Capítulo 38 - Companhia incômoda.
Jonas olhou para cima, constatando com surpresa algo que a muito tempo seus olhos não viam. Pelo menos, desde que haviam chegado àquele mundo. Por entre os ramos nus das altas árvores que os rodeavam e encobriam, via-se intensos feixes de luz entrecortados pelos galhos, provenientes de algo mais alto, brilhante e belo. O sol.
O calor da distante esfera tocava-lhe a pele, aquecendo seus músculos de forma reconfortante.
Nunca pensou que se sentiria assim com uma coisa tão banal em seu outro mundo. Também nunca pensou que iria ficar tão satisfeito por não precisar andar.
A carroça seguia tremendo pela estrada de terra batida, repleta de sulcos e solavancos. Há muito não se ouvia uma conversa. Ao menos desde que haviam deixado completamente as ruínas externas de Beuha e seguido pela passagem sul, adentrando a floresta de Sevyen. Mesmo assim, não era desconfortável.
Havia sons demais à volta para se ouvir.
O bater de asas dos passarinhos, o chiar dos insetos ao seu redor, as árvores secas balançando acima, o quebrar dos galhos sob os cascos dos cavalos e das rodas da carroça. O cantarolar da garota ruiva a sua frente.
E era isso que o irritava.
Não conhecia a música por ela imitada, mas podia dizer o quão errado estava. Ela repetia sempre a mesma melodia, cada vez em uma entonação diferente. O ritmo era desengonçado, apressado demais em certas partes, baixo demais em outras, e ainda assim, alto demais para os ouvidos de Jonas.
E ela parecia não se importar.
— Pelos onze deuses que eu conheço, Morda, fique quieta ou ao menos faça isso mais baixo — Leovard pediu, olhando para trás enquanto guiava a carroça.
Era a terceira vez que ele pedia. E como nas outras duas, Morda ficou quieta por pouco tempo, recomeçando sua cantoria momentos depois.
— De onde eu venho, chamam isso de “TDAH” — comentou Erik, sentado ao lado de Jonas na parte traseira da carroça.
— E o que significa isso? — Morda perguntou, interrompendo seu canto.
— Que você vai cantar até morrer se a gente deixar.
Morda fez um beicinho, voltando a cantarolar baixo.
Jonas suspirou.
— Falta muito, Keuren? — perguntou, virando o rosto para a mulher que dividia a parte da frente da carroça junto a Leovard.
Keren olhou para trás, virando o tronco, antes de responder:
— Disse-lhes que talvez demoremos dois dias a pé. Em uma carroça é provável que cheguemos lá à noite — disse e voltou a se virar para frente.
Jonas cruzou os braços. Seus olhos apontavam para frente, onde a garota de cabelos vermelhos brincava com seus longos cachos. Algo nisso lhe deu uma estranha sensação familiar.
Em certo momento, ela notou seu olhar e cessou o movimento que fazia com as mãos e o cabelo, virando de lado o rosto rosado, ainda cantarolando. Jonas semicerrou os olhos, incomodado com o gesto.
Apesar do jeito de menina, Morda era mais feminina do que a maioria das garotas que ele já havia conhecido.
Usava um vestido cinza escuro, com mangas e saias longas em formato ondulado, que cobria suas pernas até a metade dos tornozelos, além de sandálias turquesas aparentemente desconfortáveis. Jonas pensava ser difícil se mover em uma floresta vestido de tal forma.
Escolhas contestáveis, e no entanto, ela parecia não se importar com isso, como não se importava com as reclamações de Leovard, os comentários sarcásticos de Erik, ou com a clara expressão de irritação que Jonas devia estar fazendo com toda aquela cantoria. Morda parecia apenas ignorar tudo isso e continuar a cantar sua música bizonha.
Jonas apenas suspirou. Desejava estar em casa, junto de seus avós, ou em qualquer outro lugar que pudesse encontrar descanso. Mas o único em que poderia ter tal coisa já estava ocupado.
Haviam deixado Leandro aos cuidados de Graça naquela manhã, seguindo junto a Leovard e Morda pelo caminho sul.
Um misto de alívio e desgosto inundaram seu peito quando o cento apareceu no quarto na noite anterior. E então a confusão causada pelas palavras seguintes.
— Por que tenho uma proposta para alterar levemente essa missão — foi o que ele disse. E cantarolando a frente de Jonas estava o motivo da proposta.
Morda.
Leovard desejava torná-la uma cento, tal como ele e o resto de seu grupo, no entanto ela não havia passado na última avaliação com o ouvidor da guilda Raggin. Jonas lembrava de ouvi-la reclamar disso enquanto vigiava o quadro de missões. O motivo, segundo ele, era por conta da pouca experiência que a garota tinha como líder.
Centos eram uma posição importante para a guilda de aventureiros. Aqueles que atingirem esse patamar deveriam ser capazes de assumir a liderança de outros grupos com aventureiros menos experientes em situações de crise.
Jonas assemelhou isso em sua cabeça à hierarquia militar, com centos sendo algo semelhante a um sargento.
Leovard então explicou sua ideia para ele e os outros. Queria que alterassem a missão de simples “Buscar ervas matites” para “Precisa-se de um membro extra” para que Morda pudesse participar e “liderá-los”, adquirindo experiência de liderança.
O próprio Leovard os acompanharia com a desculpa oficial de sair em outra missão em um lugar próximo.
E assim ali estavam, seguindo para as colinas uivantes, de onde ninguém desejava ir e poucos retornavam. Ao som do cantarolar da garota infantil que deveria se tornar uma cento, e na companhia de alguém que Jonas pouco apreciava.
A carroça continuou seu caminho em silêncio até que uma voz o interrompeu.
— Ei, o que acham desse lugar, as colinas uivantes? — perguntou Erik, olhando para onde Leovard e Keren estavam sentados.
Morda respondeu por eles.
— Grandes montes cheios de ventos. Os ventos passam por entre eles e fazem um barulho de assobio. Já vi alguns lugares assim, e quem morava por perto chamava de um jeito parecido.
Jonas franziu o cenho ante a explicação bem colocada de Morda. Era a mesma garota que cantarolava como uma criança momentos antes?
— Talvez pudesse ser por isso, mas o motivo é diferente — interpôs Leovard. — Há muito vento, sim, e eles fazem um som bem alto quando passam por entre as colinas, mas o motivo verdadeiro é o que vive nelas.
Jonas lembrou-se de um som ouvido por ele em um crepúsculo chuvoso não muito tempo antes.
— Lobos Hatti? — perguntou.
— Não, antes fosse isso — negou Leovard. — Harpias.
— Harpias? — Jonas repetiu a palavra, imaginando o ser mitológico que ela remetia.
— Mulheres nuas aladas? — Erik riu, zombando da ideia.
Keren e Leovard olharam para trás quase ao mesmo tempo. Seus rostos consternados encarando o jovem. O movimento da carroça fazia suas cabeças balançarem.
— As histórias que os velhos contam para crianças em vilarejos longínquos continuam a me impressionar — comentou Keren.
Erik franziu as sobrancelhas.
— O que querem dizer? — intrigou-se Jonas.
— Eu as vi apenas em duas ocasiões. São de fato monstros alados, mas nunca vi uma que parecesse uma mulher nua. São como águias monstruosas e terríveis. Podem tirar um cavalo do chão com um simples mergulho, e fazer as árvores balançarem com o bater de suas asas, e não há nada que seus bicos não esmigalham, sejam rochas sólidas ou um elmo de aço com a cabeça de um homem dentro. Quando ouvir seu som, vai entender porquê o nome do lugar — explicou seriamente Leovard, causando uma sequidão na garganta de Jonas. Não sabia se era pela descrição das harpias ou simplesmente por ter de interagir com Leovard.
— Águias gigantes, você diz? — interessou-se Erik.
— Sim, águias gigantes com asas e garras enormes. E pra elas nós somos como ratos — resmungou Keren, voltando a olhar para frente.
— Não me chame de rato — protestou Morda.
— Passarinho, então, já que você gosta de cantar — brincou Erik, estalando os dedos.
Leovard soltou uma risada que soou surpreendentemente agradável aos ouvidos sensíveis de Jonas.
— Sim, sim, “A pardal vermelha”, gostei — disse ele, contendo-se um pouco.
Morda bufou, cruzando os braços enquanto encarava seu líder.
— O que faremos se formos atacados por uma delas? — preocupou-se Jonas, consciente mais do que nunca da espada em sua cintura.
— A mataremos — respondeu prontamente Leovard, de uma forma simples demais para Jonas acreditar.
— Da forma que vocês falaram, eu pensei que fossem perigosas — observou.
Leovard deu de ombros.
— E são, mas a mataremos assim mesmo.
— Somos centos, podemos cuidar de algumas harpias — comentou Morda com uma expressão convencida no rosto.
— Você ainda não é uma cento, Morda — lembrou Leovard, azedando o rosto da garota.
Jonas suspirou.
Não importa, decidiu.
Só precisavam trazer a maldita erva matite para tratar Leandro. Não importava o que teriam de matar para isso. Não importava com quem tivessem de fazer isso. Ele suportaria.
A carroça continuou seu caminho até a vista, limitada pela floresta, abrir-se para a de uma extensa planície verdejante. Jonas viu três picos mesclados de verde e marrom no horizonte. Keren apontou em sua direção, lançando um olhar para Jonas e Erik. A carroça continuou seu caminho.
Quando chegaram, o sol já declinava, engolido pela terra no longínquo horizonte oeste, pintando o céu de um amarelo caramelado, que ia aos poucos tornando-se vermelho e púrpura, até o conhecido véu escuro da noite tomar forma.
Decidiram montar acampamento em um aclive ao pé dos montes. Leovard tratou de acender a fogueira enquanto Jonas e os outros montavam as tendas, trazidas pelo cento para a pequena expedição.
Jonas montou a sua junto a Erik, encontrando relativa dificuldade, enquanto as garotas fizeram o mesmo em menos tempo. Pareciam acostumadas a tal coisa.
Os cinco se reuniram em volta da fogueira, dividindo uma refeição de pão, mingau e carne seca, enquanto Leovard contava e cobrava histórias dos demais.
Morda contava uma história sobre uma gigante caminhando sobre uma montanha de gelo e fogo para reaver seu filho, tomado por deuses esquecidos.
Erik contou sobre a clássica história de Frankenstein, imaginando talvez que deveria contar algo assustador. Jonas não cria que pessoas que estavam acostumados com criaturas como dentes de adaga, insetos gigantes e aves monstruosas pudessem se assustar. Porém percebeu-os surpreendentemente tensos enquanto ouviam. Ao ponto de Morda pedir para que Erik parasse em certo ponto, pois trazia mal agouro falar sobre tais coisas. Ele o fez, e Jonas percebeu o leve desconforto que agora se encontravam.
Leovard então pediu que Keren contasse outra, e ela o fez, contando sobre uma vez em que tratou um homem expelindo vermes por todos os seus orifícios. O que todos consideraram como algo nojento a se saber. Leovard pediu então que Jonas contasse uma também. Parecia querer preencher qualquer silêncio existente com alguma voz ou risada.
Para Jonas não existia tal silêncio, mesmo que houvesse, não desejava preenchê-lo. Negou, se levantando e saindo da roda em volta da fogueira, e foi até a sua tenda, onde acreditou que poderia ter alguma paz, se descobrindo enganado, como sempre.
Os chiar dos insetos, o piar das aves noturnas, os sons que os pequenos e grandes animais faziam ao redor deles, rastejando, pisando ou saltando pelo chão. Tudo se misturava em uma cacofonia infernal que parecia durar para sempre. Surpreendia-o não enlouquecer ante aquilo. Ou ao menos cria não ter enlouquecido.
Desejava um momento de silêncio, por menor que fosse, porém as histórias eram contadas, e ele as escutava, junto com todo o resto.
Mas era a voz de Leovard que mais o incomodava, soando em seus ouvidos como uma lixa quando ele começou a contar a sua história. Uma que chamou de “Primeiro rei”:
“Quando o mundo ainda era cinzas e fumaça, Haradam soprou o primeiro vento e limpou o céu. Diahei, animado com a intenção de seu pai, enviou a primeira nuvem, e fez descer do céu a primeira chuva, limpando as cinzas da terra e fazendo correr os rios até que eles escoaram até os confins do mundo, formando os infindáveis oceanos.
Héwrya, senhora dos campos, olhou a terra e gostou do que viu, plantando lá a primeira semente, que fez nascer a primeira árvore. Quando o mundo se tornou suficientemente verde, Haradam pediu a Lebatar, o artesão que fizesse moldes das criaturas mais belas e curiosas que conseguisse imaginar, e este assim o fez.
Haradam então juntou a terra, a água, o vento e o fogo em misturas que apenas ele poderia fazer, e deu origem a todas as criaturas existentes. Aves e cavalos, baleias e répteis, todos foram feitos por ele.
E quando o mundo estava bem povoado por todos os animais pensáveis, Haradam desejou algo mais. Ele tomou argila em suas mãos e moldou para si um boneco da maneira que o desejo de seu coração exigia. Fez um boneco da forma de um homem, mas sem nada que um homem tivesse. Então exigiu de todos os outros que com ele estavam que presenteasse sua nova criação com um dom não concedido a nenhum outro animal.
De Abadir, o senhor dos relâmpagos, o homem recebeu ouvidos dispostos a escutar do mais leve bater de asas até o mais estrondoso rugir das feras. De Diahei, amante da lua, o homem recebeu a capacidade de sentir em sua pele a agradável sensação do orvalho e a refrescante brisa do vento. De Héwrya, a dama do verde, o homem pôde ter o prazer de saborear as mais doces frutas. De Goorthr, o valente, o homem recebeu a ousadia e a coragem para desbravar o que seus olhos vislumbrassem.
Lebatar deu-lhe pés que o podiam levar para onde quisesse, e mãos para alcançar o que seu coração desejasse. De Pirima, a poetisa, recebeu o homem o ardente desejo pela arte, e um beijo seu para que sempre desejasse o que é belo. De Falente, que andava nas sombras, foi dado o cabelo para protegê-lo do frio e pálpebras para que evitasse o sol quando desejasse.
Oderin, que amava piadas, deu-lhe a capacidade de sorrir em qualquer momento. E do próprio Haradam recebeu o homem a capacidade de saber o significado de cada uma dessas coisas e de tudo que fora feito até então. E aprovou todo o trabalho como sendo bom.
Mas houve dois que não satisfeitos ficaram com essa nova criação. Sefihr, que conhecia a tudo, e aquele que é inominável. Sefihr não aprovava que uma criação como essa fosse feita, tão parecida com eles como era, e sem qualquer falha, então deu-lhe uma. A maior falha conhecida por ela.
O medo.
Ela não o fez por desdém, mas por amor. Desejava que a criação fosse capaz de duvidar para acreditar, entristecer-se para poder alegrar-se, e temer para poder superar, ter medo de perder, para poder valorizar.
Haradam e os outros deuses aprovaram, pois a ninguém, nem a eles, foi negada qualquer falha, por mínima que fosse. Mas o último nada de amor tinha por àquela criação, apenas desprezo, e por isso, disfarçou uma maldição e o entregou como presente, corrompendo a tudo, e a todos.
Ele deu-lhe o desejo sem qualquer restrição, e com ele, o vício, a ganância e o ódio. O amor tornou-se em luxúria, a coragem em arrogância, e mesmo o conhecimento dado por Haradam, tornou-se em arrogância. E sem que ninguém percebesse, corrompeu ele àquela que deveria ser a maior criação. O primeiro homem, o primeiro rei. E assim reinou o homem sobre as demais coisas. Enganado por seus próprios desejos, e limitado pelo medo.”
Jonas ouviu tudo e por fim adormeceu.

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