Mentiroso

    ―嘘―

    Mentirosa

    Relatório:

    Antes de tudo, eu não busco nenhuma retratação, foi tudo consequência da minha estupidez.

    Eu lhe dei uma promessa vazia, subestimando-a por culpa de sua aparência infantil e atitude cômica.

    Suzamine, Suzume, vampira.

    Só percebi o meu erro quando já era tarde.

    Não se passou nem meio segundo do momento em que retirei suas algemas e meus joelhos dobraram. Instantaneamente.

    Certo, vamos ser honestos aqui, quanto tempo era estimado que eu manteria sob contenção um vampiro?

    “Are, mas esse corredor está muito apertado…” Resmungou. Deu suas costas para mim como se eu não representasse qualquer perigo e abriu os braços.

    As paredes desdobraram como se fossem de origami, esticando o espaço e crescendo colunas, quadros e móveis como estantes. 

    Meu corpo desabou no chão de cansaço, mas não antes do tapete bordô desabrochar a partir da minha bochecha e cobrir metade do salão, candelabros caíram ao redor e um grande lustre de ouro no centro. Ele projetou sombras fortes em todos os novos objetos do cenário, enquanto iluminava as superfícies com um brilho quase rosado. 

    Atrás de Suzamine, um trono grande caiu, como se feito para comportar uma grande pessoa.

    Digo, é um vampiro. Com toda a pompa…

    “Buu… Buu… E agora, qual o meu nome?” Sorriu, coçando o rosto. “Vá, faça a lista. Lancelot, Iscariotes, Propaganda anti clérigos, Sosuke, Ferreiro, Brutus.” Caminhou ao meu redor. A minha sombra parecia seguir seus passos, mudando de forma a cada nome dado. “Escolha o que achar melhor.”

    Eu calei por um instante, esperando que ela preenchesse o silêncio, desde que não cala a boca. Ela não fez, mas seus grandes cílios pareciam me cercar. Como se sua pupila fosse o centro de uma espiral. Seu sorriso com grandes caninos era afiado e caricato.

    “Isso… Não é assim.”

    “Hu?”

    “Digo, não era uma traição imprevisível.”

    “Bem, de certo houve um déficit em seu raciocínio lógico, não havia nada que garantisse os termos acordados.”

    “Eu apostei na sua palavra.”

    Mentirosa, Suzamine Carnivor Von Zinfandel era a pessoa mais mentirosa, trapaceira. Pior que eu, pior que Namae-nai.

    “Jackpot, eu não confiei na sua, por isso levei a casa pra casa.” Ela pisou na minha nuca. “Vampiros tem muitos pontos fracos, você não vive muito se não souber essas coisas… Seus batimentos, respiração, estava nítido, e eu tenho bom olho para mentiras. Você achou que acreditei em metade das suas promessas vazias?”

    “Uhgn—. S-sua… Pirralha suja.”

    “Pirralha? Olhe a língua, você está em desvantagem.”

    “Estou preso num domínio vampiro, com uma vampira de linhagem.” Ela soltou um suspiro. “Eu sou um homem morto, não há mais porque forçar uma aliança, nem medir minhas palavras com você, pequenina Suzu.”

    “Olhe aqui, eu tenho um corpo perfeito, ok?” Chutou meu rosto. Ela estava sobressalente e com pose de vitória, mas seu pisar era leve, não parecia querer me agredir quando o pé macio forçou meu rosto contra o chão.

    Pé macio? Senhor, devo estar me tornando um pervertido com a convivência com Mazou.

    Eu pisquei. Bandeiras com brasões dourados se desdobraram sob as colunas. O tapete varreu suas bordas para dentro soprando um ar cristalino, formando uma trilha até o trono mais à frente. Suzamine caminhou até ele.

    “Ah, bem melhor.” Ela parecia pequena no trono, mas isso não a coagiu em repousar nele mesmo assim, arrancou a outra sapatilha e rodopiou com a unha afiada do indicador. “Mas agora você está muito longe…”

    E como se o mundo não fizesse mais sentido a parede atrás de mim começou a se aproximar, empurrando meu corpo caído até a base do trono.

    Suzamine pisou na minha nuca novamente, com as polainas roçando a ponta do meu nariz.

    “Antes de tudo, como funcionam aquelas algemas esquisitas?”

    Ela quer informações? ‘Conheça o seu inimigo’.

    “É feito da terra.”

    “Tipo, barro? É cristão ou algo assim?”

    Essa conversa vai circular em volta de nada…

    “Só pense que é algo tão humano, que obriga você a agir como um.” 

    “Isso é muito vago, eu pensei que estávamos nos dando bem… Entenda, não dá pra colaborar com ninguém hoje em dia, as pessoas só pensam em te trair em qualquer oportunidade sabe?” Abriu um sorriso vitorioso. “Então, senhor-mata-primeiro-engana-depois, onde estávamos?”

    Apoiou o rosto no punho e cerrou os olhos em desdém, com uma explosão de purpurina uma pequena coroa flutuou no canto da sua cabeleira bicolor. Céus, eu poderia batizar isso de Lie fur day? 

    Oh não, pega mal. Péssima tradução.

    “Estávamos no momento em que você vira uma companheira legal e leal.” Eu comecei.

    “É mesmo, você me pediu em matrimônio.”

    “Não, não pedi.”

    “Tome responsabilidade pelas suas palavras, rapaz.”

    “Eu sei muito bem que palavras usei.”

    “Japonês tem várias interpretações por contexto, você deveria saber…”

    “Fale o que quer de uma vez, caralho.”

    Slap—! 

    Tapa.

    Sombra.

    Eu tive poucos aliados em vida, e nos momentos mais difíceis, aquele que nunca me traiu todo esse tempo foi, por incrível que pareça, eu mesmo. 

    Isso era, até hoje. Quando a minha sombra projetada pelo candelabro ergueu o braço me acertou um tapa.

    “Você não tem idade para chamar palavrões, pirralho.”

    Eu merecia essa.

    “Suzume-dono, o que vossa magestade senhoria de grande respeito e renome gostaria desse humilde caçador de demônios?” Fui o mais cínico e irônico que consegui, mesmo com a incredulidade da situação.

    “Oh, meu jovem servo Namae-nai… Ei, por que você não tem um nome mesmo? Isso é tão inconveniente.”

    “Chame como quiser.”

    “Hmm… Nai-nai? Eu te achei engraçado.”

    “Nai-nai? Pelo amor, tente ser séria ou ameaçadora uma vez na vida.”

    “Nai-nai, todos os meus ghouls morreram.”

    “Morreram?”

    Ah sim, o meu mentor lidou com eles.

    “Sim, por isso estou abrindo vagas para serventes que imploram, implore para me servir.”

    “Eu já estou em dois contratos escravos, o primeiro chama-se emprego, recomendo que se interesse po— Ouch!” Bateu o calcanhar na minha nuca.

    “Olhe aqui.” Ela saiu do trono, se agachou na minha frente e me levantou pelos cabelos, ficamos cara a cara, olhos com olhos. 

    Seus olhos eram azuis, azuis mais brilhantes que o mar.

    Azul de mil céus, cintilava como vidro, a chama dos candelabros refletia nos seus olhos. 

    “Eu estou enxergando, você tem diferenças.” Diferenças, ela sente o radar… O arrepio? “Ser um vampiro de linhagem implica impossibilidade em manter longos laços, você sabia? Vampiros transformados vivem menos que vampiros de linhagem, ghouls nunca poderiam ser mais que matar o tempo, mesmo que se concretizem como vampiros. Aqueles três eram babacas que tentaram me encurralar num beco, eu nunca manteria gente assim nem para matar tempo.” Seus olhos não tremeram, senti alguns fios do meu cabelo sendo arrancados pela firmeza da sua mão. “Você não é só um simples caçador de Yokais, estou certa?”

    “Ngh…”

    Engoli seco.

    Isso não é algo que se pode ser falado. 

    Dentre a organização, somente Namae-nai sabe as implicações do meu sangue, uma origem devassa.

    Minha mãe foi uma pessoa sorrateira, foi uma ótima mãe, mas uma péssima cidadã. Seus crimes não poderiam ser justificados, então ela morreu.

    Mas eu era inocente.

    Ainda não tinha nome, nem pecados, por isso, Namae-nai me acolheu e deixou tudo isso no passado.

    Passados são somente passado.

    Memórias são somente fantasmas.

    Mas Suzamine sabia demais, até para um centenário.

    Essa foi a primeira vez que ela pareceu ameaçadora aos meus olhos. 

    E não foi com uma arma, foi com um segredo.

    “Teus amigos invadiram meu domínio.”

    “UH?”

    “Quando uma porta se abre, ela fica instável por um tempo, seu amigo pode ter se aproveitado disso. Contudo, isso só ocorre do lado de fora. Domínios vampiros são cômodos que estão em todo canto, só precisam ser abertos, mas há algumas implicações, é como uma porta que abre para dentro.” Largou minha cabeça ao chão e retornou ao seu conforto, sentada. “Quando fresca, podem forçar a entrada porque, novamente, ela abre para dentro.” Discursou séria, fez uma pausa dramática e então. “Mas não se pode forçar uma saída, agora que estão dentro, a porta não abre para fora.”

    “Isso implica que…”

    “Você vai decidir nesse momento, ou será como pedi, ou vocês quatro vão, eternamente apodrecer nos corredores.”

    Isso é.

    O maior espadachim da era moderna e a oni que representa o desejo deixando a realidade.

    Existem vários e vários motivos de porque isso é ruim.

    Eu encarei o chão, o padrão do tapete. Meu cérebro esteve congelado por instantes.

    Ela está disposta a ir tão longe, por saber um simples segredo?

    Tanto.

    Eu não tinha mais motivos para colaborar desde que minha sobrevivência era nula. Mas isso é meio…

    Digo.

    Eu sou um Namae-nai.

    Quando nasci, minha mãe não me nomeou. Ela morava numa casa costeira do interior, lá, me criou chamando por ‘Namae-nai’.

    Ela foi uma ótima mãe se considerar que nem mesmo nome tive.

    Se nem mesmo um nome me foi concedido.

    Eu não sou especial, sem nome, sem registros, sem educação acadêmica, nada que realmente me faça pensar que mereço tanto valorizar a mim mesmo sobre a realidade. 

    Os sacrifícios são necessários.

    Ser um Namae-nai significa ser descartável.

    ‘A mamãe me ensinou a não ser egoísta.’

    Oh, eu tive uma lembrança ruim.

    “Suzamine.” Chamei.

    “Estou ouvindo.”

    “Solte-os, e eu juro fazer parte de qualquer um desses joguinhos seus.”

    “Ah? Não é assim que funciona.” 

    A pressão ao redor desapareceu e pude finalmente me desgrudar do piso. Enquanto eu me erguia, as unhas afiadas de Suzamine rasgaram a parte superior do uniforme que eu vestia.

    “Isso é…?” Ela apontou, confusa para a tatuagem de kanjis no meu pescoço.

    “Mazou-san. É um selo.”

    “Está escrito ‘Mazoku’.”

    “São Onis, humanos criam, humanos nomeiam.”

    “Justo…” Ela pareceu pensativa. “Mas infelizmente, eu não sou adepta ao politeísmo, você serve a só um.” Ela arranhou sob a tatuagem, a unha longa e afiada percorreu sob a tinta dos kanji e desfez lentamente o selo riscando a pele e arrancando à força. Cerrei os dentes, não era uma dor insuportável, mas era agoniante. “Agora…”

    Levantei o olhar novamente, Suzamine fincou o canino no próprio inficador e deixou o sangue escorrer. Gotejando sob o ferimento.

    Ping—.

    Dor.

    Agoniante, tortuosa dor.

    Um veneno letal, não, um demônio, alguma coisa viva estava se infiltrando na minha pele, forçando a passagem entre os músculos com garras afiadas.

    Eu ajoelhei instintivamente.

    “Agora sim, está certo.”

    O seu sangue e o meu se combatiam, ferviam, queimavam minha pele. O meu sangue estava sendo expulso do meu corpo, sendo trocado pelo dela enquanto transbordava para fora das minhas veias.

    Inútil. Tentar resistir a um vampiro se provou inútil.

    É um sacrifício.

    É assim que deve ser.

    Mazou e Namae-nai precisam retornar.

    O líquido ao chão formou uma poça tão grande que eu poderia me perder em meu próprio sangue.

    Um mar vermelho, eu vi nos hipnotizantes olhos da loira um temporal de emoções que tentei matar. Suzamine parecia sublime. Desabotoou sua blusa e estendeu a mão que gotejava seu sangue.

    Eu não me contive e beijei seus dedos.

    Senti estabilizar, estava recobrando os sentidos, aos poucos a visão normalizou.

    Então ouvi.

    “Casamento de sangue.” 

    A voz de Mazou ecoou agressiva, ríspida.

    Assim como suas próximas atitudes.


    Notas do autor;
    Eu voltei, dessa vez de verdade =]

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