POV: SAMIRA MWANGI

    A noite já caía nas areias de Ahbath, transformando a paisagem em um grande oceano de areia sob o céu estrelado de Riverdeep.

    Ali, entre as cidades Vinferi e as dunas de Mengethanel, eu me preparava para meu destino.

    Eu não tinha muito mais a esperar. Nascida do barro, escrava, fugitiva, ladra, e uma das mulheres mais procuradas do país…

    Bem, procurada não mais.

    Meus braços já estavam doendo, depois de tanto tempo com eles amarrados nessa maldita viga eles finalmente conseguiram se tornar mais um entre os muitos incômodos que me anestesiaram naquele momento cruel.

    Eu não sabia bem como descrever o momento. Só estava tentando pensar em qualquer outra coisa que não fosse aquele invasor maldito segurando minha cintura como se fosse arrancar minha coluna.

    Cada estocada, cada tapa, um único desejo fúnebre e frio.

    — Me mate! — Supliquei, engasgando com saliva, pouco antes do segundo homem me dar um tapa selvagem na cara. 

    — Cala a boca, sua puta! — Gritou um terceiro homem enquanto abaixava as calças. — Eles vão pagar pela sua cabeça, o corpo a gente vai aproveitar enquanto está quente! Ou você acha que vai chegar viva na cidade? 

    — Ocê fala dimais pruma nascida do barro! — O segundo homem, mais forte fisicamente e visivelmente bronco, me deu outro tapa enquanto puxava meu cabelo para trás, levantando minha cabeça de forma que parecia que meu pescoço iria quebrar a qualquer hora. 

    O homem atrás de mim parou com um gemido nojento. Senti o calor escorrer por dentro de mim como veneno de naja. 

    Minha mente girava quando um soco atingiu minha coluna, seguido por um chute na perna. 

    O terceiro sujeito, um gordo de bigodes com a cara redonda, uns cinquenta e cinco anos por aí, veio em minha direção, saindo da caixa de madeira na qual estava sentado.

    Observando com nojo, raiva, ódio e desgosto profundo, não pude deixar de me odiar por não ter me matado quando pude. 

    A estrutura de madeira feita provisoriamente para me prender era dura como um tronco de pau-de-ferro. As amarras que os invasores fizeram eram firmes, eu mal conseguia me mover. Minha própria pele já estava se desfazendo, criando marcas e se romoendo nas várias voltas de corda em meu corpo. Nas pernas, cintura, braços, mãos e pescoço… 

    Eu não tinha nada para fazer. Só aceitar aquele fim deplorável. Mas por que demorava tanto?

    O homem que parecia nobre não estava ali. Meu feroz captor, Devia estar atrás de Liah. Rastreando-a pelas areias. Tinha medo de pensar nesses monstros encostando em minha doce irmã.

    Após a perseguição pelas areias, tive uma batalha feroz contra o homem que eu julgava ser o capitão desses três monstros. Ele me derrotou com certa facilidade, mandou que me amarrassem e correu para perseguir Liah.

    Uma lágrima caiu, descendo pelo meu rosto, trotando com cada movimento até se juntar com o sangue que escorria de minha boca.

    Malditos invasores.

    O cheiro de suor rançoso misturado com álcool barato das terras do norte era mais nauseante que o toque.

    O nojo não era só deles. Era de mim. Por ter sobrevivido o suficiente para me tornar aquela carne.

    Minha mente divagou em memórias felizes, que mudavam quase que instintivamente para memórias tristes quando pude ouvir o barulho dos cascos.

    — Mais um! — pensei…

    Eu já não estava ligando. Desde que acabasse logo. Eu só queria que acabasse.

    Eu não queria mais, eu não podia mais.

    E eles gritavam, e riam, e me xingavam, e na realidade, eu mal podia ouvi-los. Parecia que eu estava fora do corpo, observando a cena deplorável. E vendo aquele cavalo marrom manchado de sangue carregando o homem de atitude e esgrima feroz, de cabelos curtos com uma armadura de couro por baixo da túnica de Al-Hael se aproximando.

    — Mestre Khal… — o homem que estava socando minha cara tentou iniciar algo que parecia uma súplica assustada quando uma lança atravessou seu pescoço e o interrompeu com um gorgolejo molhado, tão repentino quanto ao homem que me abusava saindo de dentro de mim com um pavor absoluto. 

    — Urka ūlitanālūi dāmanlā iqā! — disse o homem de barba cerrada puxando um sabre enquanto descia do cavalo. Eu não falava tão bem aquela língua, mas meu tempo de escrava me ajudou a falar o suficiente, para entender que meus abusadores seriam mortos.

    Era um dialeto antigo, usado raramente pelos feiticeiros!

    O homem que me capturou mataria seus companheiros, mas por que? Honra? 

    Não… Um matador de aluguel não tinha honra. Capacho dos grandes senhores. Não havia honra ali. Mas então, por que? Será que ele era só mais um estuprador e queria exclusividade?

    O homem gordo de bigodes ajoelhou imediatamente balbuciando algo muito rápido, não pude entender, mas sei que era uma súplica pela vida. O outro que já estava satisfeito pegou um sabre e se opôs ao que parecia ser o líder do bando.

    — Anta ta’lamu annaka lan tastaṭī’a hazīmatī yā ‘Adel — Dizia o homem com aparentes cinquenta anos, corpo esguio e torneado, queixo quadrado e olhos profundos observando atentamente seu adversário estuprador, enquanto meu abusador observava com temor, segurando o sabre que mal se sustentava em suas mãos. — Tamassak bi-sharafika fī raḥīlika, Lá ta-mút ka-múl-hid!

    Percebi que o homem vivia uma realidade diferente do mundo que eu vivia. Ele botava a honra acima da morte.

    Sua frase, algo como “sabe que não pode me vencer Adel, tenha honra em sua passagem” dizia muito sobre seu comportamento. Observei o homem mais gordinho enquanto ele vagarosamente botava a mão direita por dentro de sua longa bota, provavelmente alguma arma escondida.

    — Covarde! — Gritei enquanto observava o desenrolar daquele duelo. Aliviada por não estarem mais me invadindo. Mas ainda atordoada pelo que ainda parecia interminável.

    Eu queria ver eles morrendo, eu queria ver as entranhas deles escorrendo pelas pernas. Mais que isso. Eu queria fazer isso, eu queria arrancar os órgãos deles um por um. Olhando os olhos se esbugalharem com a dor.

    Um choque de realidade me bateu. Por um instante me senti fraca, impotente, moribunda.

    Outra lágrima caiu. Os olhos fecharam. Fracos.

    Gritei, porque era tudo que eu poderia fazer. E quando abri os olhos, uma cabeça gorda com bigodes estava no chão, pouco à minha frente.

     Outro homem estava balbuciando palavras sem sentido. Desci a linha de visão em seu corpo para ver algo para fora de sua barriga. 

    Sim, eram as entranhas do homem, expostas à luz da lua.

    Num primeiro instante me faltou ar, queria vomitar. Mas estava decepcionada.

    Ele não sofreu o bastante. Ele não teve o que merecia.

    Liah sempre me dizia que a violência não tinha sentido sem um motivo. Mas agora existia um.

    Eu queria mais, eu precisava de mais.

    O invasor de queixo quadrado e olhos azuis se aproximou de mim. Com seu sabre empunhado em sua mão direita. 

    Não tinha expressão, não demonstrava pena, ou prazer. 

    Era impassível como a noite sobre o deserto. Se aproximou mais. Seus passos batiam junto com meu coração. Ou era ao contrário?

    Pelo menos seria rápido. Olhei para a cabeça do homem gordo parada um pouco à minha frente. Será que foi rápido? Logo iria saber.

    Ao menos não seria mais abusada.

    De repente, um baque de dor aguda passou por meu corpo em flash.

    Senti a areia gela em meu corpo e um súbito alívio nos braços.

    Que brincadeira era essa? 

    Que forma de tortura esse monstro estava imaginando?

    Que tipo de dor iria me causar?

    Por que simplesmente não encerrava?

    E um peso terrível pressionou meu tórax na areia quando um dos joelhos do homem de pousou sobre meu corpo violado de muitas maneiras.

    As cordas em minhas mãos caíram, e logo após, as dos pés…

    Correr, tudo que passava pela mente era correr. Mas como?

    Mal conseguia respirar. Me deitei de lado, tentando suprimir a dor que irradiava de todo meu corpo. Levantar não era uma opção.

    Ao longe, bem baixinho, o agressor moribundo ainda gemia de dor e falava coisas ilegíveis.

    Ouvi o barulho de uma caixa de madeira se abrir. A mesma caixa que os outros guardavam com algum medo. E como se a areia vestisse meu corpo, senti um sutil toque de seda abraçando minha pele nua da cor da noite.

    Toquei surpresa no que percebi rapidamente ser uma túnica engraçada.

    Parecia as roupas dos invasores gordos que contavam moedas.

    Quem era esse homem?

    Era um nobre? 

    Não, um nobre não viria às areias atrás de uma criminosa. 

    Quem era esse homem?

    — As-asḥarah! — Perguntou o homem, agachando-se em minha frente e me oferecendo um cantil com água. — Ayna ajiduhum?

    A pergunta era simples, ele estava atrás dos feiticeiros. Isso indicava que, ele provavelmente era um estrangeiro. Se não fosse saberia que são muitos feiticeiros. Exitiam tribos inteiras de feiticeiros.

    — Quem é você? — Perguntei, usando o pouco que eu sabia da língua deles. — O que você quer de nós? 

    — Apenas um forasteiro em busca de conhecimento — Respondeu o homem.

    O frio da noite no deserto se intensificando aos poucos já fazia meu corpo fraco ter alguns espasmos. Confundindo ainda mais minha mente.

    Eu havia sobrevivido. Mas por que? Eu não conseguiria mais olhar para um invasor, ou talvez, um homem.

    — Minha irmã? — Perguntei esperançosa para o homem aparentemente estrangeiro. — Você a matou? 

    — Não sou um assassino de crianças — Respondeu o inexpressivo guerreiro com ar de soberano. — Não tinha a intenção de matar nenhuma de vocês duas, mas precisava ser um deles para andar livremente em suas terras. 

    — Sua irmã correu para o sul, livre e fora de perigo.

    Um alívio imediato percorreu meu esterno. Mas infelizmente não pude sorrir com o alívio. A monstruosidade não havia saído de minha cabeça.

    Minhas forças voltaram e, apesar da dor, me esforcei para levantar da areia gélida.

    — Os feiticeiros! — repetiu o homem, não demonstrando nenhuma ameaça. — Preciso encontrá-los, com urgência. Pode me ajudar? 

    — Adoraria! — Falei, sem demonstrar entusiasmo. — Porém, tenho outras coisas que tenho que fazer agora.

    Dentro de mim algo mudou. Como o dia e a noite mudavam.

    Antes, éramos tribos. Tribos de aswad. Ou. Nascidos do barro. Mas um dia eles chegaram. Os homens de pele branca do norte. Inicialmente justos, com muitas promessas. E posteriormente, mostrando a face do mal.

    Fomos escravizados, caçados, vendidos em troca da maldita moeda de ouro deles…

    A cultura se instalou. E por anos sofremos nas mãos dos invasores do norte…

    Não éramos iguais. Não era só nossa cor que nos separava. Era nossa alma.

    Não podíamos coexistir, minha mãe passou pelo que eu passei inúmeras vezes.

    Quando matei nosso senhor em Valthas, minha mãe assumiu o crime, e foi torturada de inúmeras formas, por inúmeros dias até sua morte.

    Ahmed, meu irmão, foi decapitado, por não conseguir trabalhar nos dias seguintes.

    Nos tratavam como animais, e às vezes pior que eles.

    Dormíamos em jaulas, no frio, sem vestes, usando nosso corpo para se esquentar. Quando comíamos, eram as sobras dos senhores.

    Nos tornamos ferramentas descartáveis. E nos acostumamos a isso.

    Mas isso iria mudar. Eu faria isso ser diferente. Nem que eu tivesse que matar um a um os homens brancos. 

    Nossa terra era nossa, e voltaria a ser. Independente do preço.

    Afundada em pensamentos, caminhei sobre o homem moribundo que sibilava de forma desesperada, talvez fazendo alguma prece pela própria vida. A morte já estava rodando seu corpo, talvez esperando um último ato de bravura. Mas eu não daria isso a ele.

    Pelo corte em seu externo, enfiei minha mão direita. Rasgada em alguns pontos, macerada em outros. O contato de meus ferimentos com o sangue do demônio na minha frente era quente, e causava ardência, mas não parei.

    Olhei profundamente em seus olhos esbugalhados enquanto minha mão percorria o interior do corpo dele.

    Ele começou a engasgar com o sangue que lhe subia pela garganta, ao mesmo tempo que colapsava, dando espasmos ininterruptos.

    As veias de seus olhos se acenderam como rios de fogo. E então. Finalmente encontrei.

    O órgão pulsante estava em minha mão. Palpável, vivo.

    Com uma força sem condições de origem racional, puxei o órgão.

    O homem, se não me engano Adel, como meu salvador o havia chamado, trepidou e soltou algum tipo de som indistinguível que se misturou com um gorgolejo molhado ao se encontrar com uma bolha de sangue que subiu da garganta e desceu espumando por seu rosto já empalidecendo.

    Mais um puxão, e mais uma vez, seu corpo se estremeceu com um suspiro fraco. E então, com um grito que traduzia minha raiva, um terceiro puxão ecoou com o som de cordas de barbante arrebentando. O órgão estava em minhas mãos. Ainda pulsando. Os olhos de Adel perdendo o brilho, sua boca ainda aberta já não mexia. Seu peito estava totalmente imóvel. Porém, eu não estava satisfeita. Queria mais. Queria todos. 

    Eu iria exterminar aquela raça da existência.

    — Quem é você? — Perguntei mais uma vez ao homem estrangeiro, com a voz baixa, suprimindo qualquer possível sentimento. — Por que está em Riverdeep? 

    — Me chamo Arslan Fierun — Respondeu como se esse nome carregasse algum peso profético. — Venho de Emerus, e o mundo corre um risco imprescindível.

    Parei um instante para forçar minha mente a entender oque ele estava dizendo.

    — Minha vida inteira foi um preparo para esse momento. — Continuou o Emeriano. — Eu abdiquei de muito apenas por isso. Preciso estar pronto, e preciso da magia dos feiticeiros ao meu favor. 

    — E quer que eu acredite em você? — Perguntei, com os olhos ainda baixos, admirando o corpo de Adel com suas entranhas expostas. 

    O coração em minha mão já não pulsava, mas estava prestes a estourar devido a meu aperto instintivo. 

    — Com uma história dessas? — Continuei, indagando o forasteiro com desconfiança. —Quero saber ex…

    Minha fala foi cortada por uma dor repentina em minha perna. Caí antes de poder olhar para a mesma. E quando olhei, havia uma flecha em meu tornozelo.

    — Innahum ‘alaa tilkal kuthbaan! — Gritou uma nova voz indicando nossa posição, seguida de sons agudos gritados por pelo menos cinco cavaleiros que se aproximavam pela escuridão da noite.

    Arslan já estava com seu sabre empunhado.

    Os homens, trajados em branco com túnicas de Al-Hael, ficaram frente a frente com Arslan, todos apontando cimitarras em sua direção. 

    O quinto homem, que chegou pouco depois, olhou devagar para a cena. Nenhuma palavra foi dita. A tensão crescia até que o homem que parecia ser o líder do bando se pronunciou.

    — Unzuru ya rijal, kam nahnu mahzuzun, — Disse, enquanto olhava diretamente para nós sem nenhum temor, como se fôssemos apenas caças indefesas. — Fabaynama kunna nabhasu ‘an al-fa’r al-muhtal, wajadna al-haribata aydaan.

    A frase denotava que a caça primária era Arslan, mas eu também estaria na mira. Comecei a forçar a mente para entender bem suas palavras.

    Tentei forçar para levantar, mas a perna não respondia. Olhei novamente para perceber que uma poça de areia molhada em carmesim se formava abaixo de meus pés. Esse era provavelmente o fim. Mas não sem luta.

    — Antes do fim, acho que deveria saber meu nome — Eu disse enquanto forçava a flecha para fora de minha panturrilha. — Me chamo Samira.

    A dor rasgou a carne, mas o grito abafado que soltei não era de sofrimento. Era a liberação da besta. Eu queria aquela dor como lembrete do que estava prestes a fazer. 

    O sangue escorreu, quente e grosso, misturando-se à areia sob meus pés. Tentei me apoiar, mas o chão gélido do deserto me traiu.

    — Samira… — Arslan Fierun murmurou, e havia algo mais naquele nome do que simples reconhecimento. — Um nome de fogo.

    O capitão dos caçadores, um homem alto de armadura de couro preto e cicatrizes que dançavam em sua testa, avançou. Seus olhos eram um mapa de crueldade.

    — Engraçado como às areias nós pregam peças —  Disse o homem mau encarado de barba longa e espessa no idioma dos caçadores. — Enquanto eu persigo um rato impostor, encontro também a fugitiva Samira! Quantas bençãos Hillal me trará hoje?

    Era difícil acreditar que com o passar dos anos, aquela escória branca vinda do norte tinha assimilado nossa religião à seus costumes. Mais um motivo pra limpar essa raça de nossas terras.

    — Cuidado com suas palavras — Respondeu Arslan, sem perder o foco nos cinco homens montados — Provavelmente serão as últimas. Pense bem nelas.

    — Arslan Fierun! — Bradou o homem enquanto os outros quatro cavaleiros desciam de seus cavalos e sacavam suas cimitarras — O controverso rei de Emerus! 

    — A vida nos força a ser controversos — Respondeu Arslan sem algumas representação visível de sentimentos — As escolhas são vastas, mas geralmente, não são as melhores. Para proteger, você precisa de poder, e para ter poder você precisa destruir.

    — Um bom discurso vindo de você! Vossa majestade — Zombou o homem, com uma risada seca e gutural — Genocida, manipulador, usurpador e até mesmo mentiroso! Eu, Motaz Azaiza, líder do terceiro regimento de Al-Hael, trarei justiça ao mundo, lavando a areia com seu sangue!

    — Você fala de justiça como se a praticasse — Arslan respondeu com o tom amargo, sua fúria se tornavam palpável quando ele olhou pra mim por um segundo — Infelizmente, esse mundo não é justo. E não será diferente com você!

    — Satajrī bi-damihi al-āh! Khudhū al-ḥāribah, wa adfnū al-farra! — Bradou o homem no seu cavalo em comando aos demais caçadores. 

    A tradução imperfeita me pôs em Pânico novamente. O medo paralisou meu corpo. 

    “Ele vai sangrar, capturem a fugitiva, e enterrem o rato” 

    Eu não seria capturada, me mataria antes. Ninguém usaria meu corpo novamente! Nunca mais!

    Os quatro caçadores, um homem grande e gordo, um ruivo barbado, e os dois jovens magros que pareciam gêmeos se moveram, cimitarras reluzindo sob a luz da lua.

    Arslan avançou, surpreendendo-os.

    O homem gordo foi o primeiro a cair. Ele mal conseguiu levantar o sabre antes que o de Arslan o atravessasse abaixo do diafragma, rompendo vísceras e forçando um vômito ensanguentado quase imediato. 

    Enquanto o gordo ainda tossia, Arslan girou o sabre e o puxou com um som úmido. Ele caiu na areia, contorcendo-se, os órgãos deslizando pela túnica branca. 

    Não! era rápido demais, ele não sofreria o bastante!

    Arslan se movia impiedosamente nas areias, como um demônio assassino! Mesmo sem demonstrar nenhuma emoção, ele parecia se divertir com a dor dos oponentes. 

    O ruivo e um dos gêmeos correram em minha direção. Eu estava no chão, sem arma, a perna inútil. O ódio me deu força. Mas a força era inútil, não pude levantar. Me arrastei com as mãos rasgadas pela areia gélida até perto do corpo de Adel, buscando desesperadamente por sua cimitarra. A passos rápidos os caçadores se aproximavam de mim. Um deles caiu em um cambalhota desengonçada quando uma adaga se pregou em sua cabeça pela nuca. O matando imediatamente. Era um dos gêmeos, os cabelos encaracolados e a barba grisalha se misturavam com sangue e areia enquanto seu corpo ainda cambalhota a pelas areias como uma bola de feno.

    Não tive tempo de calcular o trajeto da adaga, e nem como Arslan havia conseguido tempo o suficiente para mirar, arremessar e acertar na nuca do homem, mas ouvi seu irmão xingar em furor enquanto avançava mortakmente em direção ao suposto rei.

    Minha mão direita agarrou o sabre caído ao lado de Adel. Com um puxão, a lâmina saiu, junto com um pedaço de intestino. Usei toda a força que tinha e atirei a lâmina ensanguentada. O sabre rodopiou e atingiu o ombro do ruivo, cravando-se profundamente. Ele gritou, soltando a sua cimitarra e caindo de joelhos no chão. A mão esquerda tentando estancar o sangue que já encharcava seu manto branco.

    — Karim! — O gêmeo que atacava Arslan por trás gritou antes de ser abatido pelo próprio Arslan. O guerreiro rastejou entre as pernas do caçador, cortando-lhe o tendão de Aquiles. O jovem caiu de joelhos com um grito agudo de dor.

    Arslan levantou seu sabre, como se fosse uma torre pontiaguda, e desceu ele, como se nada estivesse em seu caminho. A cabeça do segundo gêmeo caiu, de certa forma, ainda viva. Pelo menos até ser chutada por Arslan. Voou por alguns metros e então rolou pela areia até bater na pata do cavalo do líder que observava a cena.

    — Uma ótima batalha para um homem morto! — gritou Motaz descendo finalmente de seu cavalo — Vamos ver de quê os nobres Emerianos são feitos!

    Motaz avançou como se deslizasse pela areia. Aquilo era incompreensível, até um pouco fantasmagórico. 

    O deserto pareceu se calar para ressoar o som da cimitarra e o sabre se chocando. 

    Um redemoinho subiu no momento do choque.

    Motaz atacava freneticamente com combinações impossíveis de golpes incessantes enquanto Arslan habilmente os bloqueava e esquivava. 

    Eu queria ser otimista, mas a vida havia me levado todo o otimismo. 

    Arslan estava sendo empurrado pelo furacão de golpes de Motaz, e apesar de não receber nenhum dos ataques, mal tinha tempo para planejar um.

    A cimitarra lampejava na noite em cada balançar, e o sabre a perseguia até um novo bloqueio. Parecia mágico, coreografado.

    Um suspirar agonizante me trouxe novamente a realidade, me tirando da hipnose que era aquele duelo. 

    Um homem, com o sabre preso no ombro!

    Reuni coragem e força o suficiente para levantar e trotar alguns passos agonizantes enquanto o som de lâminas se chocando vivi ficavam a noite desértica.

    Peguei abruptamente a adaga cravada na lateral do rosto de um dos gêmeos, o corpo balançou com a força e o sangue fluiu, mas não ouve nenhum gemido. O homem já estava morto. Rapidamente, me esforcei para alcançar o moribundo desgraçado. Ele já estava deitado, morrendo lentamente com o sangramento. Seus olhos se esbugalharam quando me viram se aproximando de seu corpo. Rapidamente ensaiou um levantar que nunca chegou, Tentou me agarrar e me enforcar com o braço esquerdo ainda bom, mas estava fraco. Impotente.

    Minhas emoções foram ao limite, e com um grito que misturava ódio, vingança e satisfação, comecei a golpear o coração do moribundo. 

    Uma bolha de sangue encheu seus lábios, mas eu não consegui parar. Ao ver seus olhos fechando, mudei meu alvo para a sua face, e instintivamente, golpeei repetidas vezes, furando seus olhos, rasgando a boca e qualquer outro pedaço de demônio que eu visse em minha frente. 

    Por um momento, esqueci do duelo épico entre Arslan e Motaz. Mas uma mão forte segurando a minha mãe fez lembrar que eu não estava sozinha. Instintivamente tentei me debater, disposta a não aceitar uma nova captura. Mas a voz de Arslan, não sei ao certo por qual motivo, me acalmou.

    Olhei rapidamente para às areias remexidas por sua luta procurando o corpo de Motaz, mas não o encontrei.

    — Foi uma boa luta — Disse Arslan sem felicidade ou tristeza, a mesma expressão vazia de sempre — Mas ele escapou.

    Com o rosto completamente manchado de sangue do homem ruivo a minha frente. Comecei a chorar.

    E só um nome me passava pela cabeça… Liah. 

    — Recomponha se — Você virá comigo, me levará aos feiticeiros — Obrigou Arslan com o tom sério. 

    Inicialmente, me senti ameaçada como quando com meus captores, mas logo ele terminou a frase e me deu motivos de sobra para decidir acompanhar o forasteiro. — Você merece, e terá sua vingança!

    — Fala como um verdadeiro salvador. — Respondi com firmeza, mesmo sabendo que eu teria poucas opções de escolha. — mas não acho que eu possa voltar a ser uma prisioneira, nesse caso, eu prefiro a morte!

    — Ninguém disse que você será minha prisioneira. — Explicou o homem branco do norte, sentando-se quase a minha frente, a uma distância segura de mim. — Você é livre pra escolher seu destino, assim como eu escolhi o meu. Mas escolha bem. Se quiser posso apenas ir embora, porém, você agora sabe que não sou um Al-Hael…

    — Entendo. — Compreendi rapidamente os termos. Talvez ele nem me mataria pessoalmente. Mas, me abandonar ali, ferida e fraca como eu estava. Seria o mesmo que me sentenciar a morte.

    — Eu vou! — Respondi depois de um longo suspiro e uma curta reflexão. — Mas preciso conhecer você. Tenho que ter um motivo para te levar aos feiticeiros!

    — Permanecer viva poderia ser um bom motivo? — Perguntou de forma sarcástica o homem branco, mesmo sem mudar sua expressão facial. — Ou talvez quem sabe, dominar todo seu reino e fazer justiça?

    — Confesso que a segunda opção me pareceu mais sedutora homem do norte! 

    Por um instante, tive medo de Arslan novamente. A resposta dele foi mais ousada do que eu poderia supor. Quais eram as intenções desse homem?

    — Samira! Enquanto procuramos por sua irmã, acho que deve ser sua maior preocupação no momento. — O rei de Emerus disse com o tom mais suave dessa vez, como se realmente se preocupasse com Liah. — Quero que me conte como o seu povo acredita que tudo surgiu. Quais são suas crenças e costumes. Quem são seus deuses.

    — Não entendo! — reclamei Atônita ao homem que agora se levantava me oferecendo ajuda para levantar também. — Ninguém entre os brancos nunca nos fez essa pergunta. Sempre dizem que nossa religião é pecado e que merecemos 100 chibatadas se formos pegos os adorando. Porquê um branco teria essa curiosidade?

    — Todos os mitos de criação tem uma parte em comum. — explicou Arslan — Seja um parágrafo, um pequeno trecho. Algo que indica que a força que criou tudo, criou “Ecos”. Os Elfos chamam de ecos da aurora, os humanos de Emerus chamam de as sete santidades. Os anões de as pedras do tempo, os Homens de Downfire chamam de Los Corazones del mundo e aqui em Riverdeep existem Os Tamari. 

    Aceitei a ajuda de Arslan para levantar. Ele gentilmente me apoiou pelo braço e me guiou até seu cavalo.

    Eu não estava confortável com o toque dele, mas pelo menos me sentia segura.

    Ele seguiu ao meu lado, guiando o cavalo e caminhando enquanto contava suas histórias de como os povos tinham os mesmos conceitos de criação contados de formas diferentes. E que ele acreditava que os tais ecos eram runas ou selos que equilibravam o mundo! 

    Eu, escutava tudo em silêncio. Não conseguia me concentrar muito bem em nada. Minha perna latejava em dor enquanto meu cérebro rodava na lembrança brutal de horas atrás, minha irmã e selos do poder e seus guardiões malucos. Estava quase pedindo para Arslan seguir a viagem sozinho pra eu ouvir o silêncio.

    As dunas eram iguais, não importa o quanto você andava. Elas eram sempre iguais…

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