Capítulo 234 - De Volta ao Caos

“Quem diria que voltaria pra cá tão rápido.”
Jasmim apoiou as mãos na cintura, girou o tronco e estalou as costas com um som que teria feito qualquer quiroprata chorar de desespero. Os últimos dias tinham sido duros. Chamar de “viagem” seria um elogio, estava mais para uma “tentativa de homicídio da natureza”: chuva demais, ventos demais, barulhos na mata que ela preferia fingir que não ouviu — e mesmo assim, estava ali. Inteira. De novo no litoral de São Paulo, como se o mundo tivesse se esforçado só um pouquinho para manter um senso mínimo de ironia.
Seguiu pela mata sem pausas, olhos colados no ponto pulsante do mapa, aquele maldito farol rubro que tanto irritava quanto orientava. E então, como um cachorro voltando para casa depois de ser chutado, lá estava: Insídia. O lugar que ela mal tinha saído, e já voltava.
“Tá muito melhor do que imaginei…”
Parte dela tinha se convencido de que só encontraria cinzas. Na verdade, não lembrava direito de como havia deixado a cidade — pelo menos não em um estado mental confiável. As memórias vinham em flashes: o teto quebrado do castelo, o gosto de sangue na boca, a sensação de ter sido pisoteada por algo grande.
E, claro, as mortes. Muitas mortes.
Mas ali estava ela: firme, funcional… e mais feia do que antes. Menos viva, mais… contida. Os muros ainda cercavam a cidade, mas agora pareciam decoração barata. Os portões? Sumiram. Não havia soldados vigiando ou bandeiras tremulando. Só um vão aberto cheio de uma intenção desconfortável demais para ser chamada de paz.
Quando pisou lá dentro, o ar era ainda pior. Havia puros nas ruas, andando lado a lado com os corrompidos — o que, tecnicamente, seria uma boa notícia. Só que não era. Companheiros? Nem de longe. Era como ver dois gatos dividindo o mesmo cômodo: ninguém ataca, mas todos estão a um espirro de distância do caos.
O castelo, ou o que restou dele, ainda coroava o alto da cidade como uma lembrança teimosa de quando tudo girava em torno de Ana. Mas já não era o centro. O verdadeiro coração agora estava mais abaixo, quase ao nível do povo — e pulsava como um músculo recém-formado.
O Coliseu.
Tudo convergia para o anfiteatro majestoso.
Não era só a arquitetura que puxava os olhos — embora o tamanho indecente daquilo ajudasse bastante —, mas o burburinho constante, o cheiro insistente de carne e fumaça, e o tipo específico de música que só existe onde o povo só tem um pingo de esperança ou mais nada a perder.
Uma feira se espalhava ao redor como um mar mal delimitado. Como toda boa feira, tinha de tudo: comidas duvidosas, danças improvisadas, artesanato com orgulho local, armas afiadas demais para serem decorativas, carcaças semi-tratadas e até drogas — se falasse com as pessoas certas, ou as erradas, dependendo do ponto de vista.
Mas havia também… algo mais.
— Mas que merda é essa… — As palavras escaparam como um soluço mal contido. Jasmim olhou ao redor, tensa, como se pudesse recolher o som com as mãos.
Ninguém pareceu notar — ou se notaram, fingiram muito bem. Havia olhares, sim, um ou outro mais seco, mais demorado, mas nada que sugerisse um soco a caminho. Ela ainda passava por “irrelevante o bastante para ser ignorada”.
Suspirou, e desta vez não se conteve:
— Mas. Que. Porra. É. Essa.
O centro da praça diante do Coliseu ostentava um palco elevado, emoldurado por colunas improvisadas de banners com símbolos que pareciam ter sido desenhados por alguém bêbado e convencido. À frente, uma multidão se apertava em torno de algo que só ficou claro quando Jasmim se aproximou.
Uma vitrine.
Não uma vitrine qualquer, mas uma fileira de gaiolas com pessoas dentro. Luminárias de mana estavam bem posicionadas para destacar os rostos, placas detalhadas nas frentes e, claro, um pregão que rodava em alto e bom som.
“80 pratas. Homem. 30 anos. Manca, mas pode lutar. Boa resistência a dor.”
“2 ouros. Bestial. 22 anos. Duas vitórias na arena.”
“1 ouro e meio. Mulher. 19 anos. Boa presença de palco. Arremesso de lança com precisão.”
Jasmim franziu o rosto com nojo cético.
— Escravos? — sussurrou, num fio de voz tão fino que nem ela teve certeza se tinha falado alto o bastante.
Mal terminou a frase quando sentiu o toque de uma mão em seu ombro. O susto veio antes da reação: girou com a mão já na espada mal forjada que carregava, expressão entre o reflexo e o aviso.
— Quê isso!? São gladiadores, minha dama! — disse o sujeito com um sorriso de dentes tortos.
Vestia-se como quem queria parecer importante, mas só tinha conseguido parecer quente demais para o clima. Cores vivas, um colete com botões demais e um colar que provavelmente não era dele. Parecia feliz por poder explicar, como um vendedor prestes a apresentar um produto “inovador”.
Jasmim estreitou os olhos. Não largou a empunhadura da espada.
— Gladiadores. Aham.
— Claro! Campeões da arena! Orgulho de Insídia! — disse ele, erguendo os braços como se fosse puxar aplausos do ar.
Ela não respondeu. O olhar vagou de volta para a vitrine, especialmente para a mulher. Jovem demais. Olhos de bicho acuado tentando parecer ferino. Não estava ali por glória nenhuma.
O homem pareceu notar o incômodo, mas insistiu.
— Todos voluntários, minha senhora. Todos escolheram lutar! Recebem parte dos ganhos, comida, e se forem bons… fama!
Jasmim grunhiu, desviando do homem com um giro seco do corpo — e, por acidente ou castigo divino, esbarrou com o cotovelo bem no meio do nariz dele. Um estalo abafado seguiu-se de um “ai” ofendido, mas ela já estava a dois passos de distância, sem intenção de se desculpar.
A verdade, porém, era que nem sabia ao certo o que a enfurecia ali.
Talvez fosse o cheiro. O som. Ou as placas com preços penduradas nos pescoços. Talvez o sorrisinho do vendedor. Talvez tudo isso somado. Mas, no fundo, sabia que o problema era outro. Era o fato de aquele lugar parecer… funcional.
Insídia não só sobrevivia — florescia. Mesmo cheia de rachaduras, ainda estava de pé. Se sentia inútil.
“Minha luta já foi esquecida.”
Cuspiu no chão. Pensar no assunto a deixava com mais raiva. Respirou fundo. O cheiro de fritura, suor e ferrugem invadiu as narinas, mas segurou.
“De qualquer forma, não tenho escolha”, pensou, mais cansada do que resignada. O mapa não a deixava em paz, e a voz, mesmo silenciosa agora, não lhe dava sossego desde Barbados.
Com passos mais firmes, Jasmim seguiu rumo ao Coliseu.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟
Venha fazer parte dessa história! 💖
Apoia-se: https://apoia.se/eda
Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p
Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.