A explosão interna dos dois anciãos foi tão intensa que os troncos das árvores onde se apoiavam se partiram como cascas secas. As duas gigantes tombaram com estrondo, e espalharam uma cortina densa de poeira que engoliu a paisagem. Por alguns segundos, tudo virou um borrão marrom. Fechei os olhos e coloquei o cotovelo na frente do rosto para me proteger. Quando a nuvem enfim se desfez, Renyan, o único não afetado pelo Cavaleiro de Paus, havia desaparecido.

    Ele podia ter sumido do meu campo de visão, todavia, sua presença ainda se mantinha no ar, escondida entre a vegetação e a escuridão noturna. Eu sentia não só ele, mas também uma perigosa intenção assassina, que tinha se multiplicado dezenas de vezes. Para qualquer pessoa comum, aquilo seria sufocante, um aperto no peito, uma ânsia instintiva de fugir, talvez até o colapso completo. Medo puro. Desespero bruto.

    E o que eu sentia? Nada além de percepção. E eu? Nada além de consciência. Eu reconhecia a sensação, compreendia sua forma, porém ela não podia me alcançar. Era como observar um vazamento de radiação por trás de uma blindagem de chumbo: eu via o perigo, sentia sua força, mas ele não conseguia me tocar.

    Então, toda a intenção assassina, antes espalhada pela floresta, se concentrou em um único ponto, diretamente no meu pescoço.

    Girei o corpo para trás e cruzei os braços em “X” para bloquear. A lâmina de Renyan brilhava de um modo semelhante àquela faca dos encrenqueiros do beco. E, no instante em que senti o impacto, percebi o erro colossal que havia cometido.

    A espada atravessou meu casaco como se fosse ar, não papel, ar puro. Ela nem chegou a rasgar o tecido, meu casaco se manteve intacto, de facto, o metal ignorou completamente a existência dele. A lâmina abriu meu braço em um corte profundo e só parou quando atingiu o osso.

    Renyan puxou a espada de volta com brutalidade o suficiente para quase arrancar minhas duas mãos. Cambaleei para trás, o corpo tremia, e quase sucumbi à dor aguda que percorreu meus nervos. O sangue escorreu pelo meu braço, dentro do casaco.

    Ele avançou de novo. Usei a força que restava para rolar para o lado, e a espada dele cravou-se no chão onde eu estivera um segundo antes. Levantei num movimento instintivo, apenas para sentir minhas costelas quebradas se mexerem com perigo, uma delas podia perfurar meu pulmão a qualquer movimento descuidado.

    Renyan arrancou a lâmina do solo e fez um corte diagonal, na altura do meu rosto. Eu já estava lento, pesado, cambaleante. Quase falhei em desviar. A ponta da lâmina passou por toda a minha pele, e abriu um corte que ia da testa até o queixo, um golpe que quase arrancou meu olho e meu nariz.

    Saltei para trás, para ganhar uma distância entre nós. O sangue escorria quente pelo meu rosto, e deixava minha visão um tanto turva.

    Os ferimentos eram graves. Dois braços apresentavam cortes profundos que chegavam ao osso; três costelas quebradas ameaçavam perfurar meu pulmão; o rosto ardia com um corte que quase me deformou; e uma das mãos estava seriamente queimada. Se Renyan me pressionasse mais um pouco, eu seria forçado a ativar a habilidade de emergência da carta do Louco, meu último recurso para garantir a minha sobrevivência.

    E ativar aquela habilidade significava ficar fora de ação por pelo menos um mês. Missão perdida. Todo o cronograma da minha missão teria que ser atrasado. Eu não podia permitir isso. Tinha que derrotá-lo agora mesmo.

    — Então você não consegue se defender de mim? — zombou Renyan, com a voz tomada por uma fúria crescente. — Disseram-me que você tinha uma cobra capaz de curar seus ferimentos. Onde ela está agora?

    — Não preciso dela. — Mesmo naquela situação miserável e aparentemente irreversível, eu ainda conseguia sorrir para ele.

    — Essa arrogância será sua queda! Eu, Renyan, filho de Kai, herdeiro do clã Hua Yuling, executarei você aqui mesmo e trarei justiça ao mundo pelos seus crimes!

    — Sei… — murmurei, ao trocar calmamente a carta do Cavaleiro de Paus por uma nova.

    — Você mal consegue desviar dos meus ataques, qual o seu nível de cultivo? Porque ninguém acima do segundo reino seria ferido pela minha espada, que ainda está no primeiro reino.

    — Não sou um cultivador.

    — Isso explica por que é tão patético… — Ele apontou a lâmina para mim, a voz carregada de desprezo. — Um demônio que vive de truques. E os seus truques acabaram.

    — Veremos… — Eu sorri, ao levantar a carta para o céu.

    A nova carta se destacava de todas as outras. Mostrava uma belíssima mulher de pele escura, longos cabelos lisos negros, e olhos de mel, sentada em um trono de ouro, adornado com jade e safira. Vestia um longo traje que chegava aos tornozelos, feito do melhor tecido Cumbi que existia. Um cinto largo de couro moldava sua cintura, e sua coroa era enfeitada com as penas mais magníficas das aves da minha terra natal, todas vibrantes em cor.

    — Rainha de paus… — gritei, com a última força que me restava.

    No mesmo instante, algo se mexeu dentro da minha boca. Não era um, mas vários corpos úmidos e moles que deslizavam pela minha língua, e pressionavam minhas bochechas por dentro. Levei a mão à boca e, sufocado, cuspi na minha mão uma dezena de vermes brancos que caíram no chão se debatendo. Alguns tinham o tamanho de um dedo; outros, minúsculos, lembravam larvas recém-formadas.

    Renyan arregalou os olhos e, em seguida, riu alto.

    — Suas artes demoníacas estão cobrando o preço? — zombou, claramente convencido de que aquilo era algum tipo de punição.

    Não o respondi.

    Ergui a mão ensanguentada, a mesma que segurava os vermes, e encostei os pequenos corpos no ferimento que rasgava meu rosto. 

    Renyan fez uma expressão de nojo imediato.

    Os vermes começaram a devorar o sangue que escorria do meu queixo, e então entraram por dentro da minha pele. Senti-os deslizando por baixo do tecido cicatrizado. E, diante dos olhos incrédulos de Renyan, o corte do meu rosto desapareceu. Em seguida, o ferimento nos braços se fechou. A dor nas costelas sumiu. A queimadura da mão evaporou. Num piscar de olhos, meu corpo estava como novo.

    — Legal, não acha? — Estiquei os meus braços, ao sentir meu corpo como novo. 

    Renyan deu um passo para trás, confuso.

    — Então, vamos lutar? — Fiz um movimento com a mão, e o convidei para continuar a luta.

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