, e em minha propriedade? — A voz do nobre carregava um leve ressentimento.
— Propriedade privada? — A garota lembrou do porão como um clarão. — Espera, como você sabe disso?
— Vocês vandalizaram… propriedade alheia? — interrompeu Daten, caído no fundo da sala.
— Aquilo era… propriedade privada? — Dhaha continuou a encarar o nobre, mas não sabia se dava a razão para o inimigo ou para a aliada.
A garota se viu cercada pelas acusações, seu rosto estava corado de vergonha.
— Bom, errr… de certa forma…? — A mulher tentou se defender, mas era inegável que ela havia incendiado aquele porão inteiro.
— “De certa forma”? Vocês incendiaram um porão grande o suficiente para ligar dois prédios — continuou Belmorth, em uma mistura de ironia e rancor. — E eles eram razoavelmente distantes.
— É… Parando pra pensar, era bem grandinho mesmo… — falou Dhaha, repensando se fizeram o melhor caminho.
— Nossa…. Isso é extremo… cof cof… até pra mim. — Daten estava quase sem fôlego para falar, mas fez questão de cutucar a ferida da garota.
— Você destruiu o piso de uma casa, Dhaha! — esbravejou a ardenteriana, arregalando os olhos em descrença sobre o que acabara de ouvir. — E você, Daten, nos ajudou a invadir essa fábrica!
— Detalhes, cara — rebateu Dhaha, ainda sem desviar o olhar.
— Detalhes… cof cof… cara — repetiu Daten, ofegante.
— Era só o que me faltava. Por que eu virei alvo dos ataques agora? — resmungou a garota. Ela não sabia se deveria sentir medo ou vergonha.
Seu rosto ardia em vergonha, vermelho como um rubi.
— De qualquer forma! — falou a ardenteriana, ao tentar retomar o controle da situação. — Como você sabia que viríamos para cá?
— Isso é bem simples. — O olhar do pomposo passou da ironia para a seriedade em segundos. — Fui eu que os trouxe até aqui.
Belmorth passou a palma da mão sobre o rosto. Sua carne começou a se mover de forma quase aleatória, desconfigurando-o e reconfigurando. O rosto da senhora Lídia se formou diante deles.
— Isso responde? — A voz da idosa saiu de sua boca.
Os três encaram em silêncio. Não sabiam se deveriam ficar surpresos com a revelação, ou com a determinação do homem em se transformar em uma idosa somente para enganá-los.
— Olha… — Dhaha ameaçou falar algo.
— Cale-se, douradiano! — Belmorth já estava sem paciência para lidar com o grupo.
— Eu não sei se você só é muito determinado, ou se só tem um fetiches meio estranhos.
Mirena encarava os dois sem entender: com uma criatura grotesca que mal cabia no fundo da sala, eles estavam preocupados em discutir os gostos não tão artísticos de Belmorth.
— Você sabia… desde o começo? — A garota reuniu forças para fazer a pergunta.
— Aaaah, ardenteriana… Eu conheço tudo que acontece nesta cidade — falou o humano, reconfigurando seu rosto com o mover da mão. — Vocês teriam se tornado tão belos se apenas tivessem se aliado com os Vagantes de minha Signore, mas parece que coloquei expectativas demais em algo tão pífio.
— Vagantes? São aqueles fantasmas no porão? — disse Dhaha.
— A capacidade dedutiva de vocês é melhor do que achei que seria… — insultou Belmorth, logo sendo cortado por Dhaha.
— Ela é melhor que o seu senso de arte. — O garoto finalizou.
Foi a gota d’água para Belmorth. Com um gesto de mão, um rugido gutural tomou a sala. O templo de carne saiu das sombras e se moveu na direção do douradiano.
Seu corpo era grande e pesado, raspando sua cabeça no teto e rachando o chão com seus passos.
— Muito bem, eu havia dito à minha Signore que levaria mais sobras para o banquete — falou o loiro, que, com um estalar de dedos, fez vários braços surgirem da criatura. — É hora de brincar, [Carnoféx]
— Finalmente! — O guerreiro não perdeu a oportunidade e golpeou a lateral do templo com seu machado.
Ele rasgou alguns dos membros que saltavam para fora, mas não conseguiu penetrar a camada grossa de carne.
— Ué? — disse Dhaha, enquanto tentava puxar sua arma de volta, que estava presa na forma da criatura.
Com uma puxada forte, o garoto arrancou seu machado de dentro do monstro. A criatura soltou um urro e arremessou Dhaha contra a parede com seus braços.
— Argh! — Dhaha não conseguia mais segurar a voz, a exaustão começava a tomar seu corpo.
Com outro estalar dos dedos de Belmorth, a catedral vermelha direcionou uma sequência de socos ao herói, que usava seu machado para reduzir os impactos.
“Que droga… se ele fosse um pouco menos duro!”, pensou Dhaha, com o gosto metálico do sangue passando pelos dentes.
Mirena olhou para a cena, a criatura era forte, resistente, e acompanhava seu aliado mais poderoso em uma troca de golpes. Belmorth a observava, um sorriso sádico havia se formando em seus lábios, satisfeito por, pela primeira vez naquela luta, ter conseguido uma reação apropriada de alguém.
— E você, ardenteriana… — começou ele, ao encurtar sua distância com Mirena.
A mulher olhou para os lados, como se procurasse qualquer outra ardenteriana com quem ele pudesse ter falado.
— A sua reação me foi interessante… Você, por acaso, sabe o que é isto? — Ele estendeu a mão, onde a folha mágica flutuava.
“É claro que o vilão psicopata estaria com uma das páginas do Karmagó”. Mirena quase deixou o pensamento escapar de sua boca em seu espanto.
Mirena deixou as piadas para outra hora e respirou fundo.
— Por que você possui isso em mãos? Como a conseguiu?
— É muito simples: minha adorada Signores me entregou o dever de cuidar de seus Vagantes, e agora…
Antes que o magnata pudesse completar a frase, a garota avançou e atacou com um golpe lateral.
O homem reagiu no último segundo, com o inclinar das costas para que o cano passasse apenas perto de seu rosto.
— Vocês tem algum tesão em me interrom…
Outro golpe veio, dessa vez um golpe descendente. Belmorth foi obrigado a rolar para o lado para esquivar.
— Você não deveria ter isso em tuas mãos, então irei confiscá-la — falou a mulher, com a postura pronta para mais um golpe.
Belmorth se levantou do chão e limpou a poeira em seus trajes. Ele balançava a cabeça em descrença do que havia visto.
Com a mão dentro do paletó, ele sacou uma pequena adaga cinzenta. Em seu cabo, estava adornado o emblema da guilda da Folha-de-Louro.
— Isso vai ser suficiente para lidar com uma ardenteriana vil como você — concluiu ele, exalando o carma brilhante sobre o corpo.
A garota ergueu o cano acima da cabeça, imitando o que Dhaha fazia quando estava com uma washizaki.
Ao dar seu primeiro passo, Mirena sentiu seu ombro arder. Parou seu corpo no mesmo instante e viu um filete de sangue escorrer pelo braço.
“O que?”, pensou ela. “Quando ele me atacou?
Belmorth havia feito apenas um leve movimento com a adaga, a garota nem mesmo tinha entrado no alcance da arma.
— Mirena… cuidado! — gritou Dhaha, enquanto segurava a aberração de carne viva. — O cheiro dele… é muito forte!
Aos olhos de Mirena, Belmorth parecia um mago comum, mas aos olhos de Dhaha, ele era uma criatura assustadora. O carma do magnata fluía com tanta intensidade, que deixava o ar ao seu redor mais pesado.
Observando a reação de Dhaha, Belmorth trocou o alvo de seu olhar para o garoto.
— Mas que surpresa… — Ele se virou para o garoto e balançou a adaga como um brinquedo — Um xamã é algo raro de se ver, ainda mais um que é mago.
Com um rápido olhar, a criatura grotesca já sabia o que devia fazer: devia vencer Dhaha, mas mantê-lo vivo.
— Você é interes… — continuou ele, logo sendo interrompido.
Mirena aproveitou a distração e golpeou o lado do rosto de Belmorth, que foi arremessado alguns metros para o lado.
— Sua des… — Ele planejou ofender a mulher, mas teve que rolar outra vez para escapar de um chute.
— Já te contaram que você fala muito? — perguntou ela, em uma mistura de seriedade e deboche.
O nobre se levantou e jogou o terno em uma cela qualquer. Ele ergueu a adaga junto aos punhos e respirou fundo.
Antes que Mirena pudesse reagir, Belmorth golpeou o ar em um corte lateral. O fio se projetou diante dos olhos da garota e a acertou no ombro.
“Porcaria!”. O pensamento passou pela mente da garota, enquanto ela corria para cima do homem.
Com o golpe descendente de Mirena e o corte lateral de Belmorth, as armas colidiram em uma explosão de ar. Os rostos dos dois estavam mais próximos do que nunca, encaravam os olhos um do outro.
A troca de golpes começou, a garota projetava golpes laterais e superiores, enquanto o nobre se concentrava em estocadas precisas.
Mirena estava dando seu melhor, mas não era das melhores combatentes físicas. A exaustão não demorou para atrasar seus movimentos.
Os golpes de Belmorth eram pesados demais para uma simples adaga, era como se ele estivesse com uma espada longa, só que muito mais longa e rápida.
Com um salto seguido de uma rolagem, Mirena agarrou alguns pedaços de tijolos e os jogou em Belmorth, que foi obrigado a recuar.
A garota golpeou as paredes com o bater do cano e levantou uma fina cortina de fumaça. Logo depois, arremessou mais algumas pedras.
Antes que ela pudesse continuar sua estratégia, Belmorth cruzou a poeira e investiu com sua adaga. Os ataques colidiram novamente.
O bem vestido agora arfava, o carma ao seu redor oscilava entre brilhar e apagar.
A garota não precisou pensar muito para concluir:
“Ele não costuma usar seu carma…”.
Com a parede já danificada, ela golpeou o teto, descendo uma cortina de fumaça ainda maior.
— Você só sabe… uff… fazer isso, ardenteriana? — esbravejou o mago, que, com o erguer da adaga, a envolveu nas chamas brancas.
Com alguns golpes, a parede de poeira se desfez e abriu o caminho entre os dois.
“Eu só tenho uma chance…”, pensou a ardenteriana, com a mão dentro do colete de couro.
Belmorth viu aquilo, mas algo agarrou em sua perna antes que pudesse impedi-la. Daten tinha se arrastado de seu monte de destroços até o campo de batalha.
— Eu to… nesse jogo… ainda… caramba! — esbravejou a criança loira, que logo mordeu a perna do homem adulto.
— Argh! Solta… criança… desgraçada… — Belmont se livrou do aperto com alguns chutes da mesma perna que estava presa.
Quando encarou a garota novamente, ela apontava algo metálico para ele, mas a visão turva do homem não o permitia decifrar o que era.
— Uma adaga…? Acha mesmo que… meu poder vem… da adaga? Hahaha! — disse ele, erguendo os braços como um vitorioso. — Vai fazer o que? Me cutucar com a sua adagui…
Uma explosão ecoou pela prisão, Belmorth teria agradecido se aquilo fosse apenas uma adaga.
O projétil atravessou a resistência do peito do nobre como se fosse papel. O cheiro forte e queimado de pólvora as narinas do homem.
— Não é… possível… — A voz de Belmorth se tornou lenta. O sangue começou a escorrer pela ferida circular.
Os olhos do homem arregalaram para a garota. Nas mãos de Mirena, estava algo que ninguém esperaria: um revólver Colt com o tambor de cinco balas.
— Vamos ver como a sua “arte” lida com a minha engenharia!
O homem deu um passo para trás. Sua mão estava sobre a região do peito que foi baleada, na esperança de fechar a ferida.
Outro tiro veio em seguida, no ombro direito do nobre. O terceiro não esperou, acertou bem abaixo do pulmão esquerdo. O quarto e quinto, por fim, acertaram a perna direita na tentativa de imobilizar o homem.
Mirena descarregou as balas de seu tambor.
— Como…? — O homem não conseguia reunir as palavras corretas, fosse pela dor, ou pelo espanto. — Quase ninguém… tem uma dessas…
— Isto se trata de… um protótipo. A senhorita Thalwara me… permitiu testá-lo nessa missão.
— Droga… [Carnoféx]! — gritou o homem, enquanto recuava.
No instante em que Mirena desviou o olhar, a grotesca criatura surgiu à frente de seus olhos, com Dhaha pendurado por uma espada montante.
— E aí… Mirena… — falou o garoto, com dificuldade. — Como… cê tá?
Com um giro no próprio eixo, [Carnoféx] arremessou o douradiano e sua arma para perto da mulher. Belmorth cambaleou até a montanha de carne, seu sangue escorrendo pelas feridas.
O homem abraçou a criatura, praticamente se jogou sobre ela. Sua carne se fundiu à da criatura, e ambos começaram a se deformar.
— Evolua… [Carnoféx]! — Foram as últimas palavras que o grupo ouviu saírem da boca do nobre.
O amálgama de corpos distorcidos forçou seus próprios membros para dentro, na forma de um imponente cubo vermelho e sangrento. A estrutura pulsava em frenesi, prestes a se transformar em algo muito maior.
— Era só o que me faltava… O chefão tem segunda fase — falou Dhaha, que já nem tentava esconder o sarcasmo.
O ar ficou pesado, saturado pelo cheiro ferroso de sangue e pelo carma que pulsava da criatura.
Mirena segurava firme o revólver vazio, Dhaha mal conseguia se manter de pé, e Daten já estava à beira de apagar. Nenhum deles tinha forças para um segundo embate, mas Belmorth não parecia disposto a lhes dar escolha.
O templo de carne havia renascido, e agora, diante deles, se erguia algo muito pior.

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