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    O sol do meio-dia continuava a castigar o vale árido. Argos parou diante do grande monólito central, a mesma rocha de onde ele havia se “desprendido” para enfrentar Teseu. Era impressionante que conseguisse permanecer de pé depois de ter os dois tendões dos calcanhares feridos.

    Ele apoiou as mãos largas na superfície áspera da pedra.

    — Ele cobriu a passagem — Eudora explicou com a voz carregada de melancolia — Quando saiu, ele percebeu que a fenda continuava aberta. Ele conseguia ver o que estava do outro lado…

    Argos grunhiu, flexionando os joelhos. Com um som de trituração que ecoou pelas paredes do cânion, ele empurrou. A rocha de toneladas arrastou-se pelo chão, revelando o que escondia.

    O solo ao redor da abertura estava negro e vitrificado, como se tivesse sido atingido por um raio frio. De dentro da fenda estreita saía uma brisa gélida e estagnada. Uma névoa verde-escura, quase imperceptível sob a luz forte do sol, pairava sobre a abertura, pulsando com uma energia dormente e maligna.

    Teseu sentiu o estômago revirar. Era a mesma sensação que tivera nos esgotos de Therma, a mesma pressão no ar que sentira na presença das criaturas com que lutou. A energia corrupta que o fez se separar de seu amigo.

    — Ele poderia ter ido embora — continuou Eudora, olhando para a fenda com temor. — Poderíamos ter fugido para longe, para onde Kreon nunca nos encontraria. Mas Argos não quis. Ele disse que, se ele conseguiu sair, outras coisas também conseguiriam.

    Ela olhou para Teseu.

    — Ele ficou aqui, neste vale desolado, vigiando uma porta para o inferno, para garantir que nada mais subisse para machucar as pessoas da vila… — Eudora rangeu os dentes. — As mesmas pessoas que o chamam de monstro. 

    Um suspiro culpado escapou do peito de Teseu. Mais uma vez ele percebia o tamanho do seu erro. Se havia aqui algum herói, certamente não era ele.

    Olhando para a profanidade, seu coração pulou uma batida. Ele piscou, uma sensação diferente o tomava. Um frescor, uma vontade. Uma pulsação dionisíaca ecoou em seus ossos, um comando silencioso que suas pernas obedeceram antes que sua mente concordasse. Feche, o instinto gritou. Conserte.

    — Afastem-se — Teseu ordenou numa voz que soou estranha aos próprios ouvidos, rouca e distante.

    Surpresos, os outros abriram espaço.

    Ele caminhou até a borda da cicatriz negra. A energia do Tártaro lambeu seu rosto, fria como a morte.

    Teseu caiu de joelhos. Sem hesitar, ergueu os braços ao alto e, com um movimento brusco, cravou as duas mãos na terra morta e vitrificada.

    Com um choque violento, Teseu gritou de dor. A energia da fenda subiu por seus braços como se agulhas penetrassem seus poros. Onde a névoa tocou sua pele, veias negras, grossas e pulsantes, saltaram instantaneamente, rastejando de seus pulsos em direção ao pescoço, corrompendo a carne.

    Eudora engasgou, puxando Argos para trás. O gigante, mesmo com sua força, recuou um passo, cada olho seu arregalado diante daquele absurdo.

    Teseu sentiu o frio tentar parar seu coração. A escuridão queria usá-lo, não ser usada por ele. Ele cerrou os dentes com tanta força que sentiu o gosto de sangue na boca.

    — Não… — ele rosnou entre os gritos.

    Buscou no fundo de seu espírito, ele encontrou. Não a força de seus músculos, mas a semente que a Dríade plantara em um beijo. Ele forçou a vida contra a morte.

    O tremor em seus braços parou. As veias negras, que já alcançavam seus ombros, pararam de avançar. Elas começaram a clarear, queimando o negrume de dentro para fora. Em segundos, o preto deu lugar a um verde vibrante e luminoso.

    A luz esmeralda explodiu de suas mãos, empurrando a névoa de volta para o abismo.

    A terra obedeceu. A rocha vitrificada estalou e se moveu. Raízes grossas romperam a pedra, costurando a fenda com uma violência vital. A abertura se fechou, esmagada pelo crescimento acelerado da terra.

    Teseu soltou o ar de uma vez só e tombou para trás. Suas mãos fumegavam levemente em um tom esverdeado e etéreo.

    Diante dele, onde antes havia o buraco para o abismo, agora havia apenas terra revirada e silenciosa. E, bem no centro, rompendo a aridez do vale, uma pequena flor branca havia brotado.

    Com uma brisa repentina, suas pétalas delicadas balançaram suavemente.

    — Isto é… vento? — Plutarco questionou com o cenho franzido.

    Argos olhou para a flor, depois para o garoto caído, ofegante e pálido. Seus muitos olhos piscaram em uma onda de respeito e gratidão silenciosa.

    — A terra… respira novamente — retumbou o gigante. — O dever… acabou.


    O tempo no vale parecia ter voltado ao seu fluxo natural. O sol, antes opressivo e escaldante, agora ao final da tarde trazia um calor ameno. 

    Eles não demoraram ali. Com a fissura selada, o propósito de Argos estava cumprido, mas a sombra de Kreon ainda pairava sobre eles. Aquele homem possessivo e prepotente certamente não daria sossego a eles, era o que Eudora dizia.

    Retornaram à caverna para recolher os poucos pertences do casal. Plutarco desenrolou um de seus mapas sobre uma pedra chata.

    — Mylae fica ao leste, e a estrada principal para o sul é vigiada — explicou o escriba, traçando uma linha imaginária com o dedo. — Se Kreon ainda tem influência, ele enviará homens por lá.

    — Para o oeste, então — sugeriu Teseu. 

    Plutarco assentiu com um olhar curioso.

    — Tem razão. As montanhas são mais íngremes, mas há trilhas de cabras que levam aos vales altos da Tessália. Ninguém os seguirá por lá.

    Argos observou o mapa. Seus olhos analisaram o terreno com a precisão de quem vigiou aquelas terras por um ano. Assentiu, concordando com a rota. Eudora rapidamente empacotou frutas secas, peles e odres de água. Eles não levariam muito, a velocidade era essencial.

    Não conseguiriam ser discretos com um gigante de três metros, então teriam que ser rápidos.

    A despedida aconteceu na entrada do vale, onde os marcos de pedra delimitavam o fim do território amaldiçoado.

    Eudora abraçou Teseu, surpreendendo-o.

    — Obrigada — ela sussurrou. — Por nos dar uma chance. Por ver além da pele.

    Teseu retribuiu o abraço desajeitadamente.

    Argos se aproximou. Ele não abraçou o garoto, mas estendeu sua mão imensa. Teseu estendeu a sua e a viu desaparecer entre os dedos grossos do gigante, selando o pacto de respeito mútuo. Os muitos olhos de Argos piscaram suavemente, uma última onda de gratidão silenciosa, antes que ele se virasse para Eudora.

    Ela sorriu e estendeu os braços em sua direção, como uma criança, e ele, em resposta, a levantou, pondo-a delicadamente sobre o próprio ombro.

    Juntos, o gigante e a donzela começaram a subida pela trilha oeste até se tornarem duas silhuetas contra o sol poente, desaparecendo lentamente entre as rochas. Logo, eram apenas pontos distantes na vastidão da montanha.

    Teseu e Plutarco ficaram observando até que eles sumissem completamente. O vale estava vazio novamente, mas agora era um vazio limpo, sem olhos ocultos ou sussurros do abismo.

    Plutarco guardou o mapa e olhou para Teseu.

    — E agora? Seguimos viagem?

    Teseu virou-se para o sul, na direção de Mylae. A expressão em seu rosto endureceu, a mandíbula trincada. Ele pensou na mentira de Kreon, na manipulação, na forma como o nobre usara a honra de um herói como arma para seus caprichos cruéis.

    — Não — disse Teseu, a mão descansando no cabo da xiphos. — Nós voltamos.

    — Voltamos? — Plutarco ergueu uma sobrancelha. — Para quê? O casal está salvo.

    — Tenho assuntos pendentes em Mylae…

    Eles desceram a montanha, deixando o Vale dos Observadores para trás, rumo ao acerto de contas que aguardava em Mylae.

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