Ela estava mesmo me chamando para um duelo? Assim, do nada?

    E o pior de tudo? A frase dela.

    “Você, o membro perdido do Clã da Escuridão.”

    Ela disse isso como se significasse algo grandioso. Como se eu realmente representasse algum legado antigo. Eu, que só carrego o sangue… mas não tenho nome, nem lugar, nem história lá dentro. Eu me sentia uma fraude ouvindo aquilo.

    Mas, no fundo… bem lá no fundo, onde a racionalidade não alcança… algo em mim se acendeu.

    Talvez fosse a adrenalina de estar na frente de alguém tão forte. Ou talvez fosse apenas a curiosidade mórbida de testar meus próprios limites. Pela primeira vez, talvez eu quisesse saber o que significava ter esse sangue correndo nas veias.

    — Eu aceito — respondi.

    Quando percebi, o mundo ao redor tinha mudado. Já estávamos no centro da arena. O barulho dos outros alunos cessou. O silêncio ali dentro era diferente — denso, pesado, elétrico. Era como se o próprio ar estivesse segurando a respiração, esperando o primeiro golpe.

    Foi então que reparei no homem que nos observava. Eu nunca o tinha visto antes, mas a presença dele era impossível de ignorar.

    Natan’Zar.

    Ele era o tipo de homem que faz todo mundo desviar o olhar por instinto de sobrevivência… ou encarar demais, fascinado pelo perigo.
    Seus cabelos alaranjados pareciam estar em combustão lenta, desalinhados de um jeito proposital, como se cada fio soubesse exatamente onde deveria estar para parecer selvagem. Os olhos âmbar, semicerrados, carregavam aquela mistura estranha e perturbadora de tédio e sadismo.
    Era uma expressão preguiçosa… até você perceber que, por trás dela, existia alguém que já viu — e fez — coisas que fariam a maioria dos veteranos vomitar.

    Suas roupas tribais, de um tecido dourado com padrões negros complexos, davam a ele uma aparência que misturava o divino com o insano. Uma túnica aberta revelava parte do abdômen marcado por cicatrizes e músculos, enquanto o manto jogado por cima parecia pesado, carregado de histórias. A cada passo que ele dava para se posicionar, as pulseiras e tornozeleiras de contas e ossos tilintavam.
    Um som suave. E sinistro.

    Ele era mais um dos Observadores de Lutas. E parecia faminto por entretenimento.

    — Então vocês dois vão lutar mesmo aqui? — disse ele, a voz arrastada, com aquele sorriso de quem já leu o roteiro e sabe que vai ter sangue. — Fico feliz de poder ver isso. As crianças de hoje são tão… vivas. Podem começar.

    Respirei fundo. O cheiro de poeira e ozônio encheu meus pulmões.

    Olhei para Mina. Com um movimento suave da mão direita, ativei meu código.
    A realidade ao meu lado ondulou como água escura. Do rasgo no espaço, puxei minha adaga larga. Girei-a entre os dedos, sentindo o peso familiar, e apontei a lâmina para frente com um leve sorriso desafiador.

    Ela não hesitou.
    Num piscar de olhos, sacou dois leques de combate da cintura. Eram belos, pintados com garças e flores, mas as bordas brilhavam com metal afiado. Os olhos dela estavam firmes, mirando diretamente em mim, mas sem emoção alguma. Era como se ela estivesse olhando para uma equação matemática que precisava ser resolvida.

    Soltei mais um suspiro, sentindo a pressão no ar aumentar.

    Pela visão periférica, percebi. A arquibancada estava cheia de olhos. E entre eles… Solara.
    A “Rainha” assistia em silêncio, os braços cruzados, os olhos dourados fixos na gente como se avaliasse algo muito além da luta física.

    Então, eu fui.

    Avancei.

    Rápido.
    Explodi em velocidade, rápido o suficiente para desaparecer da vista de um aluno comum. O chão explodiu onde pisei.
    Mas Mina me viu. Ela não moveu a cabeça um milímetro, mas as pupilas dela me acompanharam — frias, calculistas.

    Quando cheguei ao alcance, desferi um corte horizontal.
    Ela ergueu um dos leques para aparar e desviar minha investida, confiando na resistência do metal de sua arma.

    CLANG.
    CRAK.

    O som foi seco, seguido de um estalo agudo.
    O leque dela não aguentou. A lâmina da minha adaga, imbuída com a densidade do meu espaço, atravessou o metal e a madeira como se fossem manteiga. A metade superior do leque voou, girando no ar antes de cair na areia.

    Parei o ataque, recuando um passo, e dei um meio sorriso arrogante.

    — Um lequezinho desses não parece difícil de cortar, né? — provoquei, girando a adaga. — É só papel e enfeite.

    Mina olhou para o leque quebrado em sua mão. Depois olhou para mim.
    O olhar dela perdeu o brilho por um instante. A serenidade sumiu. E o que restou… foi gelo puro.

    — Arrogante.

    Ela juntou as mãos.

    Dança dos Mil Lírios.

    Ela girou.
    O movimento foi bonito. Preciso. Elegante como uma bailarina da morte.

    E então veio o caos.

    Do nada, o ar ao redor dela se encheu. Leques de energia e pétalas materializadas surgiram — dezenas, talvez centenas. Todos girando em curvas graciosas, formando um tornado controlado. Mas não se engane pela beleza: cada pétala era afiada como uma navalha.

    E o pior: elas liberavam um perfume. Doce. Forte. Entorpecente.

    Recuei rápido, quase instintivamente, tentando sair do raio de ação. Mas a tempestade era mais rápida.

    Shhk. Shhk. Shhk.

    Senti a pele abrir.
    Um corte no braço esquerdo. Outro na costela. Um arranhão na bochecha.
    A dor era fina, ardente, como linhas de fogo sendo desenhadas no meu corpo. E, misturado ao cheiro metálico do meu sangue, aquele perfume de lírios tentava me deixar lento, sonolento.

    Ela estava parada ali. No centro do olho do furacão, intocada, como uma deusa cruel. O chão ao redor parecia um jardim amaldiçoado, coberto de cortes e flores.

    Limpei o sangue da bochecha com o polegar. E eu… eu sorri.

    — Isso tá ficando interessante.

    Ela continuou parada, esperando meu próximo erro. E eu sabia: se eu continuasse só com investidas diretas, ia acabar fatiado em pedaços pequenos o suficiente para adubar o jardim dela.

    Mas eu tinha algo. Algo que treinei exaustivamente essa semana inteira, até quase desmaiar de cansaço mental.

    As palavras do professor Ren Tianyū ecoaram na minha cabeça com clareza cristalina:

    “Seu código genético evolui, Ken… Ele não é só uma gaveta infinita para guardar tralha. Ele é uma porta. Um atalho na realidade.”

    A teoria era simples. A prática era um inferno.

    Mas eu estava pronto para trapacear.

    Com um estalo de energia negra, abri um portal ao meu lado. Um buraco retorcido no espaço, alto o suficiente para mim.
    Mergulhei nele.

    A escuridão me engoliu.
    Dentro dele… o Vazio. Meu mundo. Um abismo silencioso e sem gravidade.

    Não havia tempo para pensar. Eu precisava ser rápido.
    A mecânica era complexa: Primeiro, eu tinha que visualizar e criar o Ponto B (a saída) no mundo real. Depois, conectar ao Ponto A (onde eu estava).

    Fechei os olhos no escuro. Visualizei o local.

    Ali. Ao lado dela.

    Abri a fenda de saída.

    No mundo real, uma distorção negra surgiu silenciosamente no ponto cego de Mina.

    Saí.

    O tempo pareceu desacelerar.
    Mina sentiu a perturbação no ar. Ela se virou rápido — assustadoramente rápido. Reflexos de alguém treinado desde o berço.
    Os olhos dela se arregalaram ao me ver surgir do nada, tão perto.

    Mas não foi o bastante.

    Eu não usei a adaga. Eu não queria matá-la, e a adaga seria lenta demais naquele ângulo.
    Fechei a mão esquerda.

    Meu punho já estava lá.

    PAH!

    O som seco do impacto — carne contra carne, osso contra osso — ecoou pela arena como um tiro.

    Acertei um soco direto, sem técnica, mas com toda a força do impulso, bem no meio do rosto delicado dela.

    Só depois que pousei no chão me dei conta do que tinha feito.

    Mina cambaleou para trás, o equilíbrio perfeito quebrado. O rosto dela estava virado para o lado com a força do golpe.
    Lentamente, ela virou o rosto de volta para mim.

    O penteado estava desfeito. A bochecha estava vermelha.
    E, descendo de uma das narinas, um fio grosso e vermelho de sangue manchava a pele perfeita.

    Os olhos dela… não eram mais frios. Eram fornalhas. Havia algo ali que eu ainda não tinha visto: fúria verdadeira. Ódio puro.

    Engoli em seco, balançando a mão que doía pelo impacto.

    E tudo o que consegui pensar foi:

    — Opa… acho que agora o jogo começou pra valer.

    Ela tentou recompor a postura, ofegante, limpando o canto da boca com o dorso da mão, enquanto eu respirava fundo, o suor escorrendo pela minha testa.

    Por um segundo, hesitei. A mão foi em direção à fenda dimensional, mas parou.
    “Não vou usar a adaga de novo… posso acabar matando ela sem querer.”
    Mas a dúvida veio logo em seguida: “E se eu apenas imaginar que a lâmina não corta? E se eu usar o lado cego?”
    Não. Arriscado demais. A adrenalina turva o controle.

    Sem perder tempo, decidi. Punhos.

    Ela abriu o leque restante com um movimento rápido e elegante.
    Vush!
    Uma rajada de pétalas perfumadas voou na minha direção como shurikens florais. O aroma adocicado tentou invadir minhas narinas, entorpecer meus sentidos, mas eu já esperava por isso. Prendi a respiração.

    Desviei num giro lateral e, num piscar de olhos, a escuridão me engoliu.
    Teleporte.

    O mundo piscou. Reapareci bem na zona de guarda dela. Perto demais.

    Num reflexo puro, lancei um golpe de palma aberta visando o esterno, para tirar o ar dela. Mas ela se moveu no último milésimo.
    Minha mão conectou. Não no esterno.
    Senti a maciez sob o tecido do quimono. Toquei diretamente no seio dela.

    Merda.

    O impacto a jogou alguns passos para trás. Ela cambaleou, o rosto queimando não só pelo esforço, mas talvez pela indignação. Ela respirou fundo, trêmula, e se levantou com dificuldade. Não reclamou. Não gritou “tarado”. Ela apenas firmou a base, os olhos focados na sobrevivência.

    Eu, por outro lado, nem tive tempo de processar a vergonha.
    Naquele momento, não me importava se ela era garota, nobre, linda ou a filha de uma deusa. O que me importava era a luta. O sangue fervia nas veias, cantando uma música antiga. Eu estava animado. Eu queria vencer.

    Avancei de novo. Sem hesitar. Sem piedade.

    Dessa vez, ela tentou bloquear com o antebraço, mas fui mais rápido.
    Bam!
    Acertei um gancho limpo no estômago. Ela arqueou o corpo, o ar saindo num chiado doloroso.
    Aproveitei a guarda baixa.
    Pah!
    Um soco direto no queixo. O estalo foi seco, ecoando na arena silenciosa.

    Mina cuspiu sangue e caiu de joelhos na terra batida, as mãos trêmulas tentando impedir que o rosto fosse ao chão.

    Foi só aí que a névoa vermelha baixou.
    Parei. Dei um passo para trás, os punhos ainda cerrados.

    O estrago estava feito. Sangue escorria do nariz perfeito dela, manchando os lábios, pingando no quimono claro. E mesmo assim… ela não desviava o olhar de mim. Havia dor, sim. Mas não havia desistência.

    Mas então, a tensão do duelo foi cortada por uma lâmina de arrogância.

    Uma voz masculina soou pela arena, nítida, polida e irritante:

    — Bater em uma dama desse jeito… tsk, tsk. Não é nenhum tipo de cavalheirismo, calouro.

    Olhei para cima.
    Aparecendo entre as arquibancadas, descendo os degraus com a calma de um rei entediado, estava ele.

    Um jovem de cabelos negros, lisos, puxados num coque alto impecável. Óculos de aro fino davam a ele um ar intelectual, mas o sorriso era de predador. Ele usava o uniforme da academia, mas o paletó estava apenas jogado sobre os ombros, as mangas vazias balançando ao vento, como se vestir a roupa corretamente fosse indigno para ele.

    E, brilhando abaixo do olho esquerdo, o selo:
    Rank A – 2.

    O segundo mais forte do Quarto Ano.

    A pressão espiritual dele desceu sobre a arena como uma âncora de chumbo. Era sufocante.

    Ele caminhou até a borda da arena, mas não me olhou nem por um segundo. Seus olhos estavam fixos em Mina.

    Natan’Zar — disse ele, dirigindo-se ao Observador com um tom educado, porém sem um pingo de humildade. — Me permita lutar contra ele. Quero ensinar boas maneiras ao novato. Se não for incômodo, claro.

    Natan’Zar, que assistia a tudo apoiado numa coluna, deu um sorriso inclinado. O tédio em seus olhos âmbar desapareceu, substituído por pura diversão sádica.

    — Se ele aceitar… por mim, o palco é de vocês — respondeu, dando de ombros.

    O tal Rico Zyx subiu na arena.
    Ele passou por mim como se eu fosse uma pedra no caminho e foi direto até onde Mina estava ajoelhada.

    — Muito prazer, garota do Clã Misticia — disse ele, a voz suave, estendendo a mão como um príncipe de conto de fadas barato. — Permita-me ajudá-la. Venha comigo, por enquanto. Deixe que eu lido com a sujeira.

    Mas Mina…

    Ela olhou para a mão dele. Olhou para o sorriso perfeito.

    PLAFT.

    Sem cerimônia, ela deu um tapa na mão estendida dele. O gesto foi rápido, seco, humilhante.
    Com a outra mão, ela limpou o sangue do rosto, manchando a bochecha de vermelho. E, sem dizer uma única palavra para ele, levantou-se sozinha e virou as costas.

    Não olhou para Rico. Não agradeceu a “gentileza”.

    Ela me encarou.
    Por um último segundo, os olhos dela encontraram os meus. A raiva queimava ali. Mas não era raiva pela derrota, nem humilhação. Era algo mais pessoal. Uma promessa silenciosa de revanche.

    E então ela saiu da arena. Sozinha. Os passos firmes, a cabeça erguida, mesmo coberta de poeira e sangue.

    Rico ficou parado.
    A mão ainda estendida no vazio.
    A rejeição foi pública. Brutal.

    Ele baixou a mão lentamente. O sorriso no rosto dele não sumiu, mas mudou. Ficou torto. Estranho. Como se a piada agora fosse outra, e só ele achasse graça.

    — Mulheres… — murmurou ele, rindo baixo.

    Com uma calma exagerada, ele tirou o casaco dos ombros e o jogou para fora da arena. O tecido caiu no chão com elegância. Ele ajeitou os óculos.

    E só então, finalmente, ele me olhou nos olhos.

    Estalo.

    Ele estalou os dedos da mão direita.

    Na mesma hora, meu corpo traiu minha mente.
    Foi um choque elétrico percorrendo minha espinha. Meus músculos se contraíram sozinhos, violentamente. Minhas pernas se flexionaram, meus braços subiram em guarda. Meu coração acelerou num ritmo absurdo, bombeando adrenalina tóxica.

    Eu não tinha decidido lutar. Meu corpo decidiu por mim.
    Aquilo não era medo. Era controle.

    — Ora, ora… — disse Rico, a voz assumindo um tom debochado, quase musical. — Veja só essa postura. Parece que você quer mesmo me enfrentar, né, calouro?

    O olhar dele por trás das lentes era de puro desprezo. Ele me via como um inseto que acabou de cair na teia.

    Minha respiração estava pesada. Olhei para cima por reflexo, buscando um ponto de sanidade.
    Lá estavam eles. Shin, Holi e Levi.

    Levi estava com os braços cruzados, apoiado na grade, o rosto sério pela primeira vez desde que o conheci. Shin tentava manter a máscara de calma, mas seus punhos estavam cerrados. E Holi… Holi estava encolhida na cadeira, as mãos cobrindo a boca.

    Eu não podia ouvi-los, mas consegui ler os lábios de Shin:
    O Ken vai ficar bem, Levi?

    E a resposta de Levi, fria e brutalmente honesta:
    Não… ele vai perder feio. Rico Zyx é um maníaco por batalhas. E a diferença de poder é abismal. O Ken não tem a menor chance.

    Eu sabia.
    Mesmo sem escutar, meu instinto gritava a mesma coisa.
    Rank D contra Rank A.
    Era suicídio.

    Mas meu corpo já estava em posição de combate. A mágica — ou maldição — de Rico não me deixava recuar. E, sinceramente?
    Fugir nunca foi uma opção.

    Apertei os punhos, sentindo a energia do espaço negro vibrar na ponta dos dedos.

    — Cai dentro — rosnei.

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