Capítulo 43 - A Odisseia de Circe Lethê Parte 6
No topo de um dos picos gélidos que se avizinhavam ao grande lago ciano, Circe sentou à beira de uma queda de centenas de metros. Os cabelos brancos e rosas tremulavam com o vento suave da manhã e ela balançava as pernas acima do precipício.
O olhar fixo analisava cuidadosamente as casas e os barcos pesqueiros que decidiram se aventurar nas águas pela manhã. A visão dos moradores, pequenos como formigas naquela distância, trazia um calor ao coração da deusa.
“Estão levando as coisas que cortei na madrugada…”
“Ah… Já vivi mais que estrelas, já esqueci mais coisas na vida do que todos os humanos vão aprender em toda sua existência, porém ainda existem coisas para me surpreender.”
“Rotsala… Espero que você seja o primeiro e último a invadir essa realidade e virar uma deidade.”
Um sorriso confuso e que beirava a inconformação surgiu em seus lábios. Não gostaria de admitir para si, mas criou uma certa afeição com o excêntrico jornalista. Amizades não eram algo costumeiro, pois tudo que fazia normalmente era assassinar perigos existenciais às realidades que invadia. Tinha foco em suas obrigações por padrão, porém deparou-se com uma situação diferente e favorável.
Estendeu o braço para trás e, das garras de uma das criaturas invocadas, apanhou a foice com firmeza na mão. Levou-a diante da face e observou-se no reflexo da lâmina, fitando os próprios olhos rosados.
“Hora de voltar…”
— Ni — proclamando o nome do Deus do Enigma, Circe sentiu todos os pontos em que andou nas últimas horas e, escolhendo um deles, teleportou-se.
Em um piscar de olhos, viu-se diante das estranhas e curiosas árvores prateadas de folhas pretas. O farfalhar suave da folhagem e o canto dos pássaros trouxeram a confirmação de que estava no ponto correto. Precisaria andar poucos minutos, pois estava próxima às ruínas que circundavam a velha catedral.
“Ni disse que, quando eu voltasse, Verissi já teria descoberto algo com seus poderes…”
Apoiou a foice no ombro e seguiu a caminhar, interessada em descobrir o que havia ocorrido em sua ausência. Talvez de fato tivessem descoberto uma fraqueza de Rotsala, apesar de isso não mais lhe interessar.
Repentinamente, Circe estremeceu com uma sensação que cortou-lhe a percepção, como se tivesse perdido os sentidos por alguns instantes. Erguendo a cabeça, avistou no céu uma fratura na realidade, como aquela que utilizou para chegar lá.
Inúmeras letras e números começaram a vazar de lá, como uma cachoeira revoltosa. As palavras em roxo mergulhavam contra o solo da floresta e esgueiravam-se dentre as árvores, rumo à catedral. Circe olhou para os lados e, a pele já pálida, empalideceu ainda mais.
“O que está fazendo isso?!”
Avançou freneticamente, seguindo o fluxo das letras que dançavam pela floresta. Cada passo mais veloz que o anterior, mais forte. As pupilas se dilataram, impressionadas por uma luminosidade dourada que parecia escorrer para cima, aglomerando-se no topo da árvore que perfurava a catedral.
Pelas fraturas e buracos no teto, desciam os conhecimentos manchados em roxo, sendo pintados e revelados naquele dourado quase maciço e sublime. Adentrando no antigo espaço religioso, avistou todos os deuses rodeando uma imensa tapeçaria.
Palavras eram sequencialmente incrustadas no tecido, marcadas como uma queimadura de terceiro grau. Tomada por uma indecisão e um pânico corrosivo, a deusa apenas ficou catatônica, observando em silêncio.
O Deus da Verdade, Verissi, tecia fatos provenientes do vazio eterno que espreitava ao redor das realidades. Tudo diante dos olhos daquela que menos aceitaria ver tal ato absurdo. Era forjada a profecia sobre Arthur Vogrinter, mesmo que ninguém soubesse o nome dessa criança que nasceria dezenove milênios depois.
A neblina azulada que abraçava a catedral vibrava enquanto Circe lia o trecho final.
Sob O Branco Infinito que se impregnará na existência, erguerá a espada o homem cujo domínio mágico abranja cada um dos 7 Elementos, apontando-a à carne exposta do Dourado.
E, mediante a Lua Negra, uma estrela azul nascerá na ponta de sua lâmina. Com tal força, expurgará da existência os invasores capazes de, numa única semana, desatarem cada um dos fios da realidade e levarem tudo que se há dentre os pilares da criação.
“Ninguém deveria saber sobre a Lua Negra… Como essa aberração descobriu isso?!”
“Ele… Entendi… Esse desgraçado tentou descobrir fatos sobre Rotsala, alguém de fora da própria realidade, e acabou trazendo acidentalmente para esse mundo um conhecimento proibido. Ele descobriu parte da lei…”
“Essa coisa conseguiu desvelar a existência da Lua Negra! Podendo fazer isso, talvez possa até mesmo descobrir meu objetivo final!”
Ni demorou a notar a chegada de Circe, que tinha agora uma expressão sorridente travada no rosto, como uma foto estática. Não foi capaz de distinguir o que a feição queria dizer, e nem teve muito tempo para isso.
— Verissi?! — A voz de Nabu saiu fraca, assustada.
Circe não estava mais naquele lugar… nem o Deus da Verdade.
— O que está acontecendo?! — Ni tomou fôlego e correu para fora da catedral a tempo de ver aquilo, um vislumbre infernal.
O céu inteiro estava negro, pulsando como um coração desolado, tomado pela adrenalina. Fraturas na realidade abriam-se em todos os cantos, rasgando a existência de tudo aquilo que não possuía Roha.
Terra, pedras, árvores e o próprio ar, tudo lentamente sendo devorado pelo púrpura que cortava a escuridão. Matéria era sequestrada, amarrada por forças de fora daquele universo.
Acima, Ni distinguiu uma forma catastrófica. Parecia pairar além da própria escuridão abismal que tornou dia em noite. Uma criatura mais branca que todas as tonalidades que deveriam existir. Os milhares de metros que compunham o colosso não foram um impeditivo para que ele encarasse Ni, julgando-o através das nuvens que eram esquartejadas pelo roxo puro que cintilava em seus olhos.
O Deus do Enigma sentiu o peito queimar com o mais humano dos pavores: o medo da morte. Sem ceder margem às dúvidas, utilizou-se das próprias capacidades para escapar de lá, abandonando todos os aliados para perecer.
AAAHHHHHHHH!
Circe rasgava e dilacerava a garganta de Verissi com as próprias unhas, enquanto a foice cravada no crânio pouco a pouco desmanchava o cérebro. O roxo impregnava-se na carne e apagava, deletava.
Com um sorriso arqueado e psicótico, ela transparecia todo o ódio que emergiu em seu coração ao encontrar um deus daquelas capacidades. Apesar de sua longevidade, que superava a de incontáveis estrelas, alguém que ela via como uma mera criança ameaçava a missão que dava sentido à sua vida.
— MORRE! MORRE! MORRE! — Atravessou mais fundo os dedos no pescoço daquele homem de seis metros, tentando decapitá-lo desesperadamente. — Você não poder existir! Sua vida é um sacrilégio contra a nossa lei! Contra minha missão!
“NINGUÉM PODE DESCOBRIR A VERDADE!”
Um chute extremamente violento a arrancou daquele lugar. Circe foi arremessada por dezenas de quilômetros e caiu rolando pela encosta de uma colina verdejante. Piscou os olhos, encarando o céu azul no horizonte em contraste com as trevas que produzira.
Os dentes racharam, forçados uns contra os outros com uma ferocidade e um frenesi digno de um predador. Tateou o sangue que escorria do torso, de uma ferida aberta.
“Superou minha proteção com Roha…”, notou ao atravessar o dedo na ferida e tocar diretamente no coração.
“Zorya, Nabu e mais alguém… Algum desses fez isso comigo, mas qual deles?”
Observando a invocação colossal que atravessa as nuvens, estalou a língua.
“Pouco importa, todos morrerão. Até o covarde fugitivo.”
— Esqueceram de um detalhe. — Encheu os pulmões de ar fresco e vociferou: — Ni!
Retornou ao último local onde colocou os pés no terreno da catedral, dando de cara com Dillun, o Deus da Vastidão. Os cabelos escuros medianos e as vestes cinzentas atraíram-lhe o olhar como fogo.
— Sempre soube que não poderíamos confiar! — Apontou o dedo para o rosto dela, transbordando de indignação.
— E quem caralhos é você?!
— Ohh… A Zorya é muda, mas sou eu a ser esquecido por falar pouco…? — Encolheu os
ombros, os lábios torcidos em uma feição de descontentamento.
As outras deusas tentavam resgatar Verissi, que permanecia com a foice cravada no crânio. Cartas pairavam no ar, controladas por Zorya, curando os ferimentos mais graves do atacado.
“Preciso da minha foice de volta.”
Centenas de pequenas invocações emergiram do chão ao redor, erguendo as mãos afiadas como garras na direção dos alvos. Gritavam uma falsa sinfonia distorcida, uma melodia não criada, inexistente. A matéria ao redor que ainda era apagada parecia lamentar, cada misero grão de poeira parecendo ter voz própria, num gemido de dor inconsolável.
A grande criatura branca curvou-se, atravessando a cabeça pelas nuvens. O púrpura cintilante irradiado dos olhos focou inteiramente no corpo de Verissi, cortando a camada de escuridão que permeava o céu.
Zorya continuava sustentando a cura, tentando recriar as partes do corpo apagadas da existência. O Roha do Deus da Verdade fazia especialmente difícil apagá-lo daquela forma, e Circe tinha plena noção disso.
Com o objetivo de recuperar a foice, avançou para alcançar o corpo. Contudo, quando viu o cabo da arma a milímetros da própria mão, sentiu o chão ao redor se esticar. A visão próxima tornou-se mais e mais distante, como se a realidade fosse ampliada.
A floresta destruída parecia extremamente maior do que antes, até mesmo a grande escuridão havia deixado o céu, indicando a enorme distância criada.
“Isso é a Vastidão?”
“Ele pegou uma área de alguns metros e a estendeu por centenas de quilômetros…”, deduziu ao notar o chão e as árvores com aspectos repetidos, como cópias exatas umas das outras.
Proferiu o nome do Deus do Enigma numa tentativa de teleportar-se para zona da catedral, porém, estranhamente, algo naquele espaço artificial a impedia.
“Ora…”
Preparou-se para correr, dobrando as pernas e concentrando uma quantidade absurda de Roha nelas. Em um instante, disparou como um míssil, utilizando força bruta para ganhar velocidade. Ao ultrapassar a barreira do som, o ar explodiu em ondas de choque e ventos uivantes, que reverberavam como estrondos. As árvores na visão dela viraram um grande borrão verde incompreensível, perdidas na velocidade extrema.
Seguindo violentamente a 4.165 km/h, cruzou 400 quilômetros em menos de seis minutos. Quando a escuridão voltou a ser visível no céu, desacelerou, arrastando os pés contra o chão e devastando tudo ao redor com a parada brusca. Atravessou a barreira entre o espaço artificial e o real, retornando à frente da catedral.
“Isso foi desgastante para meu Roha, mas está tudo bem…”
Deu dois tapinhas nas pernas, como quem queria checar se ainda estavam lá. Não existia uma única gota de suor em seu corpo ou vestido branco. Estreitou os olhos cor de rosa e caçou nas redondezas qualquer sinal deles.
Nada.
Erguendo o olhar na direção das nuvens, notou que a grande criatura que havia criado estava decapitada. Um gosto amargo, de raiva, surgiu em sua boca enquanto observava as invocações menores destroçadas ao redor em poças de seus próprios fluídos.
“Deve ser coisa daquela tal Nabu…”
E, para seu deleite, avistou a foice caída em uma das crateras ao redor. Os deuses subestimaram o que ela poderia fazer tendo aquilo em mãos. Circe caminhou calma, segura, tendo certeza de que não havia razão para pressa.
Ao descer no buraco, segurou-a com graciosidade, deixando escapar uma risada aliviada. Levantou a lâmina acima da cabeça, permitindo que o Roha circulasse ao redor, impregnando-se na matéria como uma praga se infiltraria numa plantação.
Fora da neblina azul das ruínas, eram facilmente detectáveis.
— Revelação Apoteótica Completa: Elipse — disse suavemente as palavras que despertavam seu maior ataque.
Mesmo que estivessem a uma distância considerável… Em um instante, Zorya, Verissi, Dillun e Nabu foram erradicados. Uma explosão negra surgiu, destruindo tudo em seu caminho e apagando qualquer vestígio de vida.
O som de ventos distorcidos, como gritos agonizantes, misturava-se ao estrondo ensurdecedor de terra desmoronando. O eco devastador reverberava por milhares de quilômetros, enquanto o solo se partia em fissuras gigantescas, dando origem a um terremoto de proporções colossais.
Circe permanecia inerte, um sorriso tranquilo estampado no rosto, como se a catástrofe à frente fosse uma obra de arte. Seus olhos cor de rosa admiravam o abismo escuro que se abriu diante dela, um vazio puro e absoluto que consumia tudo em seu caminho.
Para muito além do horizonte, encostas inteiras desabavam, montanhas eram arrancadas de suas bases e biomas vastos desapareciam, sugados pela lacuna profunda. Os tremores e estrondos não parariam tão cedo.
“Agora só falta…”
Memórias vieram à tona: Ni dizendo que queria vê-la novamente, crendo que ela poderia os ajudar. Afastou esses pensamentos e a imagem do sorriso que viu naquela face, focando-se na missão.
O último sobrevivente que sabia alguma coisa sobre a Lua Negra era Ni, porém estava fora de cogitação matá-lo naquele momento, pois era indetectável devido aos seus poderes.
À medida que avançava, via árvores despedaçadas, buracos irregulares com partes apagadas da existência e algo se dissipando. A neblina azul desaparecia, morrendo juntamente daquela que a criou. Restou no ar apenas poeira densa e um cheiro podre de algo queimado.
A grande árvore que perfurava a catedral estava arrebentada, tal como a maior parte da construção que a circundava. Paredes foram parcialmente derrubadas e inexistidas, até mesmo as estátuas decapitadas perderam mais partes de si.
Dentro, a tapeçaria com a profecia ainda permanecia intacta. O tecido brilhava com uma luz dourada que desafiava o escuro ao redor. As letras e símbolos bordados reluziam, insistindo em existir mesmo quando tudo ao seu redor havia sido apagado.
Com precisão, Circe golpeou o tecido da profecia, certa de que o apagaria da existência, assim como fazia com qualquer coisa. A lâmina desceu firme, mas ao atingir a tapeçaria…
“Uh?”
Nada.
Ela franziu a testa, os olhos cor de rosa estreitados em descrença. Outro golpe, mais forte, mais rápido.
Nada.
Nada. Nada. Nada.
A foice atingiu o tecido repetidamente, cada golpe mais furioso que o anterior, e a tapeçaria permanecia inalterada. Circe parou, ofegante, suas mãos tremendo ao redor do cabo da arma. Não importava o quanto atacasse, não importava quanta força empregasse naquilo.
Dias se transformaram em semanas, e Circe continuou ali, parada no mesmo lugar, gritando e chorando com uma crescente frustração. Seus ataques se tornaram irracionais e impulsivos, acreditando que por pura insistência resolveria aquilo. Mas nada acontecia. Absolutamente nada. A profecia era indestrutível e irremovível.
Tardou a aceitar o fato, em posição fetal, deitada sobre os ditames do futuro. Não havia como esconder a Lua Negra, parte essencial de sua missão. Restou a ela uma única opção, já que parecia inevitável que a informação permeasse aquele mundo quando alguém visitasse a catedral.
“Preciso ficar ao lado de Rotsala e ver como essa realidade vai se desenvolver…”
“Caso se aproximem muito da verdade por saberem da aparição futura da Lua Negra… Precisarei sujar minhas mãos de maneira que nunca fiz até hoje.”
Saindo da construção pela primeira vez em semanas, avistou um céu escuro e avermelhado. Ventos poderosos e gelados, impregnados com cheiro de cinzas, cortavam a região. Olhando para baixo, notou que o abismo por pouco não havia engolido a catedral com ela dentro.
Parte considerável da floresta ao redor estava arruinada e chamuscada, como se tivesse pegado fogo. Árvores e grandes massas de terra adentraram nas profundezas para preencherem a lacuna gerada pelo ataque.
A gigantesca nuvem de poeira erguida pelo ataque transcontinental bloqueava quase totalmente a luz solar. Na linha do horizonte, tornados devastavam a vida vegetal que resistiu até aquele momento. De nuvens negras e tempestuosas, caíam raios, iniciando incêndios caóticos.
“Humm… Eu deveria ter pensado nas consequências de um deslocamento de terra tão grande…”
“Espero que o Rotsala tenha dado um jeito de proteger as vilas.”
Empunhando a foice, relutantemente começou a caminhar na direção da região do grande lago.

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