Capítulo 235 - A Dobra da Baleia

O escritório de Catarina nunca foi grande, mas naquela manhã parecia menor. Talvez fosse o barulho do porta-aviões rangendo ao longe; talvez fosse a pressa que não cabia nas paredes. A taverneira empurrou a janela basculante com o cotovelo, deixando entrar um vento salgado que fingiu arejar a tensão, e bateu uma moeda no tampo da mesa — duas vezes, pausa, mais uma.
— Chegaron por un cabelo. — Ela não sorriu. — Mais cinco horas y estarían en la mierda.
Ana encostou a lombar no armário de mapas como se decidida a torná-lo seu novo trono. O alaúde de Nyx descansava às suas costas; a arma negra, enrolada no chão, fingia bom comportamento. Niala ocupava a cadeira de canto com as pernas cruzadas, uma garrafa achatada pousada como um animal doméstico entre os dedos. Catarina notou a presença, claro. Sua sobrancelha levantou meio milímetro e desceu. Não a conhecia, mas não tinha tempo para comentários.
— Eu sei. — Ana não elevou a voz. — Algumas ilhas demoraram mais do que devia. Gente demais pra desfazer, gente de menos pra carregar, e uma porrada de detalhes que você não deve querer ouvir.
— “Detalhes…” — Catarina tamborilou a moeda mais uma vez; a borda do níquel já deixava um risco fosco no verniz. — Leviathan pasa hoy, mi amor. Si pierden la ventana… no esperen más acuerdos en el futuro, ¿entendido?
Ana respirou pela boca. A verdade é que estava cansada. Claro que não iria mudar os planos por isso, mas muita coisa pesou em sua mente nos últimos meses. Coçou as flores enraizadas nas cicatrizes em suas mãos com cuidado, estavam mais ativas que o normal. Ficar tanto tempo no Collectio deixou seu corpo sedento pela mana pura do mundo de fora.
A coceira a fez relembrar de tudo que perdeu por Alex e Luís terem atrapalhado sua rota. O gosto de carne voltou à boca, e lambeu o lábio inferior devagar, sem perceber. Por algum motivo, ficou com raiva.
— Se eu disse que vou fazer seu maldito festival dar certo, então vou fazer! — Sua palma atingiu a mesa. Catarina soltou a moeda com o tremor. Vendo a madeira rachada, a ex rainha suspirou forte. — Escuta: a Niala — comentou, apontando com o queixo para a aracnídea. — vai atacar a parte baixa da cidade, puxando atenção. Eu subo pelas cordas da cauda com meus piratas, vou direto pro centro. Quero que seus piratas invadam pela frente depois que anunciarem o ataque.
A taverneira a encarou por um segundo, deu um gole da cerveja que restava no copo — a metade anterior foi toda para o balcão —, puxou um rolo de papal marcado de gordura e o abriu sobre a mesa. Setas riscadas à mão, uma linha vermelha com três círculos negros e uma caveira sem paciência.
— Aquí, aquí y aquí, ¿cierto? — A unha bateu no centro. — Leviathan va a dobrar el lombo às 23h, cruzando logo por arriba 23h50. A cauda varre só perto de 00h10 ¿Tu monstrinha aguanta más de una hora peleando sola?
Niala girou a garrafa, o vidro raspou de leve. Não se preocupou em explicar o que pensava, apenas sorriu com o olhar afiado que recebeu e assentiu uma única vez. Ana sentiu seu coração ressoar com o coração negro da alcoólatra.
“Ela também tá com fome de quebrar mais algumas coisas.”
Riu sozinha e disfarçou com uma tosse. Voltou a olhar para Catarina.
— A gente consegue — disse, e a frase saiu com menos bravata do que o normal. — Só não garanto quem vai ficar vivo e quem não vai. Não vou me conter se o Pedro retalhar.
A gargalhada veio alta e francamente insultante.
— Tá achando que vas conseguir haver algo com ele?— enfatizou com a moeda. — Anda, no me jodas. — Riu outra vez.
Ana revirou os olhos, mas também deixou escapar um sorriso curto.
— Que seja, que seja. — Balançou as mãos e se endireitou, ajustando o alaúde no ombro. — Amanhã a baleia vai ter um novo governo.
Os olhos de Catarina afundaram no fundo do copo. Sua cabeça balançou uma vez, devagar.
— No tenés idea de cuántas veces ya escuché eso, niña…
Quando ergueu o rosto, a cadeira já raspava no chão. As duas não estavam mais ali.

— Uma última refeição, marujos. Por minha conta! — o grito de Ana preencheu todo o salão. — Se sobreviverem à noite, finalmente vão fazer o pão que comem valer a pena.
Alguns rostos agradeceram de verdade. A maioria só assentiu com aquela educação que a fome ensina. Ana percorreu o salão com o olhar, somando ausências.
A tripulação original — os não mascarados, os que carregavam Insídia na postura — estava encostada nas laterais. Ela os proibiu de pôr um pé no convés nesse ataque. Eram poucos e confiáveis, bichos raros que não devem ser gastos de graça. Agora havia músculos frescos do Caribe, pele curtida de sol, gente que não ocupava o mesmo lugar no coração dela. O cálculo era simples: os seus esperariam o retorno triunfal e só subiriam em Leviathan quando as coisas se estabilizassem. Sangue e conquista ficariam com quem ainda estava com o trauma aberto.
“Não é covardia”, disse a si mesma. “Me devem isso por eu os manter vivos.”
Subiu num caixote para não precisar gritar duas vezes.
— Vamos simplificar. — O salão baixou um tom. — Barbados, Santa Lúcia, Antígua, Saona, Dominica… — contou nos dedos, mais para marcar ritmo do que por precisar — enfim, de qualquer lugar. Essa noite vocês têm duas motivações. A primeira vocês conhecem: o medo. Útil, porém curto. A segunda é melhor: família.
Pausou o bastante para que a ideia sentasse, sabia que um toque de suspense seria um bom tempero. Miguel lhe passou uma caneca que transbordava espuma; ela aceitou sem olhar.
— Alguns de vocês têm gente pendurada sob a minha nova bandeira. Todos precisam de um recomeço, não concordam? — falou e riu. Deu um gole, fez uma careta honesta pelo saboroso amargor. — Estão aqui por força e por sorte. Se fizerem o que for mandado, o recomeço merecido vai estar nos céus! — Contrário as palavras, apontou com o queixo para o porto.
Uma risada nervosa estourou no fundo. Ana ignorou.
— Vou facilitar as coisas para todos lá em cima. Não quero heróis solitários, nem improvisos. Na verdade, prefiro que nem pensem muito. Simplesmente obedeçam a Niala e quebrem o que tiver que quebrar. — Bateu os nós dos dedos no alaúde. — Se quiserem, gritem e corram, joguem pedras, ou qualquer bobeira. Só não quero me ver cercada de soldados quando for fazer minha parte. Sejam boas iscas.
Quando soltou a frase, quase riu ao ver os corrompidos com formato de peixe. Escondeu com um grunhido, mas não bem o suficiente. De alguma forma, ajudou seu discurso. Arrancou meia dúzia de sorrisos onde antes só havia dentes cerrados.
— Lutem por si. É isso.
Saltou do caixote e foi rumo à saída. Passou pela mesa dos veteranos: Luiz sorriu de canto; Alex apenas sustentou o olhar; Niala dormia; e Amélia — cuja existência ela mal lembrava até aquela manhã — a fitava com os lábios franzidos. A garota insistiu em ir quando os outros foram proibidos; ajoelhou, chorou, argumentou. Ana, surpresa, deu de ombros e autorizou.
“Quem sou eu pra discutir com doidos”, pensou, com a tranquilidade de quem reconhece a própria hipocrisia.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…

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