Índice de Capítulo

    Jonas olhava para o papel preso à parede, observando os rabiscos que não conseguia entender. Ainda assim, ele sabia o que estava escrito lá, ou ao menos tinha plena noção de seu conteúdo, dito por ele e Erik para a atendente da guilda, o qual escreveu tudo na folha.

    Abaixo estava a única coisa que ele conseguia entender. A recompensa pela missão que eles propuseram: seis moedas de prata por pessoa, o valor mínimo para uma missão para deconos.

    Foi dito pela atendente que a missão ficaria pregada no quadro de anúncio, junto a uma centena de outras iguais, até que algum dos aventureiros de classe deconos, ou acima, a aceitasse.

    Jonas passara o dia inteiro observando o quadro, vendo dezenas de pessoas pararem em frente a ele e escolherem seu trabalho do dia. Dezenas de papéis foram retirados, de forma a deixar grandes vazios no quadro do tamanho de uma lousa de escola. E a missão continuava lá:

    “Buscar ervas matides nas colinas uivantes”, era o que estava escrito nela. E os motivos de porquê ninguém a escolhera eram simples.

    O preço da recompensa não valia o risco, ou ao menos foi isso que Keren afirmou enquanto Jonas e Erik a decidiam. As colinas eram um lugar traiçoeiro, fora dos limites seguros das zonas de caça conhecidas, e onde poucos que se aventuravam retornavam. E os que conseguiam, traziam consigo rumores que se espalhavam rapidamente entre os mais supersticiosos.

    Entre esses rumores havia apenas um que importava a Jonas. Era lá que crescia a erva matite, a que Keren afirmou precisar.

    Após sair do quarto em que Jonas e os outros descansavam, a fármo procurou pelo homem que usara o machado de lâmina verde na luta contra a javalina, encontrando-o em um bordel nos limites de Beuha, dois dias depois e descobriu as propriedades do veneno que a lâmina exalava.

    A arma fora forjada a partir de um cristal retirado de uma aranha espinheira. Um inseto gigante que habitava cavernas profundas, segundo Keren. Seu veneno tinha a capacidade de necrosar a carne humana, ao ponto de ela começar a se decompor em volta do local da picada. Tal como parecia ocorrer com a perna de Leandro.

    Durante metade de um dia, Jonas, junto a Erik, acompanhou Keren indo a lojas de fármos locais em busca de receitas ou informações de uma cura, e chegaram a esse rumor em mais de um estabelecimento, de que a erva matite era capaz de limpar do sangue qualquer toxina. E o lugar mais próximo era a entrada de uma caverna nas colinas uivantes.

    Keren, mesmo que soubesse ir até lá, não poderia fazê-lo sozinha e se recusava a ser acompanhada por alguém com o nível menor do que o de um deconos, negando ser escoltada apenas por Erik e Jonas.

    Então os dois propuseram a missão, que ninguém aceitara.

    Nenhum grupo de deconos se arriscaria a ir até lá, e os grupos de centos sequer dariam atenção ao baixo valor da recompensa.

    Havia uma disparidade exorbitante no valor pago a missões de legianos, deconos e centos. Os primeiros ganhavam alguns cobres por missões, os segundos não trabalhavam por menos do que algumas pratas, e os últimos apenas se interessavam por bolsas cheias delas.

    Havia uma bolsa cheia de prata no quarto em que dormiam, mas Erik se recusava a usá-la por completo, apesar da insistência de Graça, e mesmo com o sua seu peito se apertando na intenção de o fazer, Jonas sabia que se a usassem, além de ter certezas de que curariam salvariam Leandro, todo o trabalho feito até então de nada serviria. Ou ao menos essas eram as palavras ditas a ele por Erik.

    Um a um. Homens, mulheres. Velhos e jovens. Todos passaram pelo quadro e a missão permaneceu, desde o amanhecer até o tardar do dia e a penumbra da noite, acalentada pela luz das tochas, quando o movimento em frente ao quadro cessou.

    A missão permaneceu lá. Um papel branco, imóvel, cujo conteúdo escrito parecia afastar o olhar.

    Suspirou, engolindo em seco. As mãos apertavam os braços com força. Então ouviu passos e virou-se, na vã esperança de que alguém passasse pelo quadro e olhasse para o maldito papel.

    Então viu um grupo de pessoas se aproximando e virou de lado, cobrindo o rosto com um braço, escondendo-se. Ouviu uma risada rouca alcançar seus ouvidos.

    — Parece que você não conseguiu de novo, minha querida Morda — comentou uma irritante voz já gravada na memória de Jonas.

    — Sei muito bem disso, Lect, pode parar de atirar-me a cara — reclamou uma voz feminina.

    — Te falta uma experiência de liderança para ser promovida a cento — comentou a voz madura do líder.

    Os passos prosseguiram, distanciando-se, e Jonas virou-se novamente para o quadro, vendo parado em frente a ele um homem de ombros largos e cabelos escuros, cobrindo o espaço em frente à missão de Jonas. Estava lendo.

    Jonas franziu os olhos. Ao que se lembrava, aquele homem era um cento. A classificação mais alta naquela cidade. Líder do grupo que caçou o predador de toda uma área e causou um desequilíbrio na região, transformando-a em um abatedouro para aventureiros.

    Não conseguia entender o porquê esse tipo de pessoa estaria prestando atenção em uma missão que pagaria tão pouco como aquela.

    No entanto, antes que Jonas se debruçasse mais sobre a questão, o cento estalou o pescoço e saiu andando. O papel continuou lá.

    Nenhuma surpresa.

    Jonas ergueu-se da mesa em que sentava e caminhou pelo local. Sentia um gosto atroz na boca. Percebeu-se exausto. O bar, as conversas, as vozes. Ele escutava tudo, mas não discernia nada. Desejava não ouvir, mas nada do que desejava parecia acontecer.

    Lembrou-se de uma tarde. De um pedido seu. De uma recusa. Suprimiu a memória em sua mente, e continuou andando, atravessando o salão. 

    Subiu pelas escadas e adentrou o corredor, incomodado com o som de cada passo seu.

    Ao passar pela porta do quarto, deparou-se com a visão já esperada. Leandro enfermo na cama, Keren de um lado, trocando os curativos, Graça no outro, orando preces para um Deus que ainda acreditava.

    Erik estava sentado em uma cadeira no canto oposto do quarto, segurando em suas mãos uma das gemas mágicas coloridas que comprara. O rosto concentrado com um brilho estranho no olhar. Ele encarou Jonas por um breve momento, e este esqueceu-se qual era a cor dos olhos do amigo.

    — E aí? — perguntou Erik.

    Keren e Graça de imediato olharam Erik e então para Jonas, parado junto à porta.

    A única resposta que pode dar foi negar com a cabeça, enquanto respirava profundamente. Caminhou até estar a um passo da cama de Leandro, parando ao lado de Keren.

    — Não façam essas caras, talvez amanhã alguém pegue, tem grupos fora da cidade que não ainda não viram a missão.

    — Se os deconos que viram a recompensa e a deixaram lá, não aceitaram, duvido que os que ainda não a viram aceitarão. Ninguém aceita um trabalho perigoso sem uma recompensa adequada — retorquiu Keren, sem tirar os olhos das novas bandagens sendo feitas no curativo de Leandro.

    — Então temos de oferecer mais dinheiro — propôs Graça.

    Erik revirou os olhos.

    — Já falei que não podemos. Se o fize…

    — A gente sabe, Erik. Não vamos poder pagar o aluguel daqui, tomar banho ou mesmo comprar comida, já sabemos disso — interrompeu Jonas com uma mão na têmpora. 

    — E, além do mais — Erik elevou a voz, como que para enfatizar o que iria dizer —, não sabemos se essa erva pode salvar mesmo o Leandro — Apontou um dedo para o chão enquanto falava.

    Keren o encarou com um olhar petrificado.

    — Sei que, se nada for feito, as únicas moedas que precisarão gastar será a dos fármos que limparão o corpo de seu amigo, a não ser que queiram enterrá-lo fora da cidade.

    — Não diga isso, por favor — exclamou Graça com uma voz desesperada.

    — Sinto, senhora, mas é a verdade diante os meus olhos — Keren passou a cabeça em volta dos ombros e se levantou. — Há uma panaceia que pode garantir uma dormência no corpo durante o momento da morte. Se desejarem que ele não sinta dor, voltarei aqui amanhã pela última vez e ministrarei a ele. Se não, despeço-me aqui.

    O rosto de Graça se mostrou horrorizado, Jonas engoliu em seco, Erik levantou-se da cadeira, mas não falou nada, permanecendo com a boca aberta em um raro momento de silêncio.

    — Como assim, mas quem vai lá pegar essas ervas? A missão ainda pode ser aceita, né? — Jonas percebeu-se falando mais alto do que pretendia. De forma inconsciente, seus braços se estenderam em direção a fármo, como se para tocá-la.

    Keren afastou-se, usando os seus para manter uma distância entre ambos. Jonas percebeu o que fazia e o abaixou.

    — Como eu disse antes, se a missão não foi aceita hoje, muito provavelmente não será aceita amanhã — Ela parou de falar quando Leandro soltou um gemido de dor, permanecendo inconsciente. — Seu amigo apenas sofrerá por mais alguns dias, que podem ser atenuados.

    Keren olhou para Jonas, então pata Erik.

    — Se a resposta for não, me despeço aqui — Ela estendeu uma mão em direção a Erik, que demorou um tempo até mover-se para retirar as moedas de sua bolsa e pagar a mulher. Os olhos do garoto pareciam distantes.

    Jonas ouviu um fungar e olhou para Graça, vendo-a levar as mãos aos olhos para limpar as lágrimas que escorriam pelo rosto. Visão essa que tornava mais difícil para ele conter as suas.

    Não queria chorar. Não haveria nenhuma chuva para lavar seu rosto, como quando chorou por Theo.

    Keren tomou as moedas em suas mãos, contou-as e se moveu em direção a porta.

    — Espere — bradou Jonas, antes que ela girasse a maçaneta. Keren parou e se virou para encará-lo. — Não dá mesmo para fazer nada.

    Keren olhou para Graça.

    — Rezem aos seus deuses — abriu a porta, mas não saiu. Permaneceu parada, olhando para o corredor.

    — Olá — saudou uma voz firme e levemente animada.

    Jonas inclinou a cabeça, espreitando quem era, e espantou-se, sem saber exatamente porquê.

    Parado do outro lado da porta estava um homem jovem, porém maduro. De boa aparência, porém com um aspecto selvagem nos olhos estreitos. Um rosto que Jonas se acostumara a sentir desprazer ao ver.

    — Senhor Leovard? — disse Keren com um tom de confusão na voz.

    — Estou procurando os mandatários dessa missão. Seria você? — perguntou ele, erguendo uma folha de papel até a altura do peito. Era a missão que haviam posto na parede, e que permaneceu lá pelo dia inteiro.

    — Não, senhor, eu não sou — respondeu Keren prontamente.

    — Não? Então sabe onde estão os membros desse grupo?

    Jonas afastou-se um passo, sem conseguir responder.

    — Estamos aqui — disse Erik, aproximando-se rapidamente da porta e esbarrando no ombro de Jonas ao passar por ele.

    — Muito bem, então vamos tratar de negócios — Leovard entrou no quarto sem pedir ou esperar por qualquer permissão. Olhou para a cama em que Leandro estava, e então para o rosto de todos os presentes no cômodo. Jonas sentiu um tremor desconcertante em seu pescoço ao encará-lo. Por quê ele estava ali?

    Leovard voltou-se novamente para Erik e tornou a falar, olhando para o papel:

    — Pelo que bem entendi, vocês querem uma escolta, certo?

    — Sim, queremos ir até as colinas uivantes colher ervas medicinais para nosso amigo — explicou Erik.

    Leovard olhou para a cama com uma sobrancelha levantada.

    — Se me perdoam as palavras, mas, uma erva resolve isso?

    — A que desejo, sim, sem dúvidas. O ferimento pode parecer horrível, mas o problema é o veneno o impedindo de fechar-se. Se conseguirmos erva matite, ela limpará o sangue, e permitirá que o corpo se recupere — explicou Keren, que permaneceu no quarto após a entrada do cento.

    — Se uma fármo o diz, devo crer nisso — disse Leovard dando de ombros.

    — Então, você aceitará a missão — perguntou Jonas, com uma voz fria, ríspida e ao mesmo tempo sufocada.

    Leovard lhe deu um rápido relance antes de responder.

    — Não, ao menos, eu não.

    O rosto de todos se contorceu em diferentes expressões de confusão.

    — Então porquê está aqui? — perguntou Graça. As mãos sobre a cama de Leandro.

    — Por que tenho uma proposta para alterar levemente essa missão — Leovard soltou um pequeno sorriso. E Jonas percebeu como detestava seus sorrisos.

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