Capítulo 52 - Feira do Livro (II).

Renata falava algo sobre como o marcador dela parecia uma espada medieval, e eu assenti, rindo, mas minha atenção se desviava involuntariamente para o ambiente ao redor.
Não havia nada de estranho, nem mágico, nem espiritual… apenas um incômodo.
Um cheiro estranho misturado ao ar, talvez.
Um peso leve na nuca, como se algo tivesse se espalhado entre as pessoas.
Ou talvez fosse apenas impressão.
Fiz questão de ignorar.
Depois de terminar nossas compras e de fazer um pequeno lanche improvisado, um pão de queijo meio borrachudo e um refrigerante barato.
Nós voltamos a andar pela feira sem pressa.
O movimento continuava forte, estudantes entrando e saindo das barracas, catando descontos, rindo alto, fazendo drama por não terem dinheiro suficiente para comprar tudo o que queriam.
— Ok — disse Renata, enquanto estendia os braços. — Acho que oficialmente zeramos o mapa.
— Zerar? A gente mal explorou metade ainda — comentei.
— Sim, só o meu dinheiro acabou. Logo, a exploração também.
— Justo, é um argumento válido.
Estávamos perto da saída lateral do salão, onde a água na rua, deixava o ambiente com uma sensação bem mais fria e aberta.
A chuva já tinha parado de vez, e agora gotas esparsas caíam do beiral do telhado, formando pequenos pingos ritmados no chão.
A claridade fazia o ar parecer menos pesado ali.
Tudo parecia um dia simples de chuva com um pequeno acaso estranho…
Foi então que ouvimos.
— Gente… vocês viram o negócio da creche? — uma garota comentou a poucos passos de nós.
— De Blumenau, né? — respondeu outra, com a voz trêmula. — Minha mãe acabou de mandar mensagem…
Eu e Renata trocamos um olhar automático. Não era o tipo de tom que se usa para comentar fofoca qualquer.
Paramos por instinto, sem nem combinar.
As meninas continuaram falando, agora mais baixo, mas ainda audíveis.
— Um cara entrou com um machado entrou em uma creche e matou c-cinco crianças… — disse a primeira, com um tom de voz apático.
— Meu Deus… — a outra deixou escapar.
Renata arregalou os olhos.
Eu senti um arrepio percorrer minhas costas, como se alguém tivesse passado um pano gelado pela minha coluna.
— Você ouviu? — perguntou ela.
— Ouvi…
Me aproximei um pouco, sem realmente querer parecer intrometida.
Outras pessoas também estavam ouvindo, e a notícia corria rápido, se espalhando como pólvora entre alunos, professores e vendedores.
Blumenau era logo ali. Uma cidade vizinha. Uma cidade irmã.
Uma cidade que qualquer pessoa daqui acessava em menos de duas horas de carro.
A ideia de algo tão brutal acontecendo tão perto fez o ar parecer… mais assustador..
— Caramba… — murmurei. — Isso é…
Porém não consegui completar a fala.
Porque não havia uma única palavra que descrevesse aquilo.
Horrível? Absurdo? Doentio? Inimaginável?
Nada parecia suficiente.
E talvez por isso mesmo, tudo ficou mais cinzento.
O salão, os sons, os risos… tudo parecia um pouco deslocado, um pouco errado, um pouco desalinhado com o mundo real naquele instante.
Como se a notícia tivesse tirado algo de nós, uma camada invisível de proteção que mantinha o dia ensolarado apesar da chuva.
— É muito estranho — Renata disse. — Essas coisas… acontecem lá longe, sabe? Nos lugares que a gente não alcança. Mas quando é do lado…
— Parece que não estamos preparados — completei.
Ela assentiu com o rosto sombrio.
Ficamos em silêncio por alguns segundos.
E então, como se o universo tivesse decidido ilustrar o momento, um som desagradável ecoou pelo salão.
O som de alguém vomitando.
Eu me virei automaticamente, esperando ver apenas um aluno passando mal. Afinal, isso acontecia em eventos apertados assim.
Mas não havia apenas um.
— Olha ali… — Renata disse, num sussurro assustado.
A uns quinze metros de nós, um garoto apoiava as mãos nos joelhos e vomitava no chão, o corpo inteiro tremendo.
Ao lado dele, um professor tentava ajudá-lo, segurando seus ombros.
Só que mais à frente. Mais um começou a vomitar.
Outra pessoa.
E outra.
E mais outra.
Em menos de um minuto, eu contei mentalmente, porque fiquei paralisada observando, pelo menos umas dez pessoas estavam vomitando no salão.
Algumas se ajoelharam, outras deixaram a mochila cair e se curvaram.
Uma garota começou a chorar enquanto segurava a barriga.
O cheiro ácido se espalhou rapidamente, misturando-se ao ar úmido e quente.
Senti o estômago embrulhar de leve.
Uma outra pessoa mais ao fundo caiu da cadeira e começou a se contorcer.
“Como assim?”
— Isso tá errado… — Renata murmurou.
Eu só consegui assentir.
Professores começaram a circular, tentando afastar os alunos, pedindo calma, abrindo espaço.
Os vendedores olhavam assustados, alguns reclamando da sujeira, outros tentando ajudar com panos improvisados.
E então, como se o dia não tivesse ficado estranho o suficiente…
Dois caras adultos, talvez homens que trabalhavam ali, ou visitantes, começaram a discutir perto da entrada.
Eu só percebi porque o som deles cortou o ambiente, um estalo brusco, como um trovão deslocado.
Um leitor energético disparou.
Um dos homens ativou um encantamento.
— PARA! — um deles gritou.
O outro empurrou alguém no caminho.
Sem aviso, o primeiro avançou como se tivesse perdido completamente o controle.
O segundo reagiu com a mesma raiva súbita, como se os dois fossem marionetes puxados por fios invisíveis.
O segundo também ativou um de seus encantamentos e forçou uma espécie de punhal ao redor do pulso.
Eles trombaram num dos guardas da feira, um dos seguranças contratados para o evento.
E os três caíram no meio de uma pilha de caixas de livros.
O guarda tentou contê-los, mas os dois homens pareciam descoordenados e agressivos, como animais acuados.
— O quê…?! — Renata levou a mão à boca.
— Eles… eles tão loucos? — murmurei, incrédula.
O guarda levou uma cotovelada no rosto, outra no ombro, enquanto tentava imobilizar um dos homens.
Um grito ecoou.
Pessoas começaram a se afastar, recuando como ondas se abrindo no mar.
Foi preciso um professor mais forte e mais dois vendedores para separar os dois sujeitos.
E então alguém gritou:
— CHAMEM A POLÍCIA!
— ALGUÉM LIGA PRA AMBULÂNCIA!
— TEM GENTE PASSANDO MAL!
Tudo virou um caos organizado e, ainda assim, assustador.
Os alunos começaram a se reunir perto dos professores responsáveis.
Alguns estavam pálidos. Alguns tremiam.
Outros tentavam saber notícias dos colegas que tinham desmaiado ou vomitado.
Havia choros isolados, respirações aceleradas e olhares perdidos.
Eu mesma… senti algo dentro de mim ficar inquieto.
Não era magia.
Não era QP.
Era só… medo humano.
A polícia chegou rápido, a cidade não era grande, e a feira ficava na região central.
Duas viaturas estacionaram perto do salão, seguidas por uma ambulância e por um caminhão do corpo de bombeiros, provavelmente chamado pelo leitor energético.
Depois outra. Sirenes cortaram o ar como lâminas, fazendo as conversas mudarem de tom.
Alguns alunos começaram a gravar vídeos, como sempre faziam. Outros se escondiam atrás dos professores.
Os paramédicos entraram em ação imediatamente, avaliando quem desmaiou, quem vomitou, quem estava pálido demais.
Alguns adolescentes foram levados para a ambulância para receber oxigênio.
Dois adultos também.
Os homens que atacaram o guarda foram algemados.
O guarda, com o nariz sangrando, ainda tentou minimizar:
— Tô bem, tô bem… só segurem eles, aquele golpe não teve energia, e quase me fez desmaiar…
— Relaxa, eles já estão algemados — disse o policial que estava ao lado.
E o guarda da escola, em apoio, começou a ajudar na organização dos estudantes.
Eu me mantive perto de Renata, sentindo o coração bater rápido demais, a garganta seca.
— Helena… — ela sussurrou. — Que merda foi essa?
— Não sei… mas não pareceu… normal.
— Nem um pouco normal.
As luzes do salão piscaram uma vez, talvez uma coincidência, talvez falha elétrica, mas aquilo me fez estremecer.
Era como se todo o ambiente estivesse carregado de estática.
Quando enfim a confusão começou a diminuir, quando as pessoas doentes estavam sendo atendidas e os dois homens tinham sido retirados dali, os professores organizam as turmas para o retorno imediato à escola.
— Pessoal! — a professora Andressa gritou. — Vamos retornar! Devagar! Em dupla! Não se separem!
Renata pegou-me pelo braço, sem nem pensar.
Eu segurei de volta.
O caminho de volta até a escola foi silencioso. O tipo de silêncio que não vem do cansaço, mas do choque.
Eu olhava para a rua molhada, para os prédios frios, para o céu nublado.
Algo no ar parecia… suspenso.
Como se o mundo tivesse respirado fundo demais.
E agora… segurasse o fôlego.
A caminhada de volta até a escola teve um ritmo estranho, como se cada passo fosse mais pesado do que o anterior.
Não era apenas cansaço emocional, nem um susto recente.
Era outra coisa.
Algo que parecia ter grudado na pele, no pensamento, como se o ar ainda estivesse impregnado com aquela sensação de… desequilíbrio.
Eu e Renata seguimos juntas, de mãos dadas, quase sem perceber.
Só notei isso quando chegamos perto da praça, onde o vento mais frio nos obrigou a encolher os ombros. Ela me soltou devagar, sem muita cerimônia, esfregando as palmas enregeladas.
— Eu ainda tô tentando entender o que aconteceu — ela disse, finalmente quebrando o silêncio que nos acompanhava desde a saída da feira.
— Eu também… — respondi.
Em qualquer outro dia, a rua estaria viva, mesmo com chuva: carros, vozes, cachorros latindo, cheiro de pão das padarias.
Mas naquele horário, naquela terça-feira que parecia deslocada do calendário, tudo estava quieto demais.
Alguns carros passavam devagar, motoristas olhando para as sirenes ao longe com expressões desconfiadas.
Pessoas nas calçadas cochichavam entre si, provavelmente tentando confirmar as notícias sobre Blumenau.
E eu pensava: como o mundo pode mudar tanto em tão pouco tempo?
A imagem dos dois homens atacando o guarda ainda estava impressa na minha mente — os movimentos descoordenados deles, os gritos, o jeito como pareciam incapazes de perceber onde estavam.
Era quase como assistir duas marionetes com os fios cruzados.
Mesmo assim, o que mais me incomodava era o outro lado da cena: as vinte, talvez trinta pessoas passando mal ao mesmo tempo.
Vomitando com uma violência que não parecia comum, como se algo tivesse sido acionado dentro delas de uma hora para outra.
Eu olhei para Renata, que mantinha os olhos fixos no chão.
— Você acha que pode ter sido comida estragada? — perguntei, tentando buscar explicações simples. — Ou sei lá… alergia? Intoxicação?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Todas essas coisas… acontecem. Mas não ao mesmo tempo. Não daquele jeito. Não com pessoas tão diferentes.
— Eu sei…
Eu queria acreditar que era só azar, coincidência, clima abafado. Mas a verdade é que o acontecimento todo parecia quebrado.
Algo não encaixava. Algo não fazia sentido de um jeito profundo.
O grupo de alunos da nossa turma estava mais à frente, caminhando num bloco compacto. Os professores tentavam manter todo mundo junto, repetindo as mesmas instruções:
— Não se afastem!
— Fiquem em dupla!
— A escola já foi avisada!
— Vão direto para a sala assim que chegarem!
A cada ordem, a tensão parecia crescer.
Renata soltou um pequeno suspiro, cruzando os braços.
— Sabe o que é pior? — ela murmurou. — Essa sensação de que alguma coisa vai continuar errada, mesmo quando chegarmos lá.
Eu engoli seco.
Eu pensava exatamente o mesmo.
Mas não disse.
Continuamos andando até o portão da escola.
O pátio estava vazio, claro, todas as turmas tinham ido para a feira, mesmo assim a visão do lugar me causou um alívio momentâneo, como se fosse um porto ao qual retornamos depois de uma tempestade.
Alguns alunos comentavam:
— Minha vó mandou mensagem dizendo que viu na TV o caso da creche…
— Meu irmão tá lá no hospital, ele passou mal também…
— Será que tinha alguma coisa no ar?
— Eu vi o cara batendo no segurança… ele quase quebrou o queixo do guarda!
— A polícia levou os dois… disseram que eles estavam surtados.
— Credo, que dia estranho…
Cada voz parecia ser uma peça solta do grande quebra-cabeça que ninguém conseguia montar.
Quando entramos no prédio principal, senti o cheiro familiar do corredor frio, normalmente desagradável, mas naquele momento… acolhedor.
A escola tinha cheiro de rotina, de previsibilidade, de normalidade.
Algo que estava em falta.
Os professores pediram que nos dirigíssemos imediatamente à sala.
O ambiente lá dentro estava mais silencioso do que eu esperava.
Algumas pessoas estavam pálidas, outras extremamente agitadas, falando rápido demais, como se precisassem descarregar a adrenalina represada.
Uma garota ficou deitada no ombro da amiga enquanto tentava recuperar o ar.
Renata sentou na carteira ao meu lado, jogando a mochila no chão.
— Helena… — ela começou. — Isso não tem nada a ver com QP, né?
Eu me virei para ela.
— Acho que não. Pelo menos… nada do que eu saiba.
— Só pareceu tão… caótico. As pessoas, o jeito que elas ficaram…
— Eu sei — respondi.
Fechei os olhos por um segundo, tentando organizar meus próprios pensamentos.
A lembrança dos movimentos rígidos do garoto no pátio, as risadas desconectadas, os desenhos roxos na pele dele… tudo aquilo somado ao que vimos na feira…
Era muita coincidência para um único dia.
O problema era esse mesmo: coincidências demais não parecem coincidências.
Um burburinho maior se formou próximo à porta.
Um professor entrou, ajustando os óculos com pressa.
Ele parecia nervoso ou tentava ao máximo não demonstrar nervosismo.
— Turma… — ele começou, respirando fundo. — A direção pediu que todas as salas permaneçam organizadas e que aguardemos novas instruções. Ninguém sai. Ninguém circula pelo prédio sem permissão.
Alguns alunos reclamaram, outros só olharam o professor com apreensão.
— Está tudo sob controle — ele acrescentou rapidamente. — A situação na feira do livro foi estabilizada, e os responsáveis estão lidando com as pessoas que passaram mal. A polícia já reportou que não há risco imediato. Mas, por precaução, vocês ficarão aqui até segunda ordem.
Renata levantou a mão.
— Professor… o que aconteceu lá? — perguntou ela. — As pessoas que desmaiaram… alguém falou o que causou aquilo?
Ele hesitou. E esse pequeno momento de hesitação fez todo mundo prender a respiração.
— Aparentemente, foi uma intoxicação alimentar coletiva — ele disse. — As autoridades estão investigando a causa. Pode ter sido algo que algum vendedor ofereceu, ou até mesmo água contaminada, não sabemos.
Eu senti um incômodo súbito no estômago.
Era a resposta certa para acalmar os alunos.
Mas não era uma resposta honesta.
Renata me olhou com a sobrancelha arqueada, claramente pensando a mesma coisa que eu.
Trinta pessoas vomitando de repente?
Dois homens surtando ao mesmo tempo, sem substâncias aparentes?
Intoxicação alimentar?
Eu respirei fundo. O professor continuou falando sobre segurança, sobre permanecer em sala, sobre esperar os pais serem avisados.
Mas a minha cabeça estava longe.
Muito longe.
O resto da aula, ou o que deveria ter sido a nossa segunda aula, passou devagar.
O tempo parecia desmanchar entre meus dedos, como areia escorrendo.
Eu tentava ignorar pensamentos conspiratórios, mas era difícil ignorar a sensação de que algo estava prestes a acontecer.
Quando o sinal tocou, o barulho ecoou mais alto do que o normal. As pessoas pularam da cadeira como se tivessem levado um choque.
Fomos liberados para ir ao recreio.
“Talvez, consigamos ter um momento de paz…”
O movimento acelerado do recreio, estava se desenrolando como se estivesse em câmera lenta.
Foram poucas as pessoas que optaram por sair das salas. A maioria ficou lá mesmo ou saíram apenas para o corredor.
Eu tentei aproveitar a oportunidade para sair um pouco e ficar em um lugar aberto…
Só que quando sai da entrada da sala e passei pelo pátio de brita para ir em direção ao banheiro e bebedouro.
Uma forte luz azul e vermelha brilhava no pátio, duas viaturas da polícia chegaram no pátio, pela entrada de trás da escola.
E delas, saíram quatro policiais.
Quatro homens adultos, com colete tático e vestindo roupas totalmente pretas.
Andavam na direção da diretoria…
Até que vi um deles olhar na minha direção…
Troquei contato visual com ele por alguns segundos. Até que…
Sua postura mudou bruscamente, ele se virou ao outro homem ao seu lado…
E por um milésimo, achei que apenas tinha me confundido com outra pessoa.
Mas…
Assim que o outro oficial botou os olhos em mim.
Ele disse algo aos demais…
E todos… Sacaram as armas.
E apontaram na minha direção, prontos para atirar.
Não havia palavras para descrever a sensação de medo que aquilo gerou.
— É ela, precisamos dela viva — disse o homem do centro.
Meu coração quase parou…

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