Capítulo 96 - Dor de Cabeça.
A dor veio primeiro.
Uma martelada grossa atrás dos olhos, depois outra, como se alguém estivesse batendo ferro quente dentro da cabeça dela.
Naira abriu os olhos devagar. Estava deitada sobre um tapete grosso e escuro, limpo demais para ser de taverna. Havia cheiro de casa bem cuidada. O teto era de madeira polida. Quando virou a cabeça, viu Ronan estendido ao lado, sem camisa, o braço dele servindo de travesseiro improvisado: sua cabeça estava apoiada ali.
Naira sentou tão rápido que o mundo balançou.
Merda.
O que eu fiz?
Ela passou a mão no rosto, tentando lembrar de qualquer coisa que explicasse por que tinha acordado ao lado de um garoto nobre num lugar que definitivamente não era o bar.
Antes que o pânico ficasse maior, passos ecoaram no corredor.
A porta se abriu.
Hark apareceu com uma bandeja nas mãos. Pão, caldo quente e um jarro de água. Ele olhou a cena e… sorriu. Caminhou sem pressa, como quem já esperava encontrá-los exatamente assim.
— Bom dia. Ou boa tarde, na prática — disse, pousando a bandeja. — Pensei que ia ter que arrastar vocês dois até o templo.
Naira piscou devagar, ainda com a cabeça latejando.
— Hark…? Onde…?
— Minha casa — ele respondeu, sentando-se numa cadeira. — E antes que faça qualquer teoria: vocês dois desmaiaram. Nada mais. Ronan caiu primeiro. Você se recusou a ir embora enquanto brigava com o dono do bar porque ele não queria te servir mais bebida.
Ele ergueu uma sobrancelha, divertido.
— E quando eu tentei te tirar de lá… você me deu um soco.
Naira arregalou os olhos.
— Eu bati em você?
— Um belo soco, inclusive — disse Hark, tocando o maxilar. — Se não soubesse que você não usou mana, teria achado que tentou me matar.
Naira levou a mão à cabeça outra vez, resmungando algo ininteligível.
Hark apontou para Ronan, ainda desmaiado no tapete.
— Me faz um favor: acorda esse príncipe perdido antes que ele acorde vomitando no carpete.
Ela cutucou o ombro dele com o pé.
— Ronan. Acorda.
— Nhg— hã? — Ele abriu um olho, viu luz, fechou de novo. — Vou morrer…
Naira deu outro cutucão.
— Vai morrer lá fora. Anda.
Ronan cambaleou até a porta, tropeçou no batente e sumiu para o jardim. Segundos depois, o som previsível ecoou lá fora: vômito no gramado.
Naira fechou os olhos por um instante, respirou fundo.
— Desculpa pelo caos — murmurou para Hark. — Não era a intenção invadir sua casa.
Hark apenas balançou a cabeça.
— Não precisa se desculpar. Fazia tempo que eu não me divertia. E, sinceramente? Foi bom esquecer alguns problemas. — Ele sorriu de canto. — E, caramba, você bate forte. Já pensou em entrar para a guarda?
Ronan voltou, pálido como giz, apoiando-se na porta.
— Eu quero… água… — Ele parou ao lado do vaso de água, forçando os olhos a abrir. — Naira?… que estranho, geralmente Hark não traz estranhos para casa.
Hark respirou fundo, olhando para Ronan.
— Como assim estranhos, seu maluco? Você me apresentou ela e disse que era confiável.
— E ela é, para alguém que conheci ontem…
Hark deu uma risada curta, olhando para Ronan e depois para Naira, que confirmou com um aceno.
— Ronan… — Hark falou, levantando-se e caminhando na direção de Ronan, claramente irritado. Ronan tentou correr, mas tropeçou e caiu de cara no chão, num tombo surdo.
…
Naira apontou para ele.
— Ele morreu? — perguntou, levantando-se devagar.
— Não, só bêbado mesmo.
— Nesse caso, eu já vou indo. Como Ronan falou, a gente se conheceu ontem e não quero atrapalhar.
Naira se virou procurando a porta quando Hark falou:
— E vai pra onde agora que está presa com ele?
Naira congelou.
— Como assim presa?
Hark respirou fundo.
— Bem… em Cervalhion, se uma dama dorme na casa de um nobre solteiro… com o nobre solteiro… ela vira a primeira esposa dele.
O silêncio durou um segundo. Depois, o corpo de Ronan estremeceu no chão e ele se ergueu num pulo, olhos arregalados.
— O QUÊ?!
A quase-gritaria de Naira ecoou pelo cômodo. Hark explodiu em gargalhada e precisou enxugar os olhos.
— Tô brincando — disse ele, enxugando uma lágrima de tanto rir. — Mas já teve garota que tentou usar essa tradição pra cima do Ronan, então achei que você ia gostar da piada.
Ele olhou para ela com mais seriedade, porém amigável:
— Te coloquei aqui porque você parecia decente. E porque não ia deixar vocês jogados na rua. Só isso.
O constrangimento foi tão forte que quase expulsou a dor da cabeça de Naira. Ela respirou fundo, tentando recuperar um mínimo de dignidade.
Ronan ainda parecia em choque.
— Primeira esposa…? — murmurou.
— Cala a boca, Ronan — Naira respondeu.
Hark se levantou, batendo as mãos uma na outra.
— Venham. Minha esposa preparou algo pra ressaca de vocês dois. Se sobreviverem, eu levo vocês até a praça depois.
Eles trocaram um olhar — Ronan miserável, Naira irritada —, ambos derrotados pela madrugada. Seguiram-no pelo corredor de uma casa bem cuidada: um lar que tinha a calma e a ordem de quem ganha bem pelo trabalho. Não era mansão de nobre, mas não era moradia simples; parecia a casa de alguém que faz parte da cidade e é respeitado por isso.
Enquanto desciam, Hark olhou para Naira com um ar mais sério.
— Você lutou bem ontem — disse, em voz baixa. — Se precisar de alguma coisa na cidade ou uma indicação para ingressar na guarda, pergunte por Hark. Não prometo favores de rei, mas posso servir de indicação.
Naira assentiu, ainda meio tensa. O cheiro do caldo quente subiu pelos degraus e, por um segundo, o mundo ficou mais simples: pão, sopas e alguém que, por uma manhã, tirou a cidade da conta do que a perturbava.
A cozinha de Hark era surpreendentemente acolhedora para alguém que trabalhava prendendo magos. Fogão de pedra aquecido, mesa robusta, panelas penduradas com cuidado… e um aroma de caldo forte com ervas que fez o estômago de Naira roncar apesar da náusea.
A esposa de Hark, Meriel, já servia três tigelas quando eles entraram. Uma mulher de cabelos castanhos escuros presos num coque simples, olhar firme, daqueles que parecem enxergar além da ressaca de qualquer um.
— Sentem — disse ela, sem cerimônia. — E, Ronan, por favor, tente não cair da cadeira.
Naira obedeceu. Ronan tentou, mas precisou segurar a mesa para não tombar.
Hark riu baixo.
— Isso aí, campeão.
Meriel colocou as tigelas na frente deles.
— Comam devagar. Vai ajudar.
Naira tomou o primeiro gole com cautela. O calor desceu pela garganta e abriu um caminho de vida dentro dela. Ronan bebeu como se aquilo fosse salvar a alma dele.
A conversa começou sem pressa.
— Então — Meriel disse, apoiando as mãos na cintura — vocês escolheram uma bela noite pra se meter em confusão, hein?
Hark ergueu uma sobrancelha.
— Confusão é o nome do meio do Ronan.
— Vai à merda — Ronan murmurou, mas sem força nenhuma.
Naira estava ocupada demais tomando o caldo quando Ronan falou:
— Hark, ontem me falaram… sobre o Danurem — começou ele, mirando o caldo como se estivesse pensando alto. — Ele voltou mesmo da região Oeste?
Hark assentiu.
— Voltou. E não só ele. Toda a unidade principal dos caçadores de magos está na capital agora. Ordem direta do Rei Aedin.
Ronan suspirou longo, como se aquilo fosse exaustivo só de pensar.
— A cidade está um caos silencioso — disse ele. — Todo mundo se fazendo de bom cidadão porque sabe que qualquer besteira pode chamar a atenção da unidade. Os bares estão com metade da graça.
Hark completou:
— Prefiro assim. Menos gente perdendo dente à toa.
Naira ficou rígida, mas não por causa da ressaca.
Toda a unidade de caçadores de magos reunida?
Em plena Cervalhion?
Isso não era normal. Nem estratégico, a menos que…
Meriel serviu água nas canecas e, enquanto fazia isso, falou:
— E tudo isso por causa do Guardião, imagino.
Hark a encarou com um olhar de “sério que você falou isso?”.
Ronan parou de beber.
Naira disfarçou o interesse mexendo a colher.
— Meriel… — Hark suspirou. — Ninguém disse que é por causa do Guardião.
— Claro que não — ela rebateu, meio sarcástica. — Só coincidiu da unidade inteira voltar, o Danurem largar o Oeste e metade dos nobres estarem andando por aí como se esperassem ver um raio cair do céu.
Ela voltou a mexer panelas, como se nada tivesse dito.
Hark coçou a barba.
— Não acho que seja isso. Se fosse por causa do Guardião, bastava o Dan. Ele dá conta sozinho de qualquer mago.
— De qualquer mago comum, sim — Ronan corrigiu, apontando a colher para ele. — Mas, se os rumores forem verdade… não estamos falando de “mago comum”. Estamos falando de uma lenda viva. De alguém que enfrentou gente que nem existe mais pra ser enfrentada.
Ele olhou para Naira com uma mistura de fascínio e medo.
— Se um dos Guardiões originais está de verdade solto por aí… eu também ficaria curioso para saber como ele é.
Naira manteve o rosto neutro.
Mas, por dentro, sua mente já corria em múltiplas direções.
Uma unidade inteira de Ordo.
Rei envolvido.
Reunião dos três reinos.
E caçadores de magos andando como se esperassem que algo acontecesse.
Ela tomou outro gole do caldo.
— Então vocês realmente acreditam que o Guardião pode estar em Cervalhion? — perguntou, com a naturalidade de quem só cumpria a curiosidade de alguém novo na cidade.
Ronan deu um sorriso cansado, animado demais para alguém que parecia à beira da morte.
— De fato, Altheria trouxe um Guardião, mas eu não sei se acredito que aquele Guardião é, de fato, o das lendas.
Naira segurou a colher com firmeza.
É…
Ela teria trabalho.
O sol ainda estava descendo quando Naira deixou a casa de Hark e desceu a rua em silêncio, sentindo a mente latejando — parte ressaca, parte ansiedade.
Ela precisava avisar Ian. Precisava falar com Thamir. Precisava organizar tudo na cabeça antes que algo de ruim pudesse acontecer.
Mas, ao chegar à hospedaria, se deparou com guardas na frente e sinais de briga pelo saguão.
Os guardas de Altheria eram rigorosos; nunca iriam começar uma briga ali.
Naira entrou devagar, aproximando-se de um dos guardas.
— O que houve?
— Boa tarde, Naira. — O soldado coçou o braço de forma leve. — Também queria saber. Parece que Serena brigou com Thamir ou algo assim.
— Serena? Brigando com Thamir? Isso não faz sentido.
— Eu sei, mas foi o que me falaram.
Naira avançou até o corredor dos quartos.
Assim que olhou para dentro do quarto de Thamir, encontrou a cena que prendeu o ar no peito dela.
Serena, sentada no chão, o corpo inteiro tremendo.
Thamir, ajoelhado à frente dela, com o rosto suado, segurando o pulso da garota como se mantivesse alguém vivo.
Kael encostado na parede, em alerta total.
Dois guardas desacordados no chão, mas respirando.
Thamir ergueu os olhos quando a viu.
— Naira… — a voz dele estava grave, tensa. — Ainda bem que voltou.
Serena arfou e tentou se encolher mais, como se fugisse de algo que ainda estava dentro dela.
Naira se aproximou, o coração disparado.
— O que aconteceu?
Thamir fechou a mão, contendo a própria raiva.
— O Andarilho. Parece que aquele desgraçado ainda não conseguiu o que queria.
— Ele atacou ela? — Naira olhou para os guardas caídos. — Como?!
— Se eu soubesse, te contaria.
Serena apertou a cabeça, soluçando.
— Eu… eu fiz?… o que eu fiz?… porque… ele…
Thamir respirou fundo.
— Ele só consegue entrar na mente de uma pessoa por vez. Parece que tem a mesma limitação de Tyr. Por isso ninguém mais sentiu o ataque a tempo. Ele focou tudo nela. Uma invasão direta, profunda… — o olhar dele ficou escuro — do tipo que pode destruir alguém se durar mais.
Naira ajoelhou ao lado de Serena.
— Ele pediu algo? Disse algo?
— Não… não me falou nada.
Nesse momento, Kael que até então estava quieto interviu:
— O que você viu?
Serena engoliu seco, os olhos arregalados como se ainda ouvisse o eco do intruso.
— As… As memórias… As minhas memórias.
— Qual delas? — Naira perguntou, firme.
Serena tremeu.
— Tudo o que eu sabia do… do Ian.
Naira prendeu o ar.
Thamir continuou, a voz baixa:
— Quando percebi que algo estava errado, tentei puxá-la da ilusão. Ele fez ela me atacar para me afastar. Ela não tinha controle nenhum do próprio corpo. Se Kael não tivesse chegado…
Kael completou, frio:
— Eu senti o fluxo quando ela perdeu o controle. Por um segundo, eu jurei que era o Tyr, então vim investigar. Esse desgraçado sabe exatamente o que está procurando.
Naira fechou as mãos em punho, a mente disparando em direções diferentes.
A unidade de caçadores de magos estava na capital.
Havia usuários de Ordo circulando por toda parte.
Danurem estava se movendo.
E agora um Andarilho estava vasculhando mentes em busca de Ian.
Os fios se juntaram de forma perigosa.
Serena sussurrou, quase chorando:
— Ele vai voltar?… e se ele não encontrou o que queria?…
Naira se levantou devagar.
O medo transformou-se em decisão.
— Ian precisa saber disso imediatamente.
Thamir assentiu, sério.
— Vai. Nós cuidamos dela.
Kael a encarou por um segundo antes de falar:
— Não vá sozinha. Soube que os caçadores de magos voltaram para a capital. Cervalhion não está segura para ninguém com traços mágicos… e nós temos demais.
Naira ignorou a dor que ainda pulsava na cabeça, virou-se e caminhou até a porta com passos rápidos.
As palavras de Serena ecoavam como um aviso atravessado:
Ele vai voltar.

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