Aaaah… Se o mundo inteiro me pudesse ouvir…

    Dizia Tim Maia, versando para todos que quisessem ou não ouvi-lo. Junto dele vinham gritos. Uns de dor, outros de alegria. Alguns eram os de alguém amolando os chifres. Sempre tinha alguém sofrendo de amor numa segunda-feira.

    E molhando os cornos no bar da esquina, e a cidade inteira, a chuva costumeira de janeiro trouxe um ar frio à noite.

    Ela fez o senhor Ronaldo levantar. Precisava esvaziar o tanque. Sua namorada, enrolada nos cobertores, dormia com um sorriso discreto. Parecia satisfeita, e ele exausto.

    Já ia passando pela sala quando ouviu, ou pensou ter ouvido, uma batida na porta. Eram duas da manhã. Era de se estranhar, mas ignorou, porque assim era melhor.

    Bam, bam! Foram duas batidas, dois toques apressados.

    “É… tem alguém aí, mesmo”, pensou ele. 

    Bam, bam, bam!

    “Três… ah, tá. Tá certo.”

    — Se bater outras quatro, eu atendo — murmurou para si, irônico.

    E bam! Bam, bam…

    Ronaldo sorriu, como se atiçasse alguém. E… bam! Seus lábios congelaram.

    Ele claramente não devia atender. Não esperava ser ouvido, mas também não havia falado sério. Era roubada, ele sabia disso. Era uma fria! Ele não seria tão burro!

    Sua experiência com filmes de terror era recente, mas sólida. Sólida como rocha, e ela lhe dizia para não abrir a porta. Decisões burras como essa eram uma sentença de morte.

    Ninguém surgia do nada às duas da manhã. Era só ignorar. Era só ignorar, só isso, mas… 

    “Putz, eu preciso ver…”

    E apertou os punhos. Era uma escolha burra essa que faria, mas seu instinto de protagonista era mais forte. Era da natureza humana arriscar a vida assim, de forma estúpida.

    Ele caminhou, sentindo as tábuas do assoalho rangerem, e sentiu o medo batendo no peito. Uma gotinha fria de suor escorreu da testa, pousando nos lábios.

    “Não deve ser nada! É, é, não deve ser nada… é só abrir, e ver!”

    E ouviu o som dos próprios passos.

    “Vamos lá,,,”

    Pousou a mão na maçaneta, e… Arf, arf… arf! Jesus! Era alguém respirando. Ele ouviu. Havia alguém do outro lado. 

    “Foda-se!”

    Xingou, girou a chave e escancarou a porta com um único movimento, mas… 

    Chuuuuu!

    — Im…im… impossível! — admirou-se, sua voz morrendo na garganta.

    Era apenas a chuva. Não tinha ninguém respirando. Não havia ninguém ali fora, esperando ser atendido por Ronaldo.

    “Deve… deve ser o sono. É isso, eu tô com muito sono. Natália me sugou as forças, foi isso…”

    Literalmente isso, mas tudo bem.

    E já ia fechando a porta, aliviado por enfim encerrar o horror. Concluiu ter sido vítima de um delírio muito bom, quase convincente. 

    Mas, como um pressentimento ruim, Ronaldo sentiu que não deveria olhar para baixo. Alguma coisa do instinto lhe dizia isso.

    E, negando seus próprios avisos, seus alertas internos… 

    — …Nem fudendo!

    Uma cesta.

    Havia uma cesta diante dele. Uma cesta que se debatia, como se tivesse espasmos periódicos. Ele sabia o que tinha ali. Era óbvio. Mesmo um idiota saberia dizer o que era.

    E era exatamente por isso que não queria ver. Não queria descobrir os panos, os tecidos que escondiam aquilo que chacoalhava a cesta, de vez em quando.

    Gulp!

    Engoliu em seco. Sua respiração irregular denunciava uma coisa: ele sabia. Sim, ele sabia. E assim como abriu a porta, mesmo tudo dizendo para não abrir… 

    E assim como olhou para baixo, ainda que seus instintos gritassem para não olhar, ele puxou os paninhos, revelando um rostinho redondo. 

    Era um bebê.

    Ele o ergueu e o levou ao colo. Os lençóis da criança eram azuis. Azuis da cor do mar.

    — Vo… você também?! — gritou uma voz, vinda do outro lado da rua.

    Quando Ronaldo ergueu a cabeça, ainda com os olhos arregalados, viu a vizinha da frente. Era Micaela Dantas, a garota estranha das camisas de anime. 

    Ela também tinha um bebê em mãos.

    — Sim… — E sorriu, os lábios loucamente trêmulos.

    — — — 

    Ao redor da mesa da cozinha, o trio de Pais Por Acaso trocava olhares nervosos. Haviam duas cartas lacradas diante deles. Não ousavam abri-las de modo algum, pois tinham medo do que leriam.

    — Tá, deixa eu ver se eu entendi… — começou Natália, vestida com uma camisa do Fluminense. — Esses bebês… eles estavam naquelas cestas — E apontou para elas, que repousavam sobre o para-peito ao lado da geladeira. 

    Esperou respostas, mas tudo que recebeu em troca foi silêncio.

    — E essas cartas… em tese, elas devem dar alguma explicação — continuou, repassando o óbvio. Sentiu que era preciso, pois a situação pedia por isso. — Pelo selo de uma delas… 

    Puxando uma, arrastou-a devagar, como se quisesse sentir a textura. Não restava dúvidas, ela sabia de quem era.

    — Meu irmão — murmurou. — Essa aqui é dele.

    Micaela não conseguiu segurar o espanto.

    — Nilo…? — E piscou várias vezes. — Nilo Yago Dias?

    — Ele não tava morto? — perguntou Ronaldo, ainda com o bebê consigo.

    Com um aceno de cabeça, Natália engoliu saliva e fitou o selo da carta mais uma vez. Era dele. Só podia ser dele.

    — Tava. Até onde eu sei… tava — Nem ela acreditava no que dizia. 

    Só havia um jeito de entender aquilo. Os bebês, o paradeiro do irmão, apenas as cartas podiam tirar essas dúvidas.

    Ela abriu com cuidado, temendo fazer besteira. Puxou devagar o papel que havia ali, sentindo o coração errar uma batida. Aquela letra… não havia engano algum.

    Era uma carta dele, uma mensagem do seu irmão morto.

    — Vai… vai em frente — disse Ronaldo, tenso.

    E a mulher começou.

    Dokoka, 7 de janeiro de 2000.

    Querida maninha, espero que o namoro da vez dê certo. Ronaldo da Silva Castro parece ser um bom homem. Um verdadeiro acerto, vindo de você! Soube que vocẽ andou cursando Letras. Terceiro período? Que ótimo, isso é bom de ouvir!

    Olha, eu sei que isso é muito repentino. Sei que você não esperava conhecer o seu sobrinho assim, de um jeito tão estranho. Um jeito meio Harry Potter, por assim dizer. Achei que você fosse gostar, já que é fã dos livros!

    Você deve ter pensando que eu estava morto, visto que sumi da vida de todo mundo. E sim, de fato, eu quase morri. Tipo, várias. Várias e várias vezes, ao longo desses últimos cinco anos. Mas sigo vivo. Vivo e casado, aliás! Minha esposa é linda e legal, você faria amizade fácil, se a conhecesse.

    Estou em uma situação difícil. Uma situação em que, mesmo com muito dinheiro, não posso criar meu filhinho. Também não posso lhe dizer o que houve, pois essa carta pode ser interceptada, e eu não quero isso. Eu não saberia o que fazer, se isso acontecesse.

    Preciso que cuide dele. Não sei por quanto tempo, mas prometo que virei buscá-lo e te recompensar por todo o trabalho. Até lá, divirta-se! Nathan promete ser um garoto danado como eu fui.

    Do irmão que ama você, Nilo.

    E havia algo mais… 

    Ps: Ele também é Yago Dias. Sim, isso mesmo, hahaha! Nathan Yago Dias, meu legítimo filho!

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