A voz dela.

    Não era alta. Não era um grito de comando. Mas cortou a agitação do pátio como uma lâmina quente. Era clara e confortável, como se acariciasse os tímpanos de quem ouvia.

    E mesmo falando com milhares, o truque era esse: parecia que ela estava olhando direto para você.

    — “Alguns de vocês vieram de camadas mais altas… outros, das profundezas.”

    Ela fez uma breve pausa, os olhos azuis varrendo o mar de alunos à sua frente, as três estrelas negras em seu olho esquerdo parecendo absorver a luz.

    — “Muitos carregam o orgulho de seus clãs, suas linhagens, suas histórias. E alguns, talvez, estejam aqui fugindo… da própria sombra.”

    Meu maxilar travou. Aquela palavra — “sombra” — bateu perto demais de casa.

    Ela falava muito bonito, isso não se podia negar.

    — “Mas aqui…” — o tom dela mudou. A gentileza foi coberta por uma camada de aço. — “…não importa de onde vocês vieram. Aqui, o que define vocês não é a família. Nem o poder. Nem o nome. E definitivamente…” — ela enfatizou a palavra — “…não o número gravado no corpo de vocês.”

    As palavras bateram como uma pancada seca. Eram doces, mas doíam. Eram verdadeiras. Diretas. Difíceis de ignorar.

    Cruzei os braços, tentando manter minha pose de desinteressado. Mas, sinceramente? Eu estava ouvindo. Muito mais do que gostaria de admitir.

    — “Vocês vão aprender sobre seus códigos genéticos, combate, táticas, controle. Vão estudar política, estratégia, história… mas também vão aprender a cair. A perder. A falhar.”

    Ela deu uma risadinha curta, leve, quase brincalhona. Os olhos se fecharam por um segundo, e a expressão dela suavizou ainda mais.

    — “…E se tiverem sorte… vão aprender o que significa levantar de verdade.”

    Esse sorriso dela é perigoso…
    Ele não te mata. Te faz baixar a guarda. Te faz confiar. E então — boom — já era.

    — “Alguns de vocês vão se destacar. Outros, talvez, nunca cheguem ao topo.”

    Ela deu um passo à frente, mais perto da borda do palco, mais próxima da multidão. Como se estivesse prestes a contar um segredo para todos nós ao mesmo tempo.

    — “E sabem o que eu penso sobre isso?” — ela arqueou levemente a sobrancelha, e o silêncio no pátio se tornou absoluto. Tão quieto que eu podia ouvir minha própria respiração.

    — “Tudo bem.”

    Só isso. “Tudo bem.”

    Mas dito do jeito que ela falou… foi como se fosse a resposta para uma vida inteira de perguntas.

    O sorriso dela cresceu um pouco mais, mas ainda era o mesmo — gentil, calmo, confiante até os ossos.

    — “Fjorheim não é uma corrida. É uma forja. E vocês… são o metal.”

    O efeito foi imediato. Um murmúrio varreu os alunos. Alguns sorriram, parecendo inspirados. Outros, os com uniformes mais caros e o nariz mais empinado, claramente não curtiram a ideia de que ainda precisavam “ser moldados”.

    Ela fala como se fosse fácil… pensei, meus olhos fixos nas estrelas negras dela. Aposto que nunca caiu de verdade.

    Mas, por alguma razão… algo nas palavras dela grudava na pele.

    Ela ergueu os olhos, mirando o teto metálico da academia como se fosse o próprio céu aberto.

    — “Se quiserem ser líderes… heróis… professores, soldados, políticos, ou só alguém que quer viver em paz…”

    A voz dela desceu um pouco. Ficou mais íntima. Quase triste. Quase… sincera demais.

    — “…tudo começa aqui. Tudo começa agora.”

    Ela se virou de lado no palco, estendendo o braço com firmeza para o lado, como se rasgasse o ar e abrisse um portal invisível para o futuro.

    — “Bem-vindos à nova etapa. Lutem com honra. Errem com coragem. Amem sem vergonha. E acima de tudo…”

    E foi aí que aconteceu.

    O olhar dela. No meio de milhares de rostos, varrendo a multidão, ele parou.

    Se fixou em mim.

    Não foi por muito tempo. Um segundo, talvez. Um piscar de olhos. Mas foi o bastante.

    Meu corpo travou. O ar sumiu dos meus pulmões. O coração bateu uma vez, forte demais contra as costelas, uma pancada surda. E depois outra. E outra.

    Ela me viu. No meio de todos, ela me viu.

    E então, como se falasse apenas para mim, ela terminou a frase:

    — “…nunca se esqueçam de que vocês estão vivos. E isso… já é um milagre.”

    A explosão de aplausos veio logo depois, quase ensurdecedora. Mas eu continuei ali. Parado. Sem me mover. O sangue correndo frio.

    Aquela frase…
    “Estão vivos.”

    Ela falou como se soubesse exatamente o que era não estar.
    Como se tivesse visto o fim… e voltado.

    Solara Whitmore.

    Interessante.
    Perigosa.
    E profunda demais para ser só aparência.

    Solara Whitmore… dizer que ela era bonita era pouco. Era uma ofensa à realidade.

    Olhar para ela era como encarar uma estátua viva, esculpida em gelo e luz — um anjo que carregava uma arrogância serena, quase intocável. E para uma garota com aquele rosto angelical… aquelas palavras pesadas, sobre “aprender a cair” e “estar vivo ser um milagre”, foram um soco no estômago.

    Eu saí do pátio com a voz dela ecoando na minha mente, misturada ao som dos meus passos no cascalho.

    O campo aberto da academia respirava um vento fresco, carregado de expectativa. A movimentação dos alunos era um caos organizado: grupos indo e vindo, risadas nervosas, olhares de medição de poder. Todo mundo procurando seu lugar na cadeia alimentar desse novo mundo que era Fjorheim.

    Apertei a alça da minha mochila e segui para o Casarão Laranja, o prédio designado para as aulas teóricas do primeiro ano.

    Por fora, ele mantinha a ilusão: um casarão antigo, com pedras desgastadas pelo tempo e heras subindo pelas paredes. Mas, ao cruzar as portas duplas… a ilusão quebrava.

    O interior era imenso. A arquitetura antiga dava lugar a um design moderno, com linhas geométricas vivas e iluminação embutida que parecia pulsar. Era um contraste gritante, quase berrando na sua cara: “Você ainda é um iniciante, mas trate de não se perder no passado”.

    Eu estava distraído, olhando alguns quadros holográficos de ex-alunos notáveis no corredor, quando meus olhos foram puxados. Não, arrastados.

    Foi no meio do corredor principal. Meu passo quase travou.

    Ela.

    Uma garota do Clã Misticia. Mas não era qualquer uma. Ela tinha uma presença que parecia flutuar, como se a gravidade tivesse decidido ser mais gentil com ela do que com o resto de nós.

    Seus cabelos eram longos, escuros como a noite sem lua, descendo pelas costas em linhas suaves e perfeitamente cuidadas. Enquanto a maioria usava o uniforme padrão ou roupas de grife, ela vestia um quimono claro, tradicional e elegante. O tecido parecia seda de alta qualidade, bordado com fios de prata quase invisíveis. Era o tipo de vestimenta que não grita beleza — ela sussurra, e todo mundo para pra ouvir.

    Ela andava com leveza, deslizando pelo mármore branco. O rosto dela era… tranquilo. Serena demais. Quase como se ela estivesse caminhando em outro plano de realidade, intocada pelo caos barulhento dos alunos ao redor. Linda demais para esse mundo podre.

    Minha mente, traidora como sempre, só conseguiu formular um pensamento idiota: “Que mulher…”

    Talvez, se naquele momento eu soubesse o nome dela… se eu soubesse quem ela era e o que ela significaria… eu não teria olhado com tanta admiração. Teria olhado com medo.

    Sacudi a cabeça, forçando o foco, e apressei o passo.

    Entrei na sala designada. O ambiente já estava começando a ficar agitado. Gente de todo tipo, de todo canto das camadas. O cheiro de perfumes caros se misturava com o cheiro de ansiedade.

    A primeira pessoa que vi, sentada ali perto da entrada, isolada em sua própria bolha de calmaria, foi ela. A garota do quimono.

    Ela observava o movimento com aqueles olhos serenos, como se visse o mundo através de um véu. Por um segundo — apenas um segundo — o olhar dela cruzou o meu.

    Meu peito apertou. Um reflexo involuntário.

    Desviei o olhar imediatamente. Sem tempo para surtos internos, Ken. Foco.

    Subi os degraus. O salão era amplo, com um estilo mais parecido com um teatro ou um coliseu do que uma sala de aula tradicional. Sem mesas individuais. Apenas fileiras de cadeiras dispostas em degraus íngremes, todas voltadas para um palco baixo lá embaixo. Parecia o cenário perfeito para uma peça… ou para uma execução pública.

    Escolhi um lugar nas cadeiras mais ao alto, no fundo. A visão privilegiada de quem gosta de observar sem ser notado.

    Eu tinha acabado de soltar a mochila quando alguém sentou na cadeira ao lado.

    Virei o rosto.

    Era um garoto. Um pouco mais alto que eu, mesmo sentado. Cabelos negros, pele pálida e olhos de um roxo profundo e inconfundível.

    Claramente, sangue do Clã da Escuridão.

    Ele se virou para mim, e a expressão dele era de uma calma irritante.

    — Vi que você também é do Clã — disse ele. A voz era veludo puro, elegante, quase refinada demais para aquele ambiente escolar. — Primeiro que vejo por aqui. Tô até aliviado, sinceramente. Me chamo Shin. Sou de uma ramificação distante.

    Eu dei uma olhada rápida nele, de cima a baixo. O uniforme dele estava alinhado milimetricamente. A postura era relaxada, mas havia uma tensão nos ombros de quem sabe lutar. Definitivamente, não era qualquer um.

    — Sou Ken — respondi, direto, sem muita firula. — Também de uma família distante.

    Shin me olhou por alguns segundos a mais do que o socialmente aceitável. Os olhos roxos dele pareciam escanear minha alma. Depois, ele sorriu. Um sorriso tranquilo, de quem não tem nada a provar.

    — Você é… peculiar, Ken. Esse seu olho rosa é marcante. Um charme, eu diria.

    Eu o encarei de volta. Hm.

    Esse tipo de cara… sociável, boa aparência, fala mansa. Provavelmente tem um Rank muito superior ao meu. Mas não parecia babaca. Pelo contrário. Simpático, confiante e — meu instinto gritava isso — perigoso se precisasse ser.

    — Obrigado — murmurei, voltando a olhar para frente.

    E então, aconteceu.

    A porta da sala, pesada e maciça, se fechou.

    TAC.

    O som foi seco, alto. Ninguém tocou nela. Não houve aviso. O barulho das conversas morreu instantaneamente, cortado como se por uma guilhotina.

    Ren Tianyū.

    Ele entrou.

    Passos lentos. O som das sandálias dele no piso ecoava no silêncio absoluto da sala. Ele caminhava sem pressa, com as mãos nos bolsos do quimono preto, a postura relaxada de um predador que sabe que não há mais ninguém no topo da cadeia alimentar naquela sala.

    Ele parou no centro do palco. Não disse nada no começo.

    Apenas ficou ali. Os olhos vermelhos como brasa varreram as fileiras de alunos, subindo degrau por degrau, rosto por rosto. Parecia que ele estava lendo nossos pecados. Lendo nosso medo.

    A pressão na sala aumentou. O ar ficou pesado.

    Então, ele abriu a boca. A voz não era alta, mas preencheu cada canto do anfiteatro.

    — Quero começar dizendo que eu não dou a mínima pra quem vocês são.

    Ele fez uma pausa, deixando a frase pairar.

    — Clãs famosos, famílias influentes, filhos de papai, Ranks de elite… — Ele fez um gesto de descaso com a mão. — Não me importa.

    A forma como ele falou foi direta. Seca. Um tapa na cara de cada ego inflado naquela sala.

    Alguns alunos se entreolharam, ultrajados. Outros riram de nervoso. Eu? Sinceramente… um sorriso de canto apareceu no meu rosto. Gostei dele logo de cara. Era o tipo de pessoa que não se curvava para sobrenomes.

    Ele cruzou os braços, o tecido do quimono esticando sobre os ombros largos.

    — Meu nome é Ren Tianyū. E eu serei o pesadelo… ou a salvação de vocês este ano.

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