Capítulo 061 — “Pelas costas.”
O calor da forja cobria tudo de um laranja pesado.
No segundo dia dos desafios, o objetivo era forjar uma lança com cabo longo, lâmina firme, equilíbrio perfeito.
Kalamera mal via a barra de aço diante dela.
Os quatro braços se moviam no automático: um segurava o metal com a tenaz, outro regulava o fole, os outros dois alternavam marteladas e ajustes no cabo. Os golpes tinham o ritmo certo, mas não tinham alma. O som da forja parecia distante, abafado por uma lembrança que não saía da cabeça.
O rosto de Gorthen, coberto pelo pano.
Ela sentira o peso daquele pano nos dedos de metal. Leve demais para um mestre ferreiro.
Perto dali os oficiais observavam as bancadas com uma atenção estranha. Não era o olhar animado do dia anterior. Era rígido, travado. Os mestres ferreiros do Império dividiam o espaço entre as forjas: alguns murmuravam entre si, outros fingiam normalidade, explicando regras para aprendizes e anotadores.
Na arquibancada, ninguém sabia de nada.
Risos, comentários sobre apostas, torcida para a “campeã do dia anterior” tentar repetir a façanha.
— Hoje é lança, competidores. — Um oficial anunciou em voz firme, como se nada tivesse acontecido ao amanhecer. — Mesma regra: material padrão, nada extra. Cabo, lâmina, fixação. Estrutura, equilíbrio e acabamento serão avaliados.
Kalamera apertou a tenaz com força demais. O metal tilintou.
Ela respirou fundo. Tentou focar.
Solun Odrin.
O lendário ferreiro, fundador do Império, tão bom na linha de frente quanto na bigorna. Gorthen falava dele como quem fala de um velho amigo que nunca conheceu. Contava histórias de batalhas, de forjas improvisadas em meio a cercos.
E agora, a espada dele sumira.
E Gorthen estava morto.
Ela ergueu o martelo de novo. O braço de metal tremeu.
— Vai deixar a lança torta desse jeito.
A voz entrou de lado, cortando o pensamento como uma lasca de metal no olho.
Nareth trabalhava na bancada ao lado, o corpo magro curvado sobre o próprio projeto. Ele nem olhava para a barra diante dele; olhava para a dela.
— Ou isso é algum estilo novo de Wynrae? — Ele passou o pano pelo cabo da própria lança com calma exagerada. — Ponta torta pra combinar com a cabeça da ferreira?
Alguns competidores mais próximos olharam de relance e voltaram ao trabalho. Provocação entre ferreiros não era novidade.
Kalamera travou a mandíbula. Acertou mais três golpes no metal. O som saiu seco, duro demais. O formato da lâmina começava a abrir, mas os ângulos fugiam um pouco do que ela queria.
— Cuidado. — Nareth completou, como quem dá um conselho sincero. — Se continuar assim, vão achar que você só ganhou ontem porque o juiz ficou com pena.
Um dos aprendizes deu um riso abafado. O oficial mais próximo cortou com um pigarro, mas não falou nada.
Kalamera sentiu o peito apertar.
Ela levantou o martelo mais uma vez. O braço superior tremeu de novo. A vista embaçou rápido. Ar quente, fumaça, lembrança do pano sobre o corpo.
Uma lágrima escorreu antes que ela pudesse conter.
Nareth viu.
Ele inclinou um pouco o rosto, o canto da boca subindo.
— Olha só… a campeã chora. — Ele baixou o tom, só para os mais próximos. — Achei que uma ferreira de Taeris fosse feita de coisa mais dura.
Os dedos de metal de Kalamera rangeram no tenaz. O som se misturou ao estalo do carvão no braseiro. Ela passou o antebraço de baixo pelo rosto num gesto rápido, mas os olhos continuavam vermelhos.
— Cala a boca e trabalha. — Um competidor mais velho, dois bancos adiante, murmurou sem tirar os olhos da própria peça. — Ninguém quer perder tempo com drama.
— Relaxa. — Nareth respondeu, sem largar a presa. — Só estou preocupado. Se ela desabar aqui, alguém pode tropeçar em cima da lança e perder um braço e ficar igual a ela.
Alguns ferreiros fingiram que não ouviram. Outros prenderam o riso no fundo da garganta.
Kalamera sentiu o estômago virar.
Ela largou o martelo sobre a bancada com força demais. O impacto ecoou como um tiro pequeno, chamando a atenção de metade da fileira.
Ela caminhou até Nareth.
Quatro braços se ergueram, dois cruzando sobre o peito, dois abrindo, tensos, como se o corpo inteiro estivesse pronto para agarrar qualquer coisa.
— Fala de novo. — A voz saiu arranhada. — Só mais uma vez.
Nareth virou de frente, muito satisfeito por ver que tinha conseguido tirar a ferreira da própria forja.
Eles ficaram tão próximos que o calor das duas bancadas misturou o ar em uma onda pesada.
— Toquei num ponto sensível? — Ele inclinou a cabeça. — Vai me bater aqui, na frente de todo mundo? Wynrae sem controle… igual ao pai.
Dois competidores seguraram Kalamera pelos braços inferiores. Um outro pousou a mão no peito de Nareth, empurrando-o meio passo para trás.
— Chega. — o mais velho repetiu, agora olhando para os dois. — Não é arena, é prova de forja.
Kalamera respirava pela boca. Os quatro braços travados, músculos inexistentes forçados pela essência numa tensão seca.
— Ele começou. — Ela não tirava os olhos de Nareth.
— Parece coisa de criança. — Nareth respondeu, rindo baixo. — “Ele começou…” Gorthen te ensinou isso também?
O nome saiu como veneno.
A garganta de Kalamera fechou. A visão puxou, por um segundo, a imagem do pano levantado de manhã, o rosto imóvel, a cicatriz antiga na sobrancelha.
Ela avançou meio passo, mesmo contida.
— Você não fala o nome dele.
Nareth ajeitou o avental, como se nada fosse.
— Claro que falo. — Ele ergueu a voz só o suficiente para que mais gente escutasse. — É um ótimo exemplo de como esse tipo de atitude fraca… — Ele apontou o queixo para o rosto dela, vermelho e úmido. — …faz com que um mestre seja atacado pelas costas.
O silêncio que se seguiu não foi de respeito. Foi de choque.
“Pelas costas.”
A palavra pesou no ar.
Kalamera piscou uma vez, lenta.
Na reunião daquela manhã, Aamerta falara de golpe, de invasão, de chave roubada. Falara do corpo. Da Espada da Chama Eterna desaparecida.
Não falara de costas.
Não falara de ângulo.
Não falara de nada que denunciasse como o golpe tinha entrado.
Os generais guardavam detalhes. Sempre.
— Como você… — Ela começou, mas a frase morreu no meio.
Nareth viu. O olhar dela mudou. Não era mais raiva solta de rival de torneio. Era algo mais focado. Mais afiado.
Ele recuou só um centímetro. E riu.
Kalamera abriu a boca para perguntar. Para cobrar. Para arrancar qualquer coisa, nem que fosse a ferro.
Não deu tempo.
Um estrondo profundo cortou o ar vindo da direção da Arena Imperial. O chão sob as forjas vibrou como se alguém tivesse socado a própria pedra por baixo. As chamas dos braseiros balançaram, cuspindo faíscas.
Meio segundo depois, veio o som: gritos.
A arquibancada, acima e atrás, explodiu num coro descompassado. Não era o grito de torcida. Era o tipo de som que faz o corpo procurar instintivamente a saída mais próxima.
Alguns oficiais voltaram o rosto para a Arena.
— O que foi isso? — um dos competidores apertou o cabo do martelo.
— Permaneçam nos postos! — um oficial berrou, voz trêmula, completamente inútil diante da primeira leva de soldados correndo pelo corredor lateral.
Dois soldados passaram pela entrada da área da forja tropeçando, olhos arregalados, armaduras meio desalinhadas. Um virou para o outro no meio do caminho e, sem aviso, golpeou o companheiro com o punho da lança no pescoço.
O homem caiu, tentando puxar ar. O atacante recuou um passo, olhou ao redor como se procurasse outro alvo e avançou contra a fileira de competidores.
— Ei! — um mestre ferreiro ergueu o braço. — Está maluco?
Kalamera reagiu antes de pensar.
Ela girou o corpo e usou os dois braços inferiores como escudo. O soldado avançou com a ponta da lança em linha reta; o golpe bateu nas próteses com um estrondo metálico. A vibração correu pelos encaixes, subindo até os ombros.
Ela agarrou a haste com o braço de cima e torceu. O soldado soltou a arma com um grito, a mão deslocada.
— Eles enlouqueceram? — alguém, atrás dela, gritou.
Mais soldados surgiram pelo corredor. Alguns lutavam entre si, lâminas cruzando sem ordem. Outros subiam as escadas da arquibancada, atacando pessoas ao acaso. O som da Arena chegava em ondas: metal, grito, algo como o rugido distante de essência em escala que ela não conseguia ver.
Um competidor tentou correr para a saída oposta; foi derrubado por um soldado que nem olhou quem era.
Kalamera ouviu passos vindo por trás, rápidos, direto nela e girou já levantando um dos braços de cima na guarda.
Nareth vinha com a espada em arco mirando a lateral do pescoço. A lâmina bateu na prótese com um baque seco, raspou o metal e desviou.
Eles travaram, rosto a rosto, aço contra braço de metal.
— Sonho com esse momento desde que te vi no pátio da Academia. — Nareth falou entre os dentes. — Todo dia Gorthen te promovendo, te apontando como exemplo… e eu no fundo da fileira.
Kalamera empurrou a espada para fora da linha do corpo com o braço que bloqueava. Na mesma hora, largou a lança; o cabo bateu no chão ao lado, esquecida. Abriu espaço com um passo atrás e se plantou: pés afastados, peso baixo, os quatro braços subindo em guarda de luta, punhos fechados na altura do queixo e do peito, cotovelos colados.
— E mesmo assim errou. — ela respondeu, fixa nele. — Imagina se não tivesse treinado tanto.

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