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    A manhã nasceu leve, como se o ar carregasse uma energia nova que não existia na noite anterior. Eu senti isso no instante em que desci para o salão da guilda: a luz dourada entrando pelas janelas, o cheiro de pão recém-assado e algo cítrico que eu não consegui identificar, e a movimentação tranquila das poucas pessoas que acabaram de acordar ali. Selene já estava sentada perto da janela, mexendo no chá dela com uma expressão calma que parecia esconder mais mistérios do que eu conseguia compreender. Rose, por outro lado, parecia meio sonolenta, segurando uma tigela de mingau como se estivesse lutando silenciosamente contra a vontade de deitar ali mesmo.

    Sentei ao lado delas, e Selene ergueu o olhar com um sorriso sutil.

    — Bom dia, Ashley. Está com mais cor hoje — ela comentou, como se fosse uma piada interna, e eu ri baixo, mesmo sabendo que ela se referia mais ao meu humor do que a qualquer tom literal nos meus cabelos… mas chequei para ver se não tinha acontecido algo com eles.

    Tomamos o café da manhã conversando sobre coisas simples: o clima, a cidade, o treinamento dos dias seguintes. Às vezes Rose soltava um comentário inesperadamente espirituoso, e Selene rebatia de volta com uma certa ironia elegante, como se ambas tivessem um ritmo próprio que eu estava começando a acompanhar aos poucos. Tudo parecia tranquilo, quase comum… até que a atendente se aproximou com um pequeno envelope nas mãos.

    — A senhorita Selene? Entregaram isso pra você — disse a garota, estendendo o bilhete.

    Selene pegou o envelope com naturalidade. Ela olhou para o bilhete por alguns segundos, ele era pequeno e não parecia carregar muitas informações… mas tinha nele um lacre de cera escura que não consegui ver direito sua imagem. Depois, ela só dobrou o bilhete e guardou dentro de um dos bolsos.

    — Depois eu vejo isso — murmurou, como se não tivesse a menor importância.

    Rose arqueou uma sobrancelha. Eu também não pude evitar de ficar curiosa.

    — Algum problema? — perguntei, tentando soar casual.

    Selene apenas negou com a cabeça, mas o sorriso dela parecia ter aquela suavidade que aparece quando alguém está mentindo para tranquilizar quem está ao redor.

    — Nada que precise da nossa atenção agora. Vamos terminar de comer que hoje o dia será longo… quanto antes nos movermos mais traquila será a viajem.

    Aquela resposta me deixou com uma pulga atrás da orelha, mas resolvi não insistir. Se ela quisesse falar, falaria. E se não quisesse… bom, Selene tinha essa necessidade de carregar o peso do mundo sobre os ombros afinal.

    Ela mudou de assunto quase no mesmo segundo, inclinando o corpo para me observar pora alguns segundos.

    — Ashley — ela disse, cruzando os braços — acho que está na hora de uma nova lição sobre aventuras, você estará encarregada de adquirir os mantimentos necessários para a nossa partida, e no caminho por que não aproveita e compra algumas vestes que te ajudarão na sua jornada?

    — Eu… ok, e você não vem? Imaginei que você fosse vir com a gente — respondi, meio desconcertada.

    Selene soltou uma risadinha curta.

    — Pensei em ir, sim. Mas não seria um bom treinamento se eu acabasse fazendo tudo por você. Parte da aventura significa se virar, fazer escolhas rápidas, avaliar bem os arredores, negociar, saber quando confiar e quando não. Hoje você e Rose vão aprender isso juntas.

    Rose engoliu o resto do mingau e apoiou o cotovelo na mesa.

    — Finalmente um treinamento que não envolve correr até cair desmaiada, hein? — murmurou, me lançando um olhar cúmplice.

    Selene ignorou o comentário como se já estivesse acostumada.

    — Ashley, fale com a atendente depois. Essa é uma boa hora para usar parte dos recursos que você recebeu da guilda, afinal estará usando para completar o que falta no seu equipamento. Nós duas temos uma viajem longa pela frente… e eu quero ter certeza de que não vamos congelar, morrer de fome ou qualquer outra complicação por falta de recursos.

    — Calma aí… nós duas? — perguntei, sem conseguir evitar olhar para a Rose.

    Selene seguiu meu olhar em direção a Rose e entendeu a minha preocupação.

    — Ah… Rose, me perdoe se pareceu que estava te excluindo de algo, é que eu tinha entendido que você viria para Nautiloria com a gente e depois partiriamos por caminhos diferentes… mas caso queira seguir viajem, estaremos de partida para o Reino do Fogo.

    — Er… eu pensei que seria algo assim também, mas nos últimos dias acredito que passei a considerar vocês mais do que eu esperava… apesar de não ter conseguido o que vim buscar, eu acredito que meu caminho está alinhado com o de vocês, se não for problema é claro.

    Eu respirei fundo, tentando absorver tudo de uma vez. A sensação de responsabilidade pesou um pouco mais nos meus ombros, mas junto dela veio algo diferente… uma empolgação discreta, quente, como se o dia estivesse se abrindo diante de mim com promessas que eu ainda não sabia nomear.

    — Isso nunca seria um problema Rose, será um prazer continuar viajando com sua companhia — meu rosto se moldou em um sorriso sincero, eu realmente estava feliz em ter uma amiga nessa jornada.

    Ela me abraçou apertado por um tempo maior do que eu esperava e me soltou com um sorriso caloroso. Quando terminamos o café, Selene se levantou com a postura impecável de sempre e nos deu um último olhar firme.

    — Comprem apenas o necessário. E Ashley… observe tudo. Pessoas, preços, reações. Aprenda com a experiência. É assim que aventureiros de verdade se formam.

    — Não precisa se preocupar tanto Selene, estou mais acostumada com essas atividades do que pareço.

    Ela lançou um olhar de duvida, mas acabou não perguntando nada, apenas riu e acenou para a gente enquanto iamos em direção do balcão. Vários aventureiros iam e vinham com passos apressados, carregando armas, pergaminhos, mochilas novas; outros discutiam recompensas, missões, rotas. Eu me sentia… parte daquilo. Ainda pequena, ainda começando, mas parte.

    A atendente da guilda me reconheceu de imediato. Ela sempre sorria quando me via, como se estivesse satisfeita por me acompanhar desde meu primeiro dia ali.

    — Bom dia, Ashley. Em que posso te ajudar?

    Eu respirei fundo, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.

    — Eu… queria saber como ter acesso aos recursos que deixei guardados na guilda. Ou parte deles, pelo menos. Selene disse que eu deveria pegar um pouco para as preparações da viajem.

    A atendente assentiu com profissionalismo.

    — Claro, é bem simples. — Ela estendeu a mão e fez um gesto para que eu entregasse algo. — Você trouxe sua licença de aventureira?

    Peguei o cartão rígido no bolso e entreguei. Ela o deslizou em um pequeno aparato metálico com uma superfície brilhante, e símbolos luminosos se acenderam por baixo, como se estivessem lendo o conteúdo.

    — Com sua licença, você pode acessar seus recursos em qualquer banco afiliado à guilda ou diretamente aqui. Funciona como uma conta pessoal entende? Para facilitar a movimentação de recursos entre cidades e reinos. O ouro depositado fica registrado no seu nome.

    — E itens? — perguntei.

    — Itens só podem ser retirados aqui mesmo. Por segurança. Especialmente equipamentos raros ou artefatos.

    Ela me devolveu o cartão junto com um pequeno saco de moedas. O peso na minha mão trouxe uma sensação estranha de responsabilidade.

    — Aqui está uma parte do que você tem guardado. Como é sua primeira retirada e faz pouco tempo que guardou seu ouro, por motivos de segurança só podemos disponibilizar isso por enquanto, mas acredito que da e sobra para qualquer viajem.

    — Obrigada — respondi, inclinando a cabeça. Eu já estava pensando no que comprar — talvez roupas de frio melhores, talvez poções, talvez algo que Selene diria que eu estava esquecendo… se bem que roupas de frio não são tão eficazes no Reino do Fogo…

    Rose tocou meu ombro.

    — Pronta para gastar sua primeiro pagamento por uma missão?

    — Não diria que foi meu primeiro pagamento. Mas estou mais pronta do que meu bolso provavelmente gostaria.

    Ela riu e seguimos em direção ao mercado da cidade.


    O vento da manhã carregava certa umidade, mas não o suficiente para dissipar a tensão que crescia dentro de mim desde que recebi aquele bilhete. Andei até o ponto de encontro combinado — um beco estreito atrás de um armazém abandonado, onde qualquer presença se misturava às sombras.

    Ele já estava lá.

    O homem vestia um manto pesado, grosso demais para a temperatura do dia, com o capuz abaixado o suficiente para obscurecer qualquer traço do rosto. Apenas a voz — calma, grave, quase abafada — denunciava que ele não era alguém comum.

    — Você veio rápido — comentou ele.

    — Eu não tinha motivo para esperar Noctis. — Cruzei os braços. — Você disse que conseguiu as informações. Quero que seja detalhista. Isso pode ser um assunto maior do que imaginávamos.

    Ele assentiu lentamente.

    — Vamos começar por Rivendrias.

    Olhei atentamente ao redor para checar se não havia mais ninguém por perto.

    — Investiguei o ataque do elemental de água. Consegui relatos de moradores… e todos contam a mesma coisa. Quatro indivíduos usando mantos escuros foram vistos antes do ataque. Sempre em locais movimentados. Nunca juntos, mas próximos o suficiente para parecerem coordenados.

    Eu absorvi cada palavra em silêncio.

    — A aparição do elemental foi anormal por si só, elementais não aparecem assim do nada — continuou ele. — Ele surgiu diretamente da fonte da praça, e sem qualquer aviso começou a destruir tudo ao redor… de forma aleatória. Até que viu a garota. A partir desse momento, os que viram a cena relataram que sua atenção ficou presa nela. Como se algo o atraísse.

    Senti minha respiração travar. Eu já imaginava, mas ouvir isso com clareza… mexeu comigo.

    — Ele a reconheceu — murmurei, mais para mim mesma. — Ou reconheceu algo que havia nela… talvez não tenha sido uma coincidência afinal.

    Ele não confirmou nem negou. Apenas seguiu.

    — Agora, sobre o vilarejo. O homem que você abateu… eu investiguei o local onde ele estava escondido. Encontrei um diário. — Ele tirou um caderno fino e amarrado com um cordão. — Estava realizando sacrifícios para um demônio na esperança de se livrar da corrupção que consumia o corpo dele.

    Meu sangue ferveu ao lembrar daquele momento.

    — Ele já estava completamente tomado. Era irreversível.

    — Sim. — Noctis assentiu. — Nos registros dele há menções a um cientista que foi preso, alguém que prometeu uma forma de contenção. Mas o mais importante é o que encontrei no armário: botas gastas e um uniforme do Reino da Água. Comparei com registros de desaparecidos de Nautiloria.

    Ele então puxou um retrato.

    O rosto era conhecido. O mesmo olhar… só que menos vazio, mas ele tinha a mesma expressão fria de antes de tentar me matar no vilarejo.

    — Frank Kirck — disse ele. — Um guarda de Nautiloria. Desaparecido há cerca de um mês. Tudo indica que era a mesma pessoa.

    Eu peguei o retrato e confirmei com um aceno lento.

    — É ele. Sem dúvida.

    Ele guardou tudo e, por fim, mudou o tom.

    — Agora… sobre a garota.

    Senti o peso dessas palavras mais do que deveria.

    — Ela viveu a vida toda com a avó. Estudou em Rivendrias, uma criança muito ativa, sempre envolvida em pequenas aventuras com os amigos. Mas, conforme crescia… eles coresciam… enquanto ela permanecia desbotada, ela começou a se afastar. Vergonha, talvez. Ou medo de ser deixada para trás ou mal tratada por aqueles que eram seus amgios.

    Minha garganta ficou seca. Eu respirei fundo, mantendo a compostura.

    — Uma coisa chamou minha atenção nessa história — continuou ele. — A avó dela faleceu durante a noite poucos dias antes de você chegar à cidade. Não havia sinais de doença. Relataram que ela estava saudável para a idade que tinha. A morte foi… inesperada.

    Uma tragada fria percorreu minha coluna.

    — E depois disso?

    — A garota se isolou ainda mais por um tempo. Até que um dia simplesmente saiu de casa, foi até a praça do mercado de Rivendrias e começou a trabalhar para os comerciantes. Ela nunca mais voltou para a vida antiga. Depois disso… acredito que você já conhece o resto da história.

    Um longo silêncio se instalou. Eu deixei as informações me atravessarem… o ataque a Rivendrias, o demônio no vilarejo, a morte da avó da Ashley… de alguma forma todos esses eventos ocorreram após aquele sonho… e indiretamente podem ter alguma relação com a garota…

    Após um tempo pensando finalmente quebrei o silêncio:

    — Você fez um excelente trabalho. Obrigada mais uma vez Noctis.

    Ele inclinou a cabeça em reconhecimento.

    — Não foi nada princesa, me perdoe pela demora inclusive, mas e agora? Já vai partir de volta para a mansão Emberfell?

    — Sim. Vou voltar para o Reino do Fogo com elas ainda hoje. — Ajustei o manto sobre os ombros. — E seja lá o que estiver acontecendo… não vou deixar que atinja a garota novamente.

    — Que assim seja. Você sabe como me encontrar caso precise.

    Ele desapareceu entre as sombras, deixando apenas o eco da minha própria inquietação enquanto eu segui meu caminho de volta para reencontrar as duas.


    Quando voltamos para a guilda, já com o pequeno saco de moedas quase vazio, encontrei Sophia sentada perto da janela, balançando as pernas no banco enquanto folheava algum livro. Ela levantou o rosto ao me ver e abriu um sorriso leve.

    — Conseguiram encontrar tudo nos lugare que indiquei garotas?

    — Quase tudo — respondi, exibindo o saco de moedas. — Pelo menos agora eu posso comprar as coisas sem ficar contando moedas de cobre como uma criança no mercado.

    Ela riu.

    — Bem-vinda à vida adulta.

    Antes que eu pudesse responder, Selene entrou pela porta da guilda.

    E não sei explicar o porquê… mas havia algo diferente no jeito dela caminhar. Mais quieta, talvez mais carregada por dentro, como se tivesse guardado um peso que eu não conseguia ver. Mas quando ela nos encontrou, sorriu como sempre: pequeno, discreto, mas aquecedor.

    — Prontas? — perguntou.

    — Sim — eu e Rose respondemos quase em uníssono.

    Naquele momento eu sabia que o que viria… a tarefa que eu não estava preparada para encarar: as despedidas.

    Os aventureiros que conhecemos ao longo dos últimos dias foram surgindo aos poucos — o trio da guilda de Nautiloria, alguns membros mais velhos, até a própria Aqua apareceu carregando um cesto de doces coloridos que sobraram do festival.

    — Vocês voltam, certo? — perguntou a mestra da guilda, com um sorriso demasiadamente sincero para alguém que costumava parecer tão imponente.

    — Espero retornar em breve — respondi, e aquilo soou mais verdadeiro do que eu esperava.

    Aqua se aproximou de nós com um olhar semelhante ao de uma mãe vendo seus filhos partirem de casa em busca de aventuras.

    — Uma coisa antes de irem. Lembrem-se de que agora são aventureiras da Guilda do Redemoinho Celeste, vocês tem nosso apoio total em sua jornada, mas tudo que fizerem pode afetar um pouco a imagem da guilda então tenham cuidado. — Ela deixa transparescer um sorriso de confiança que logo é retribuido.

    Recebi abraços, tapas nas costas, votos de boa sorte. Senti o calor de um lugar que, mesmo sem perceber, já estava começando a sentir saudade.

    Quando finalmente deixamos a guilda para trás, o sol estava subindo ainda mais, pintando o céu com um azul translúcido que deixava os telhados de Nautiloria ainda mais belos. Seguimos pelo caminho de pedra que margeava os canais até chegarmos ao cais.

    O rio era largo, calmo e espelhado: refletia o céu como se fosse um espelho. Pequenos barcos estavam atracados, alguns simples para a atividade de pesca e outros claramente usados por transporte regular entre reinos. O cheiro de madeira molhada e correnteza me trouxe uma sensação de aventura, mas também um certo desconforto com o que eu poderia encontrar pelo caminho.

    Um barqueiro, grande e de barba desgrenhada que parecia ter sido penteada pelo vento, ergueu a mão ao nos reconhecer como passageiras.

    — Vocês são as três que marcaram passagem para atravessar pro território do fogo, certo? — perguntou, aproximando-se.

    Selene confirmou com um gesto.

    — Ótimo. O dia tá limpo, o rio tá tranquilo. Com essa maré, a viagem deve durar umas cinco a seis horas. — Ele apontou para o céu límpido acima. — Sair cedo assim é a melhor escolha. Chegaremos bem antes de escurecer.

    Olhei para o barco: simples, mas robusto, com bancos de madeira e um toldo improvisado para proteger do sol. Nada demais… mas o suficiente para me fazer perceber que estávamos realmente partindo.

    Eu respirei fundo. Não era só outra viagem. Era meu primeiro passo definitivo rumo ao Reino do Fogo.

    Selene subiu primeiro, depois a Rose, e eu fui logo atrás. Quando o barco se afastou do cais, senti Nautiloria começar a ficar menor. As torres azuladas, as bandeiras reluzindo, as pontes arqueadas… tudo parecia se despedir de nós.

    Eu me sentei no banco lateral, o vento batendo no meu rosto, leve e convidativo. E me perguntei, em silêncio, o que nos aguardava do outro lado daquele rio.

    Selene estava quieta demais. Rose observava os arredores do barco, sem perceber olhei para a água e me lembrei do terror que enfrentamos abaixo daquelas águas pouco tempo atrás… apesar de tudo que aconteceu, sinto que estou mais forte, não sei se forte o suficiente para qualquer problema que venha pela frente, mas esse é o caminho que decidi tomar e irei seguir até o fim…

    Fim do Capítulo 69: Amanhecer Banhado pelo Destino.

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